Edição 252 | 31 Março 2008

Submissão e imposição: extremos da personalidade feminina que dividem o gênero na sociedade atual

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Bruna Quadros

Mirian Dolores Baldo Dazzi discute as transformações vividas pelas mulheres, a partir do filme Lanternas vermelhas

“A sociedade na qual vivemos foi estruturada em torno de relações de dominação, entre as quais as de gênero, que consiste em atribuir ao masculino o poder de comandar, decidir e de ocupar o lugar do protetor e provedor. As diferenças e desigualdades, constitutivas das sociedades acabam por produzir modelos de ‘como viver bem com seus maridos ou companheiros’ e os múltiplos entendimentos dessa expressão leva as mulheres, muitas vezes, a não repensarem esses fenômenos, desde uma perspectiva diferente, atravessada ancestralmente por uma subordinação sexual, econômica, social e educativa.” A afirmação é da coordenadora do curso de Gestão Cultural da Unisinos, Mirian Dolores Baldo Dazzi. Em entrevista à revista IHU On-Line, por e-mail, ela destaca os desafios que as mulheres enfrentam, hoje, principalmente, no que diz respeito às relações afetivas, tendo como referência o filme Lanternas vermelhas, de Zhang Yimou. “Para alguns jovens, o casamento ‘por interesse’, como costumamos nomear, é uma prática construída nas inúmeras instâncias educativas que ensinam como alcançar o sucesso, subir socialmente algumas posições na escala social, poder contar com segurança e melhores meios de sobrevivência”, reforça.

O Instituto Humanitas Unisinos – IHU exibirá e discutirá o filme Lanternas vermelhas, no dia 1º de abril. O debate sobre a obra será feito pela Profa. Ms. Mirian Dolores Baldo Dazzi, na sala IG 119, junto ao IHU, das 19h15 às 22h. A programação integra o evento Cinema e Saúde Coletiva III: mulheres e seus múltiplos desafios. Mestre em Educação pela UFRGS, a palestrante coordena o curso de Gestão Cultural da Unisinos desde 2007. Atualmente, integra o corpo docente na universidade no curso de Pedagogia, entre outras licenciaturas.

IHU On-Line - Além da poligamia, Lanternas vermelhas esboça uma situação de domínio e poder, concedidos apenas aos homens. Qual é o reflexo da trama na sociedade atual?

Mirian Dazzi - Podemos analisar as situações de domínio e poder que são apresentadas no filme como construções. Isso não significa que não sejam visíveis seus efeitos. Efeitos que sentimos nos nossos corpos, nos nossos desejos e sentimentos, inscritos na materialidade das nossas práticas diárias, como mulheres. Portanto, entende-se que os inúmeros efeitos dessas e da tantas outras histórias que devem ser sempre revistas e relidas para aprofundarmos o debate, tanto no campo epistemológico quanto político, nos ajudarão a compreender a constituição de feminilidades e masculinidades nas diversas culturas. Tomo os movimentos que promovem os inúmeros deslocamentos nas posições de submissão das mulheres como efeitos, produções de sentido que nos constituem como sujeitos de um novo tempo.

IHU On-Line - Na obra, a personagem central, uma jovem de 19 anos, é obrigada a aceitar o convite de casamento de um homem rico e desconhecido para ela. Em contrapartida, sabemos que muitas jovens se rendem ao poder, facilmente. Neste sentido, por que elas se deixam influenciar?

Mirian Dazzi - Considero importante alertar que estou tomando a expressão “se rendem ao poder”, como o aceite de um casamento por interesse puramente econômico. Do ponto de vista das relações de gênero e de suas complexas inter-relações com outras questões culturais, tais como etnia e classe social, que nos colocam frente às desigualdades, surgem múltiplas dimensões tramadas por diversas culturas e formas de sociabilidade em relação ao aceite de um “convite de casamento”. As expectativas e formas de pensar o casamento para seus filhos e filhas não são construídas apenas na esfera individual, mas também no âmbito familiar, atravessadas pelas inúmeras questões que constituem distintos grupos sociais e culturais. Creio que talvez devêssemos construir um olhar menos reducionista à idéia de “se renderem ao poder”, pois essas escolhas são resultado de um processo complexo de significação, através do qual as práticas instituídas pelos diversos grupos sociais, culturais são resultados das articulações das diferenças não apenas em relação à situação social e econômica, mas, também, de etnia, de religião, de geração, de gênero e que muitas vezes se constituem em processos não apenas de dominação, mas também de resistência. Para alguns jovens, o casamento “por interesse”, como costumamos nomear, é uma prática construída nas inúmeras instâncias educativas que ensinam como alcançar o sucesso, subir socialmente algumas posições na escala social, poder contar com segurança e melhores meios de sobrevivência. A mídia, tomada como um dispositivo pedagógico, com suas sutis estratégias de linguagem, contribui fortemente para a produção desses jovens, capturado nos discursos que se reproduzem cotidianamente. Dessa forma, a referida “rendição”, pode ser entendida como um enunciado que afirma “o que é ter sucesso com um casamento” ou o que seria “ter conseguido um sucesso de casamento”.

IHU On-Line - A realidade feminina marcada pela repressão, visto que as mulheres não tinham voz ativa, em qualquer circunstância, na época, é um dos aspectos mais marcantes do filme. Hoje, esta situação é diferente. O que impulsionou esta mudança?
 
Mirian Dazzi
- As mudanças ocorridas nas ultimas décadas, em relação aos direitos das mulheres são, certamente, resultado das discussões do tema relacionado às questões de justiça social e econômica, mas também se relacionam com questões de injustiça cultural. Na contemporaneidade, cada vez mais percebemos que as questões femininas não estão deslocadas de outras questões importantes da sociedade, entre elas as questões históricas e econômicas. Assim, devemos considerar que a busca por direitos também se dá no cruzamento das diferenças de classe, de situação social, de nível de informação, da formação intelectual e, dessa forma, o direito à voz para defender seus interesses está conectado com capital cultural e social dessas mulheres ou grupos. Certamente, as representações das mulheres no filme são reforçadas por meio das manifestações de poder e domínio. Cenas como as que assistiremos servem hoje e, certamente, servirão por muitas décadas como materiais de investigação e produção científica, favorecendo a consolidação e expansão de coordenadas que promovam o “enfraquecimento” desse poder masculino. A posição ocupada pela mulher na nossa sociedade e cultura ainda se constrói no embate dos desejos de alguns (na sua grande maioria homens, mas mulheres também) expressos através da mídia, da literatura e de tantos outros artefatos da nossa cultura na modernidade favorecendo que possamos viver nossa feminilidade “para além do papel honroso que lhes era concedido de mãe virtuosa e Rainha do Lar”.  A igualdade de gênero e uma infinidade de outros temas que dizem respeito às mulheres, como a sexualidade, as tecnologias reprodutivas, os modelos familiares, os direitos de propriedade e herança, por exemplo, que perpassam as mudanças apontadas e que foram incorporados nas práticas de algumas culturas não conseguem, porém, impedir que ainda sejamos tocadas pelos sentimentos de contrariedade e desconforto que Lanternas vermelhas nos causa.

IHU On-Line - Ainda é comum, em determinadas circunstâncias, mulheres servirem aos homens e, até mesmo, sofrerem com a violência doméstica. O que norteia este público feminino para o caminho da submissão, que obscurece a percepção do seu próprio valor?

Mirian Dazzi – Freqüentemente, usamos a palavra norte como um ponto ideal de referência, que muitos de nós desejamos alcançar. Nessa direção, creio que a subjugação da mulher, por meio da tirania construída, não apenas em relação ao discurso biológico de que ela possui um corpo frágil e, portanto, “de natureza” deficiente, é que fez emergir o entendimento da necessidade de proteção. Assim, passa a ser necessário que uma figura física e, psicologicamente, forte e determinada, ainda permeie muitas das práticas culturais tomadas como verdades universais e naturais, nos posicione como submissas. A beleza e a doçura, acrescidas da qualificação de um talento ou dote artístico, muito variável de cultura para cultura (cozinhar, lavar, passar, ser econômica, educar os filhos, para as nossas avós, por exemplo) já apontavam para as relações de poder implicadas na produção social dessas mulheres criadas e educadas “para servirem aos seus homens”. Dessa forma, nos dias de hoje, algumas mulheres ainda permanecem presas à idéia de que se as coisas não estão dando certo no âmbito familiar é por sua culpa. Esse sentimento reproduzido intensamente pela mídia e, particularmente, pelos filmes, novelas e propagandas que nos ensinam como nos tornar sedutora, estar sempre “disponível” para o sexo, cozinhar com amor, lavar e passar para deixar todos os da casa felizes, entre outras tantas “qualidades” que nós mulheres devemos possuir, funcionam na direção da construção da subjetividade da mulher. Conseqüentemente, essa culpa ou falta deve ser punida promovendo, dessa forma, o apagamento da percepção do “seu próprio valor”.

IHU On-Line - A Lei Maria da Penha é, talvez, a maior aliada das mulheres no que diz respeito à proteção e amparo. Mas poucas usam este recurso. O que falta para que o público feminino busque os seus direitos?

Mirian Dazzi - Não gostaria de construir minhas reflexões sobre o momento atual, baseada na idéia de falta, mas, sim, apontar que os movimentos até aqui empreendidos fazem parte de um longo processo. A sociedade na qual vivemos foi estruturada em torno de relações de dominação, entre as quais as de gênero, que consiste em atribuir ao masculino o poder de comandar, decidir e de ocupar o lugar do protetor e provedor. As diferenças e desigualdades, constitutivas das sociedades acabam por produzir modelos de “como viver bem com seus maridos ou companheiros” e os múltiplos entendimentos dessa expressão leva as mulheres, muitas vezes, a não repensarem esses fenômenos, desde uma perspectiva diferente, atravessada ancestralmente por uma subordinação sexual, econômica, social e educativa.
Os estudos sobre as relações de gênero, no mundo todo e, particularmente, em nosso país, não estão se constituindo de modo especial e significativo na direção da ampliação de espaços e reconstituição da identidade da mulher buscando não “um acerto de contas com o passado”, mas, sim, na busca pelo direito de apontar algumas diretrizes. Estas, mesmo que para um futuro incerto, mas muito desafiador, quanto ao “domínio e poder” masculino que vimos bem delineados, em Lanternas vermelhas.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição