Edição 253 | 07 Abril 2008

Padrão hetero: uma verdade imutável?

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Graziela Wolfart

As igrejas reforçam a cultura da marginalidade e clandestinidade que nega direitos, dignidade e humanidade para indivíduos e comunidades gays e lésbicas, avalia Nancy Cardoso, pastora da Igreja Metodista

Para a congregação metodista, relações de afeto entre homossexuais estão diretamente ligadas ao pecado. Segundo Nancy Cardoso, a Igreja não tolera a existência de grupos ou reflexões mais liberais que atuariam para garantir os direitos a gays e lésbicas. Entretanto, ela destaca que algumas instituições religiosas aceitam a celebração de uma bênção aos casais, mas não igualam a união a uma cerimônia de casamento.
Para ela, a discussão ética sobre a união civil entre homossexuais não deve considerar a orientação sexual da pessoa como fator primordial, mas, sim, “deve ser avaliada por relações que tornem as pessoas melhores, mais amadas-amáveis, mais responsáveis e felizes”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela reforça que o tema não deve ser discutido por igrejas que “não aceitam dialogar, estudar, avaliar e discutir”. E dispara: “O que as igrejas deveriam discutir é o lugar das famílias na dinâmica de reprodução da desigualdade, da exploração, da submissão”.
Nancy Cardoso, pastora metodista e vive no Rio de Janeiro. É graduada em Teologia, pelo Centro Universitário Metodista do Rio de Janeiro, fez licenciatura em Filosofia, pela Universidade Metodista de Piracicaba, e mestrado e doutorado em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo. Concluiu o pós-doutorado em História Antiga, na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente, é integrante do conselho editorial da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana e assessora de formação da Comissão Pastoral da Terra.

IHU On-Line - Como a Igreja Metodista vê a união civil entre pessoas do mesmo sexo?
Nancy Cardoso
- De maneira negativa. A carta pastoral dos bispos/bispa metodistas do Brasil (www.metodista.org.br/download?arquivo=carta_homossexualismo.pdf ) , de abril de 2000, qualifica a homossexualidade como pecado, colocando-se numa postura de ”respeito”  e amor aos “pecadores” (tanto quanto mentirosos, maldizentes e injustos) e não aceitando qualquer atitude preconceituosa e discriminatória. Os argumentos levantados pelo documento dos bispos/bispa são exclusivamente bíblicos sem qualquer tratamento exegético-literário ou histórico-antropológico. Na prática, a Igreja Metodista não mantém um processo de estudo sobre o assunto nem tolera a existência de grupos ou reflexões mais liberais que atuariam no campo da garantia de direitos. Outras igrejas metodistas no mundo têm posturas diferentes ou mais complexas: na Grã-Bretanha, foi anunciada, em 2005, a possibilidade de uma cerimônia de benção para casais do mesmo sexo, o que não deve ser considerado cerimônia de casamento (www.guardian.co.uk/uk/2005/jun/30/religion.gayrights); nos Estados Unidos, a situação é bem mais complexa por conta da forte cultura de direitos civis e individuais e a existência de grupos organizados de gays e lésbicas metodistas. Nos últimos 20 anos, a Igreja nos Estados Unidos vem se debatendo com o assunto (http://www.religioustolerance.org/hom_umc6.htm), mantendo uma posição contrária, mas sem uma unanimidade tranqüila.

IHU On-Line - Por onde deve passar uma discussão ética sobre a homossexualidade no que diz respeito à união civil entre pessoas do mesmo sexo?
Nancy Cardoso
- Qualquer forma de união, organização e associação deve ter como critério ético vital a humanização, isto é, deve ser avaliada por relações que tornem as pessoas melhores, mais amadas-amáveis, mais responsáveis e felizes. Qualquer casamento,qualquer relacionamento, deve promover a integridade e a plena realização de pessoas e suas comunidades. Neste sentido, tanto casamentos hetero como homo podem ser expressões de dolorosas relações, marcados por relações de poder violentas e desiguais, movidas pela submissão e exploração. A discussão ética não passa pela orientação sexual da pessoa, mas pela qualidade da união.

IHU On-Line - Como a senhora vê a questão da criminalização da homossexualidade?
Nancy Cardoso
- O padrão heterossexual que governa as lógicas institucionais, jurídicas, comportamentais e afetivas trata de invisibilizar seu caráter cultural e de impor, pela via da criminalização, a “naturalidade” e a “normatividade” hetero.

IHU On-Line - Qual é a sua avaliação da forma como as igrejas cristãs têm conduzido a questão da homossexualidade? Essa postura contribui para a manutenção dos mecanismos de culpa e castigo para quem não aceita a imposição da heterossexualidade?
Nancy Cardoso
- A homossexualidade não é uma questão para as igrejas no Brasil, isto é, as igrejas não aceitam dialogar, estudar, avaliar e discutir. Assumem o padrão hetero como verdade revelada, como de natureza estrutural da criação divina, negando toda e qualquer visão da complexidade da sexualidade e da dinamicidade das formas de organização social do amor, dos afetos, da erótica e da vida familiar. O pior disso tudo não é a culpa nem o castigo, e sim a participação no reforço da interdição social, no fortalecimento da cultura de marginalidade e clandestinidade que nega direitos, dignidade e humanidade para indivíduos e comunidades gays e lésbicas. Por outro lado, a dedicação conservadora, obsessiva e fundamentalista das igrejas aos temas morais e comportamentais mostra a irrelevância das igrejas em temas cruciais da vida social, da vida econômica. As questões morais acabam sendo um prêmio de consolação para um cristianismo que não tem mais vitalidade para discutir cultura, relações de poder, mercado e alienação, exploração do trabalho e da erótica.

IHU On-Line - Insistir na defesa somente da união entre pessoas de sexo oposto pode ser uma forma de manutenção do patriarcado?
Nancy Cardoso
- Claro! A insistência está na manutenção da família burguesa-patriarcal, formatada para procriação e o consumo. O que as igrejas deveriam discutir é o lugar das famílias na dinâmica de reprodução da desigualdade, da exploração, da submissão, vitais para a manutenção do capitalismo. Mas o que interessa é manter o padrão! Não alterar as hierarquias de poder. As igrejas no Brasil são expressão desse patriarcalismo que se auto-reproduz com teologias e pastorais de exclusão, alienação e minoridade política das maiorias de mulheres cristãs. Neste sentido, não podem aceitar que nenhuma das peças do engenho patriarcal seja movida: nem nas questões reprodutivas, nem nas questões de propriedade, nem nas questões eróticas, nem na masculinidade etc. Deserotizadas e deserotizantes, as hierarquias masculinas se reproduzem em modelos homo-afetivos, homo-centrados, homo-narrativos, homo-socializantes. Incluem as mulheres como anexo, mas têm prazer em exercer seu homo-poder de pai, de pastor, de padre, de bispo, de cardeal, de homem!

IHU On-Line - Quem luta pelo direito à união civil homossexual costuma sofrer qual tipo de violência?
Nancy Cardoso
- Na igreja Metodista, não há espaço nem tolerância alguma para a luta por garantia de direitos para homossexuais. Mas existem os metodistas gays e lésbicas. As formas de sobrevivência são a anulação, o silêncio, a subserviência e a infelicidade. Quem não aceitar este esquema vai sendo humilhada e excluída até o exílio forçado. São muitas as metodistas silenciadas e muitas as metodistas exiladas por conta de sua sexualidade.

IHU On-Line – O que a senhora, como pastora e mãe de dois filhos, pensa da união homossexual? Qual é a sua opinião sobre a alteração nos modelos de família tradicionais?
Nancy Cardoso
- Na casa da minha mãe e do meu pai, eu aprendi a viver na família ampliada. Até quem não era parente era bem-vindo para estudar, cuidar da saúde, se esconder, conviver. Este testemunho da mãe e do pai se misturou com a experiência de igreja local, numa comunidade amorosa, com realidades familiares distintas e dinâmicas. Assim, minha experiência de Deus está marcada por esse amor humanizante de famílias que se inventam, que se ajudam, se perdoam. Já vivi em muitos formatos familiares, com pessoas amigas que criaram comigo meu filho e filha, em relações afetivas e eróticas heteros boas e ruins, e sempre encontrei em Deus e na comunidade, na família pequena e ampliada a lição maior: “No essencial, unidade; no acidental, diversidade; em tudo, caridade”. Fui acolhida e humanizada por amigos hetero e homo que têm um lugar certo e especial na minha casa, na minha mesa e no coração de meu filho e filha. Com eles e elas, eu celebro uniões amorosas e humanizadoras, peço a presença de Deus em nossas vidas e sou agradecida por toda maneira de amor que vale a pena e sigo curiosa pelos desafios e novidades que o amor vai fazendo surgir.

IHU On-Line - No que se refere à luta pela defesa dos direitos dos gays, lésbicas e transgêneros, qual é a especificidade do povo latino-americano?
Nancy Cardoso
- A pergunta é muito ampla. Respondo a partir do que venho estudando sobre religião e literatura fantástica latino-americana. Os pobres são acontecimentos plurais e complexos. Mesmo na trama analítica de classe, gênero e etnia. A vida dos pobres como acontecimento de resistência e libertação extrapola as categorias determinadas. Esta pluralidade e ambigüidade não significam a dissolução do sujeito histórico, mas sua total encarnação. As teologias feministas aprofundam radicalmente a opção preferencial pelos pobres, sabendo que eles/elas podem ser o que quiser! É um desafio gigantesco e cotidiano o enfrentamento das muitas formas de alienação: do trabalho, da terra, da dignidade e da erótica. Os processos de libertação acabam mexendo em todos os padrões de dominação, e também no padrão hetero-patriarcal. Acompanhando homens e mulheres sem-terra pelo Brasil, mais de uma vez eu já vi acontecer ou já vi alguém contar de gente conhecida que virou bicho, ficou invisível, que resistiu. De comunidades que venceram a fome, de mulheres vencidas que viraram líderes, de homens que assumem a cozinha comunitária, de jovens que decidem ficar na roça, de amores gays debaixo da lona, dos poderosos que são derrubados de seus tronos, dos famintos que são fartos.

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