Edição 252 | 31 Março 2008

“Há uma relação direta entre a violência e a questão socioeconômica”

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Alessandra Barros

Para Jair Krischke, um dos fatores que incentivam a violência no Vale dos Sinos é a diminuição dos postos de trabalho na indústria, numa região que recebeu muita migração por oferecer melhores condições de vida

“Existe uma forte corrente separatista que quer fazer do Sul do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) um novo país. Um país de brancos. E, dizem mais, que São Paulo poderia participar desse novo país, desde que mande embora os nordestinos”, declara o conselheiro do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) Jair Krischke, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, sobre a origem da violência no Rio Grande do Sul.

Ativista dos Direitos Humanos, com atuação no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai, Jair Krischke também concedeu entrevista sobre a Operação Condor para o sítio IHU, em 01-02-2008. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, principal Organização Não-Governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul, e o Comitê de Solidariedade com o povo chileno. Confira a entrevista.

IHU On-Line – São Leopoldo, berço da civilização alemã no Rio Grande do Sul, está entre as dez cidades mais violentas do Estado, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, apresentando taxas recordes de assassinatos, com 63 homicídios. A que o senhor atribui esse aumento da violência no município?
Jair Krischke
- Os dados não surpreendem. Essas ocorrências vêm crescendo nos últimos anos, especialmente no Vale dos Sinos. Trata-se de uma região que foi um pólo industrial de extrema pujança, muito desenvolvida, e oferecia muitos empregos. No entanto, com a crise da indústria calçadista (que também não é nova, apenas se repete), o desemprego foi massivo. Nos últimos anos, houve uma perda de postos de trabalho significativa. Após uma crise, novas tecnologias são empregadas pelas indústrias, que acarretam a diminuição no número de postos de trabalho.  

Um dos fatores que incentivam a violência no Vale dos Sinos é, portanto, a diminuição dos postos de trabalho na indústria, numa região que recebeu muita migração por oferecer melhores condições. Quando essas deixam de existir, a violência logo começa a crescer. Há uma relação direta entre a violência e a questão socioeconômica. Exemplifico com o Plano Cruzado, do governo Sarney, que foi o momento em que realmente a massa salarial cresceu significativamente e o número de ocorrências policiais diminuiu em todo o Brasil, tanto em grandes cidades quanto nas pequenas. Os índices de violência diminuíram porque a situação econômica melhorou. Claro que outros fatores incidem, mas esse é um diagnóstico possível.

IHU On-Line – Conforme o diagnóstico, Porto Alegre teve um aumento de 57% nos assassinatos. Qual é a sua avaliação desses números?
Jair Krischke
- Tenho uma restrição muito grande ao que titulam como homicídio. Já que, dificilmente, políticas de Estado têm o dom de influir. Quando o sujeito, no fim de semana, bebe demais e acaba matando a mulher ou o vizinho, temos o chamado homicídio de proximidade, pois ocorre na região em que a pessoa vive, na sua casa, na sua vizinhança, ou no bar em que freqüenta. No Brasil, seguidamente, juntam o latrocínio com homicídio, ou seja, a morte ocasionada numa tentativa de roubo ou de furto. Neste caso, tem outra conotação. Os números, de qualquer forma, são realmente expressivos e estão crescendo. É importante considerar que uma cidade é violenta quando comparamos os números de Porto Alegre e sua região metropolitana com os números de São Paulo, por exemplo. Já há um alarde. Os índices são desproporcionais, e os dados causam preocupação.

IHU On-Line – O crescimento da violência, como a atuação de grupos neonazistas como os skinheads, estaria ligada à colonização alemã no Rio Grande do Sul? 
Jair Krischke
– O relatório do governo norte-americano a respeito da situação das vítimas no mundo destaca esse episódio. No Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e parte do Paraná, temos uma situação bem particular. Trata-se de uma região de forte colonização alemã e que, em termos ideológicos, ficou parada no tempo. Ainda hoje, atuam inspirados na Alemanha nazista e apóiam o projeto de Hitler. Une-se a esse sentimento uma vertente racista e separatista. Existe uma forte corrente separatista que quer fazer do Sul do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) um novo país. Um país de brancos. E, dizem mais, que São Paulo poderia participar desse novo país, desde que mande embora os nordestinos. Não é por acaso que temos em Porto Alegre uma editora neonazista, a Revisão Editora, de propriedade de Siegfried Ellwanger, que já recebeu corretivo da justiça do Rio Grande do Sul. Em 1996, esse cidadão foi condenado a dois anos de prisão por publicar livros neonazistas. A sentença foi até o Supremo Tribunal Federal e foi mantida. É o primeiro caso na América Latina que pune alguém por publicar livros racistas. Estes grupos neonazistas, separatistas, se utilizam das publicações dessa editora. Nos inquéritos policiais, no material apreendido pela polícia, são citadas as obras. Portanto, temos no estado este cenário muito propício a este pensamento exótico. Quando a juventude não tem perspectiva, até mesmo a parcela que chega à universidade, e percebe que mesmo com o diploma terá dificuldade de conseguir emprego, ela passa a conviver num caldo de cultura favorável a este pensamento. Então, passam a buscar um bode expiatório para justificar a situação. Aqui no Sul do Brasil, a perseguição acontece com negros e judeus. Temos o caso de um grupo anterior, em 2006, que não constam nesses relatórios, de uma banda de rock, chamada Zurzir, que recebeu a reprimenda por compor músicas de caráter neonazista. Tanto as autoridades policiais quanto judiciais têm dado resposta à altura.

IHU On-Line – Quais instituições deveriam trabalhar para mudar essa realidade? Para o senhor, a família, a escola e as igrejas estão cumprindo seu papel na sociedade?
Jair Krischke
– Temos, hoje, um cenário em que a família, a escola e as igrejas estão falhando. Essencialmente a violência é uma questão de educação e de cultura. Quando estas instituições faltam com o seu papel, imediatamente o conjunto da sociedade sente na própria pele o resultado. O que temos é a produção de uma cultura da violência. Tudo passa a se resolver através da violência. Sem dúvida nenhuma, estamos vivendo a cultura da violência em nosso país. Está na hora de a família parar para repensar a sua função com urgência. Existem casos em que os pais, que são jovens, inclusive alguns menores, avalizam a atitude de seus filhos. Em nossos relatórios, também constam pais com formação universitária. E temos exemplos de país de origem mais simples que pedem socorro, que querem a intermediação para acesso a tratamento psicológico para combater essa enfermidade social, de escolher a violência como caminho. A escola abandonou o trabalho e o cultivo dos valores socialmente aceitos, de reforçar os valores da família. Já as igrejas estão ocupadas com inúmeras preocupações que estão distantes da formação moral e religiosa dos seus adeptos.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação sobre pesquisa que revela que os brasileiros aprovam a tortura aplicada pela polícia brasileira?
Jair Krischke
- Essa pesquisa realizada recentemente e publicada pelo jornal O Globo é assustadora. Divulga que na média 26% da população aceita tortura como forma de investigação. Ou seja, de cada grupo de quatro pessoas, uma aceita. Na classe média, que recebe até cinco salários mínimos, esta posição sobe para 52% os que aceitam tortura como forma de investigação, o que é alarmante. Mostra o desespero que a população brasileira se encontra clamando por segurança. As ruas das cidades brasileiras estão permeadas de violência, principalmente no centro do país, como Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio de Janeiro, a polícia é responsável por um número enorme de mortes. A polícia mata e também tortura. E não só como forma de investigação, mas também pelo mecanismo de corrupção na qual ela está envolvida, na disputa por pontos do tráfico de drogas. Trata-se de uma polícia que se corrompeu e que tortura. No Rio Grande do Sul, tivemos um episódio gravíssimo ocorrido na Serra Gaúcha, onde a polícia torturou, sendo que um dos jovens foi empalado. Mas, no estado, ainda há uma cultura bastante forte que impede a tortura sob qualquer justificativa. Nesse episódio, a polícia militar gaúcha, através do seu comando, imediatamente agiu e determinou a prisão de oficiais e de praças graduados. Houve uma ação imediata e instantânea, proibindo esse tipo de prática. No centro do país esse comportamento já não se repete. Exemplo desse cenário é o filme Tropa de elite, que não entendo como recebeu um prêmio no festival de cinema de Berlim. O filme exibe cenas de tortura e, segundo relatos, a platéia aplaude esses momentos. É o retrato da loucura coletiva que a sociedade brasileira está acometida. Quando as pessoas se sentem inseguras, aceitam qualquer situação, pois não percebem que a próxima vítima de tortura serão elas próprias. Na medida que a violência cresceu, as pessoas foram se enclausurando em suas casas. Grades, cães, câmaras de TV foram adotadas na ânsia de obter proteção, ao invés de cobrar das autoridades providências de segurança pública, que todo cidadão tem direito e o estado tem o dever de proporcionar. As pessoas fragilizadas passam a aceitar a tortura ignorando de que fatalmente isso irá voltar-se contra elas próprias. Um equívoco. Temos que cobrar aquilo que as autoridades têm o dever de dar e nós cidadãos o direto de exigir: segurança pública.

IHU On-Line – Como vencer a crise na Segurança Pública?
Jair Krischke
- O problema é tão grave que a segurança privada merece um capítulo à parte, pois as pessoas e as empresas passaram a se valer da segurança privada. Os cidadãos que têm recursos pagam pela segurança e pensam estar seguros. O empresário esquece que se expõe ao sair da sua empresa para casa. Temos, no Brasil, um número de efetivo nas empresas de segurança privada, legais e ilegais, ditas clandestinas, superior às envolvidas na segurança pública. As empresas de segurança privada têm efeito maior do que a soma de todas as policias militares, civis e federal. Mesmo assim, o problema não está resolvido. No Rio Grande do Sul, temos uma polícia civil com efetivo de cinco mil policias para todo o estado. Um efetivo menor do que tínhamos há 40 anos, quando a população era muitíssimo menor. Na Brigada Militar, temos uma defasagem de cerca de 10 mil homens. Torna-se impossível promover segurança sem equipamento e efetivos capazes e treinados. Lembro que coronéis da Brigada Militar já clamavam por coletes à prova de bala, por munição, armamento e viaturas. Hoje, esses coronéis pedem projetos sociais que ajudem a população a se apartar do mundo do crime. Estão conscientes de que, se não tratarmos a questão social, a segurança pública jamais solucionará o problema. É preciso uma ação social forte por parte dos governos, além de fornecimento de equipamento e de efetivo capacitado para os organismos de segurança pública e, assim, combater a violência.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o debate na imprensa sobre Maioridade Penal e Pena de Morte, após divulgação de 12 mortes assumidas por um adolescente de 16 anos, em Novo Hamburgo?
Jair Krischke
- Dentro de um curto espaço de tempo, o fato ter assassinado 12 pessoas, motivado por vingança, deixa claro que se trata de uma pessoa doente. E é dessa forma que esse jovem deve ser visto pela sociedade. Evidente que essa patologia é produto da mesma sociedade, que se revolta por pura emoção. Quando avaliamos as leis no país, não podemos pensar em casos pontuais, pois não podemos criar leis para cada momento que a sociedade é atingida de uma forma brutal. A lei deve ser clara, pontual e proteger a sociedade como um todo. Não é o melhor momento para se pensar em leis, especialmente para baixar a idade da imputação penal. Temos que examinar se a medida educativa deve ser apenas de três anos, mas não concordo com a diminuição da idade penal. Amanhã ou depois vamos discutir para baixar a idade de 16 para 14, e quem sabe, futuramente, de 14 para 12. No entanto, não vamos solucionar o problema.

“Pena de morte no Brasil é impossível”

Já falar em pena de morte no Brasil é impossível. A constituição do Brasil, com a cláusula pétrea, veda expressamente a adoção da pena de morte. O Brasil é firmatário de convenções internacionais, especialmente da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de San Rose, que impede os países do pacto sem pena de morte de reintroduzi-la. Somente um tribunal infalível poderia condenar alguém à morte. Não existe no mundo tribunal que possa ser infalível. Além disso, quem confia na polícia e no judiciário que nós temos? Quando se fala em pena de morte em nosso país, se é tocado pela emoção. A razão nos mostrará que, sendo a pena de morte uma pena que não se pode retroagir, o erro não pode ser mais reparado.

Os países que adotaram essa drástica medida se deparam, diariamente, com erros. Após o condenado passar anos no aguardo da pena de morte, é comum constatarem que houve erro do judiciário. Injustiça comum nos Estados Unidos, com polícia muito mais qualificada que a nossa e judiciário menos assoberbado do que o nosso.

Algumas pesquisas afirmam que países que adotavam a pena de morte e depois a aboliram, como a Áustria, os crimes hediondos diminuíram sensivelmente. E, em países onde não existia a pena de morte e a adotaram, eles não sofreram nenhuma alteração, e até cresceram. Conforme pesquisa multidisciplinar realizada nos Estados Unidos, a cada momento de execução nos estados americanos que utilizam a pena de morte, aumenta o número de crimes hediondos. A partir dessa constatação, a equipe percebeu que, no período da execução do criminoso, a imprensa repercute a notícia e pessoas portadoras de patologias acabam cometendo crimes, na ânsia de ter o seu momento de glória e de aparecer na imprensa. Atualmente, nos Estados Unidos, a cada execução, aumentam o número de crimes com essas características em decorrência dos enfermos dessa sociedade, ao serem provocados pelo noticiário, acabam cometendo a mesma violência.

IHU On-Line – A origem do problema está na fragilidade da educação e das condições de vida?
Jair Krischke
- Que sociedade é esta que cobra do indivíduo aquilo que não lhe deu? Trata-se de uma sociedade que sonegou educação, alimentação e condições de vida dignas. Certamente, esse jovem nasceu em um lar de enormes carências, pois o menor carente, em geral, é fruto de um lar de maiores carentes. Além disso, por falta de uma alimentação adequada, na infância, teve significativo número de neurônios comprometidos, marcando indelevelmente a sua vida. Trata-se de uma sociedade que sonegou saúde pública, oportunidades, frente a um comportamento agressivo, cruel e reprovável. Uma sociedade que quer cobrar aquilo que não ofereceu quando se fazia necessário e vital.

IHU On-Line – Qual é a estrutura disponível para recuperá-lo?
Jair Krischke
- O estado brasileiro, assim como o Rio Grande do Sul, é muito carente de recursos. Essas pessoas ficam guardadas em depósitos, de menores e de maiores. Precisamos questionar se os peritos terão condições de dizer se essa pessoa poderá conviver socialmente. Se, por apresentar grave patologia, não poderá ser privado do convívio social? O estado, na sua precariedade em dar a atenção devida a essas pessoas, acaba punindo. Não vejo, nas instituições, estrutura capaz de atender casos graves como esse. Mede-se essa falta de estrutura já nos desvios de conduta de menor importância. Esses menores ficarão três anos jogados, depositados, e, após esse período, serão libertados para praticarem os mesmos ou até crimes piores. No Brasil, o Código Penal é aplicado com rigor, mas as leis de execuções penais e o próprio Estatuto do Menor e do Adolescente responsabilizam o estado por uma série de atividades que não são cumpridas.

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