Edição 252 | 31 Março 2008

Como não perder ou sacrificar as conquistas da revolução? Eis o desafio

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin

“Quando a violência passa a ser uma estratégia de reconhecimento social, é porque as possibilidades desse acesso à dignidade pessoal se apresentam esgotados”, afirma Carlos Gadea

“A violência do estado tem um combustível inevitável: a posse de armas de fogo por um número muito grande de pessoas”, diagnostica o sociólogo Carlos Gadea. Além da cultura do armamento, outros fatores contribuíram para que o município de São Leopoldo ficasse classificado entre os dez municípios mais violentos do estado. De acordo com o pesquisador e professor do PPG em Ciências Sociais da Unisinos, dois aspectos devem ser levados em consideração: “os constantes movimentos migratórios para esta região” e a “concentração populacional nesta região do estado”. Ele ressalta que condições mínimas de conforto e convívio social têm “detonado processos cíclicos de violência”, que se estendem desde ações de delinqüência até agressões intrafamiliares.

Gadea é mestre e doutor em Sociologia Política, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realizou estudos e pesquisas no Ibero-Amerikanisches Institut (IAI) Berlin, Alemanha, e na Facultad de Ciencias Políticas y Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), México. Atualmente, além de professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, Gadea é editor da Revista Ciências Sociais da universidade.

IHU On-Line - Como compreender a violência que assola o Rio Grande do Sul, principalmente a região metropolitana? Podemos estabelecer alguma relação entre essas ações de violência e a colonização germânica e italiana que serviram de base para a colonização do estado?
Carlos A. Gadea
– Não me parece razoável relacionar a violência urbana atual com processos migratórios de várias décadas atrás. Pelo menos, não de forma direta. A violência do estado tem um combustível inevitável: a posse de armas de fogo por um número muito grande de pessoas e a cultura do armamento que a sustenta. Por outro lado, isso tem relação com dois fatores muito específicos, principalmente quando pensamos na região metropolitana: a) os constantes movimentos migratórios para esta região, de pessoas em busca de melhores condições de vida, que se relaciona com o desejo de viver numa região de mais amplas possibilidades educativas, culturais e de ascensão social; b) a concentração populacional (densidade demográfica) nesta região do estado. Por exemplo, segundo o IBGE, a cidade de São Leopoldo tem 2.030 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto que o município de Rio Grande  (com população numericamente semelhante) tem apenas 70 habitantes por quilômetro quadrado.  Isto pode ser um fator explicativo, já que, quanto mais pessoas estiverem juntas, as probabilidades do conflito, a intolerância e o consumismo são crescentes. Mas, fora os aspectos econômicos e sociais de exclusão sócio-espacial evidentes, e fora este aspecto da densidade demográfica, gostaria de chamar a atenção para uma “cultura do armamento” que parece legitimar, perversamente, qualquer diagnóstico sobre o aumento da violência no estado.
 
IHU On-Line - O senhor diz que o aumento da violência na região está diretamente ligado à concentração populacional.  Como o processo migratório tem influenciado diretamente nessa questão? Traçando um paralelo entre a década de 1990 e o momento atual, que mudanças são evidentes nessa área?
Carlos A. Gadea
– Há um dado muito interessante no estado que pode exemplificar esta questão. A concentração da população se dá, majoritariamente, no que eu denomino “corredor urbano BR-116”, ou seja, no contexto de cidades que se vêm atravessadas por essa via de circulação. Como podemos deduzir, esta estrada é sintomática do significado do processo de modernização econômica do estado, em torno das indústrias de grande magnitude e que, conseqüentemente, têm recebido mão-de-obra de características variadas. O processo migratório ocorrido no final dos anos 1980 e nos anos 1990 é um fator muito ponderável na hora de falarmos sobre violência, pois as condições de vida e a infra-estrutura urbana para receber tal contingente de população não conseguiram acompanhar o processo. A falta de espaços públicos, como grandes parques, são exemplos das carências urbanas mais evidentes. Esse tipo de carência, somado às mais elementares condições mínimas de conforto e convívio social, tem detonado processos cíclicos de violência, ora sob a forma de delinqüência e roubo, ora sob a forma de criminalidade e de violência intrafamiliar. Nesse sentido, o processo migratório mais tardio, e não aquele concebido como “clássico” no estado (italianos e alemães), é o que deve ser observado com maiores detalhes. 
 
IHU On-Line - São Leopoldo é um dos dez municípios mais violentos do Rio Grande do Sul. Como explicar essa situação numa cidade universitária?
Carlos A. Gadea
– A cidade de São Leopoldo não pode ser entendida tão simplesmente como cidade universitária. Prefiro denominá-la como “cidade em trânsito”, e cuja identidade cada vez mais vai se delineando de acordo com uma polarização sócio-espacial muito evidente. Esta polarização se relaciona com a perda ou a ausência de certos referentes identitários o suficientemente legitimados pelos que a habitam. Quero dizer que a sua identidade, construída sobre a germanidade dos seus primeiros colonizadores ou a partir da concepção socioeconômica como “pólo industrial”, não parece suficientemente convincente. Existem mudanças curiosas que podem nos ajudar a refletir. Fora questões acerca da sua identidade (elemento de indubitável coesão social), São Leopoldo é uma cidade com: a) um centro urbano que concentra as principais atividades da cidade, centro que, por sinal, é pequeno em relação a seu espaço físico geral; b) escassas possibilidades de visibilidade de uma população heterogênea devido ao reduzido espaço para isso. O exemplo é que, aos domingos, a principal rua da cidade, a Independência, vê-se invadida por uma cultura do lazer muito curiosa, sem possibilidades reais para um convívio menos “invasor” entre aqueles que a freqüentam. Quando o espaço por excelência de visibilidade e sociabilidade parece ser, de forma crescente, uma pequena rua do centro, uma cidade pode começar a se perguntar qual o tipo de sociabilidade e cultura cidadã está construindo. Nesses espaços, as instâncias para a aceitação da diferença se tornam muito raras, já que o ambiente parece reclamar estratégias contrárias: a demarcação de um local próprio num reduzidíssimo espaço coletivo. Aí não pode haver possibilidades de se encontrar e contrapor diferentes estilos de vida, fórmula essencial do convívio, nem a redução de situações de violência. 
 
IHU On-Line - Que outros aspectos são relevantes para compreender a origem dos conflitos urbanos na sociedade nacional e gaúcha?
Carlos A. Gadea
– Não é possível compreender a violência como sinônimo de delinqüência ou de criminalidade. Trata-se de uma representação social. A violência é uma “linguagem coletiva”, uma prática que pode outorgar sentido a uma determinada experiência vivida no meio urbano. Delimita uma variedade de situações de conflito. Assim, cresce a violência urbana. Entretanto, é necessário observar que tipo de violência realmente cresce para tentar compreendê-la e, eventualmente, encontrar alguma solução para ela.

A violência doméstica em crescimento delineia um tipo de violência muito diferente daquela provinda dos roubos, por exemplo, e que, então, nos diz muito sobre as relações sociais existentes em um determinado espaço urbano. Assim, lógicas diferentes devem ser acionadas para tentar combatê-las. Por isso, é bom considerar que a violência urbana reconhece um padrão específico de sociabilidade que expressa uma ordem social concreta, muito mais do que um conjunto de comportamentos isolados. Toda ameaça à integridade física ou moral surge de um repertório de práticas sociais, e não de ações individuais. Com isto, quero chamar a atenção para a necessidade de compreender que a violência e o seu crescimento só são possíveis por uma base de sustentação sociocultural que a torna prática social: a cultura do armamento e o fácil acesso de armas para os jovens. Deve-se entender que o aceso a armas não pode ser considerado no repertório de direitos individuais gerais. A posse de armas nos demanda uma responsabilidade muito maior que a de comprar um pirulito. São direitos impossíveis de compatibilizar. 
 
IHU On-Line - É possível relacionar o comportamento violento das pessoas com o intenso ritmo de vida da sociedade contemporânea?
Carlos A. Gadea
– Com certeza. A violência também é produto das frustrações pessoais e coletivas contemporâneas, produto da falta de visibilidade e reconhecimento social, da redução de vínculos afetivos com o espaço habitado e com os demais.
 
IHU On-Line - A falta de estrutura e amparo do Estado são fatores complacentes para o aumento da violência? Esse sentimento de exclusão fortalece a excitação pela violência nas comunidades, gerando, por exemplo, conflitos internos entre os próprios membros?
Carlos A. Gadea
– Creio que os enfoques acerca da frustração pessoal e coletiva pode nos auxiliar nisto. Atualmente, diferente de outros tempos, é possível assistir a uma “violência estrutural-simbólica”. Nela, lógicas situacionais de conflito, nas quais as frustrações emanadas do escasso ou nulo aceso a “bens simbólicos” (convertidos em bens de reconhecimento intersubjetivo, dignidade pessoal e conteúdos políticos de projeção identitária), se transformam em motores da violência e, eventualmente, em atos de delinqüência concreta. Quando a violência passa a ser uma estratégia de reconhecimento social, é porque as possibilidades desse acesso a dignidade pessoal se apresentam esgotados.
 
IHU On-Line - Levando em consideração as reivindicações dos movimentos sociais, até que ponto ações de violência podem justificar a luta por interesses coletivos?
Carlos A. Gadea
- A violência é uma linguagem, e, como tal, pode ser porta-voz de demandas não satisfeitas. A legitimidade ou não disso não é algo que nos deve preocupar. Se for conseqüência de uma racionalidade prática de um movimento social, deve-se tentar compreender o sentido que ela tem.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição