Edição 253 | 07 Abril 2008

Um debate sobre conjugalidade e parentalidade de pessoas homossexuais

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Graziela Wolfart

Luiz Mello questiona: “Por que apenas pessoas heterossexuais podem ter o direito de se casarem?”

“Pessoalmente, creio que hoje, no campo dos direitos parentais e conjugais, a demanda mais legítima, justa e inegociável para gays e lésbicas no Brasil seria a abertura do direito ao casamento para todos os casais, independentemente do sexo de seus integrantes, incluindo o direito à adoção conjunta de crianças.” A afirmação é do professor Luiz Mello, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ao abordar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, ele é categórico: “O que a sociedade precisa perceber é que o casamento é uma instituição civil, destinada a regular direitos e obrigações entre pessoas que se escolhem livre e reciprocamente como parceiros sexuais e amorosos. Se são dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher, isso é um detalhe, já que cabe a cada pessoa o direito de livremente decidir sobre a melhor forma de viver a sexualidade, o amor e a definição de seus projetos de vida”.

Luiz Mello de Almeida Neto fez graduação em Ciências Sociais e mestrado e doutorado em Sociologia, pela Universidade de Brasília (UnB). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madrid de 2006 a 2007, como bolsista Capes. Atualmente, é professor de sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás e coordenador do Sert-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade, vinculado ao Programa de Direitos Humanos (PDH) da mesma instituição. É um dos organizadores do livro Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (Rio de Janeiro: Garamond, 2007) e autor de Novas famílias. Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).

IHU On-Line – Quais são as principais conclusões a que o senhor chegou com seu estudo comparativo sobre a lei de união civil no Brasil e o casamento homossexual na Espanha?
Luiz Mello
- A pesquisa ainda está em andamento, mas algumas sinalizações já aparecem. A primeira delas é que três coisas foram fundamentais para a aprovação da lei que alterou o Código Civil espanhol, de maneira a ampliar o direito ao casamento, para casais de pessoas do mesmo sexo, incluindo adoção: mobilização unificada dos grupos LGTB em torno da proposta, apoio popular e empenho pessoal do Presidente José Luis Rodríguez Zapatero,  do Partido Socialista Obrero Español (PSOE). No Brasil, o movimento gay e lésbico parece ainda não ter feito dos direitos civis para casais de pessoas do mesmo sexo sua principal bandeira de luta. A sociedade ainda é, em grande medida, refratária à idéia de igualdade na esfera pública entre pessoas hetero e homossexuais. O presidente Lula, por mais que nos últimos anos tenha se mostrado simpatizante às demandas LGTTB, nunca se posicionou de maneira inequívoca a favor da regulamentação de direitos conjugais e parentais para pessoas homossexuais e, muito menos, fez qualquer articulação política concreta com vistas à aprovação de uma lei no Congresso Nacional neste sentido. Além disso, na Espanha, à exceção do Partido Popular, todos os demais partidos votaram em bloco pela aprovação da alteração do Código Civil, sem que tenha havido necessidade de realização de um trabalho de convencimento individual de cada parlamentar. No caso do Brasil, considerando a inexistência de fidelidade partidária, o trabalho de advocacia dos ativistas LGTTB precisa ser feito com cada um dos 503 deputados e 81 senadores, o que pressupõe uma capacidade de articulação política ainda longe da realidade. Pessoalmente, creio que hoje, no campo dos direitos parentais e conjugais, a demanda mais legítima, justa e inegociável para gays e lésbicas no Brasil, seria a abertura do direito ao casamento para todos os casais, independentemente do sexo de seus integrantes, incluindo o direito à adoção conjunta de crianças. Menos que isso, trata-se de aprisionar um segmento expressivo da população brasileira no estatuto de cidadãos de segunda categoria. Afinal, por que apenas pessoas heterossexuais podem ter o direito de se casarem?
 
IHU On-Line - Quais são as principais novidades e os principais avanços no debate sobre a união civil homossexual no âmbito acadêmico-político no Brasil?
Luiz Mello
- No ambiente político, infelizmente, há poucas novidades. Desde 1995, o projeto de lei que institui a parceria civil registrada, de autoria da então deputada Marta Suplicy, encontra-se na Câmara dos Deputados, aguardando votação. Além disso, há outros projetos de lei, como o que assegura o direito à inclusão de parceiro do mesmo sexo como dependente no plano de saúde, de autoria da deputada Maninha,  mas que não tem possibilidades de ser aprovado a curto prazo, além de ser de alcance mais restrito que o da parceria civil. Fora isso, setores do movimento social e da academia hoje discutem se os objetivos deste projeto já não estariam defasados, considerando que a sociedade já passou por grandes transformações nos últimos anos, a exemplo das sentenças judiciais que asseguram o direito de adoção conjunta de crianças a casais de pessoas do mesmo sexo, direito que estaria vetado aos casais que firmassem contratos de parceria civil, caso o projeto da deputada Marta Suplicy fosse transformado em lei, nos termos previstos no Substitutivo aprovado na Comissão Especial que o analisou em 1996.

No âmbito acadêmico, uma das iniciativas interessantes nos últimos anos foi a criação da rede de pesquisadores sobre “Conjugalidades e parentalidades no Brasil contemporâneo”, coordenada pelas professoras Miriam Grossi  (UFSC), Anna Uziel  (UERJ) e por mim. A partir desta articulação, foram organizados o livro Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (Rio de Janeiro: Garamond, 2007) e o dossiê Conjugalidades e parentalidades de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil, publicado na Revista Estudos Feministas, em 2006. Além disso, tem havido discussões crescentes sobre o tema nos fóruns acadêmicos especializados, como as reuniões da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), os congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH) e os encontros da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), onde em 2007 houve a apresentação de muitos trabalhos no Simpósio Temático “Conjugalidades, parentalidades e amor no Brasil contemporâneo”.
 
IHU On-Line - Na sua opinião, como a sociedade, de forma geral, vê o casamento entre pessoas do mesmo sexo?
Luiz Mello
- A sociedade é muito heterogênea e há uma grande diversidade de opiniões, a depender do sexo, da classe social, do nível de escolaridade, da idade, da religião etc. de quem se posiciona sobre o tema. De uma maneira geral, porém, o que se observa é que, no Brasil, a palavra casamento, quando usada no contexto heterossexual, reporta-se ao fato de duas pessoas morarem juntas, independentemente de terem formalizado legalmente seus vínculos conjugais. Já no que diz respeito aos casais formados por pessoas do mesmo sexo, quando se fala em casamento, a imagem que vem à cabeça é a de dois homens ou duas mulheres reproduzindo de maneira caricata os parâmetros de uma celebração matrimonial heterossexual e violando ritos religiosos definidos como sagrados em sua intrínseca associação à diferença sexual. Proíbe-se, assim, a possibilidade de pensar no direito ao casamento para pessoas do mesmo sexo, sob o argumento de que este seria uma instituição “sagrada”, ao mesmo tempo em que a sacralidade do casamento há muito já foi abandonada no contexto das relações entre pessoas de sexos diferentes, inclusive quando se observa os divórcios e os re-casamentos se tornarem práticas sociais cotidianas. Ora, o que a sociedade precisa perceber é que o casamento é uma instituição civil, destinada a regular direitos e obrigações entre pessoas que se escolhem livre e reciprocamente como parceiros sexuais e amorosos. Se são dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher, isso é um detalhe, já que cabe a cada pessoa o direito de livremente decidir sobre a melhor forma de viver a sexualidade, o amor e a definição de seus projetos de vida.
 
IHU On-Line - Como se dá o processo da construção social da conjugalidade homossexual, pensando nas transformações dos modelos de família em nossos dias?
Luiz Mello
- Com o aumento crescente da visibilidade dos casais formados por pessoas do mesmo sexo, à medida que, cada vez mais, em todos os espaços e esferas da vida social, torna-se comum a presença de casais de homens e casais de mulheres, esse processo de construção social estará em curso. Ou seja, sempre que um desses casais se faz presente nas suas famílias, grupos de amigos, edifícios residenciais, locais de trabalho, igrejas, partidos políticos, associações de moradores etc. Neste sentido, a construção social da conjugalidade homossexual nada mais é do que um alargamento do sentido social prevalecente de conjugalidade, de maneira a contemplar também casais de pessoas do mesmos sexo, como uma possibilidade a mais de vivência no âmbito das relações socialmente definidas como familiares.
 
IHU On-Line - Como o senhor qualifica a união civil homossexual no Brasil? Está mais perto do “perigo social” ou da plena cidadania?
Luiz Mello
- Nem de uma coisa nem de outra e, ao mesmo tempo, das duas. Em alguns casos, o desamparo legal e o rechaço social atingem as pessoas com tanta violência que não há outra saída a não ser o anonimato ou o recurso às instâncias judiciais para assegurar direitos, como nas situações de disputas de heranças, guardas de crianças ou inclusão de companheiro do mesmo sexo como dependente em plano de saúde. Em outros, porém, vivemos no Brasil uma situação rara, na qual casais de pessoas do mesmo sexo conseguem adotar conjuntamente crianças, inclusive com autorização para que os nomes dos dois pais ou duas mães apareçam explicitamente nos documentos civis de seus filhos. Mas essa disparidade radical de situações é exatamente resultado da ausência de uma norma legal que assegure direitos a todos, independentemente de sua orientação sexual. Ou seja, na ausência de uma lei que assegure direitos conjugais e parentais a todos os casais, as pessoas ficam reféns da boa vontade e liberalidade dos juízes, que dispõem de uma autoridade suprema para decidir, para cada caso individualmente, se os sujeitos podem usufruir ou não de direitos que a Constituição Federal, a princípio, já assegura a todos. Ou seja, a situação hoje, no Brasil, das pessoas homossexuais é a de párias sociais, cidadãos de segunda categoria, indivíduos subumanizados, já que, embora a homossexualidade não seja definida como crime ou doença, gays e lésbicas cada vez que necessitam exercer sua cidadania no âmbito dos direitos conjugais e parentais ainda precisam recorrer ao Poder Judiciário para solicitar o reconhecimento de que são sujeitos desses direitos. Em muitos casos, lamentavelmente, este mesmo Poder Judiciário ainda nega esta prerrogativa.
 
IHU On-Line - Como pensar na família homossexual? Como a escola e a sociedade recebem os filhos dessa família?
Luiz Mello
- Ainda com muita surpresa e falta de preparo, mas nada muito diferente do que acontecia poucos anos atrás com os filhos de desquitados e de mães solteiras, que eram vistos quase como uma ameaça à formação moral das demais crianças na escola, um mal a ser evitado. A escola hoje, de uma maneira geral, já está preparada para lidar com o fato de que nem todas as crianças vivem na mesma casa com pai e mãe, havendo espaço para imaginar que muitas podem viver com pais/mães recasados, pais/mães solteiros, avós, tios, irmãos mais velhos e mesmo ter duas casas. Neste sentido, é preciso que se opere também a mudança cognitiva capaz de conceber a realidade de que uma criança poder viver com dois pais do mesmo sexo, sem que isso signifique que ela viva numa família “desestruturada”, “anormal”, “disfuncional”, “anti-natural”, ou qualquer coisa parecida. E a sociedade em geral precisa deixar de acreditar que tais famílias representam uma ameaça de qualquer ordem. Afinal, o que os estudos têm mostrado é que as crianças socializadas por casais de pessoas do mesmo sexo podem ser tão ou mais inteligentes, amorosas, estudiosas, preguiçosas, bonitas, invejosas, manhosas etc. etc. etc. que quaisquer outras crianças. O tamanho de suas possibilidades de felicidade e realização não está relacionado à orientação sexual de seus pais, mas à qualidade de amor e dos cuidados parentais que recebem e à probabilidade do ambiente em que se inserem (escola, vizinhança, família ampliada etc.) ser acolhedor e tratá-la de maneira respeitosa e generosa, como a qualquer outra criança.

Além disso, o que os estudos mais recentes têm apontado é que um casal de mulheres pode inclusive ser mais presente e dedicado ao processo de socialização de seus filhos do que um casal heterossexual, considerando que tradicionalmente os homens costumam ser pais pouco participativos nas vidas de seus filhos, o que colocaria estas crianças em situação de desvantagem social quando comparadas aos filhos dos casais de mulheres. Por fim, o que também se observa é que todas as crianças socializadas em ambientes mais vulneráveis à opressão social, incluindo as criadas em famílias não heterossexuais, tendem a ser mais abertas e respeitosas em relação à diferença, cultivando com maior freqüência valores relacionados à promoção da cidadania e à defesa dos direitos humanos.
 
IHU On-Line - Em que sentido o seu livro Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis ajuda na reflexão sobre o tema da união civil homossexual?
Luiz Mello
- O livro é uma coletânea, organizado pelas professoras Miriam Grossi, Anna Uziel e por mim, e reúne 19 artigos de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Antes de tudo, trata-se de um esforço que explicita como o campo dos estudos sobre conjugalidade e parentalidade de pessoas gays, lésbicas, transexuais e travestis tem crescido no Brasil e no mundo. Outro fato que deve ser registrado é que estes estudos têm apontado como estas relações familiares, embora geralmente não contando com a proteção legal, são espaços de amorosidade, realização existencial e amparo social fundamentais para as pessoas envolvidas.

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