Edição 252 | 31 Março 2008

A violência em São Leopoldo. BR-116 é rota para operações criminosas

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Patricia Fachin

Com a interiorização do crime, aumentou a sensação de que “só estamos protegidos em condomínios super-fechados”, avalia Ronaldo Henn

“Formamos uma sociedade cuja constituição desde sempre foi marcada pela extrema violência”, afirma Ronaldo Henn, professor do PPG em Ciências da Comunicação da Unisinos. Em entrevista à IHU On-Line, por e-mail, o ex-coordenador do Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre Violência destaca, no Rio Grande do Sul, os intensos conflitos entre gangues identificadas com torcidas de futebol. Por trás dessas ações de violência entre os jovens, explica, “há a questão de construção de identidades”, nas quais problemas históricos “mal resolvidos se associam à testosterona fervilhante e à baixa auto-estima criando explosões violentas”.
Questionado sobre a interiorização dos conflitos urbanos nos municípios do Vale do Sinos, Henn diz que as cidades da região apresentam uma peculiaridade que favorece a incidência de crimes: eles “são cortados pela BR-116, que funciona como rota para operações criminosas”. O aumento da fiscalização em grandes centros faz com que criminosos migrem para lugares menores e pacatos. Com isso, complementa, “começamos a ter aquela sensação de que não há lugar seguro no interior ou na praia”.
Ronaldo Henn é jornalista, graduado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), mestre e doutor em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, é docente da Unisinos.

IHU On-Line - Como o senhor percebe o avanço da violência no espaço urbano? Qual é a origem desses conflitos e por que estão aumentando de maneira incontrolável?
Ronaldo Henn
- Os conflitos, dos quais temos hoje uma percepção exacerbada e que assumem na contemporaneidade tons catastróficos e midiáticos, não são recentes, muito pelo contrário. Formamos uma sociedade cuja constituição desde sempre foi marcada pela extrema violência. Somente o nosso passado escravocrata mal resolvido, ainda muito vivo nas tensões contemporâneas, é de uma violência que insiste em ecoar nos porões das delegacias deste país. Entre o pelourinho, em que os escravos eram castigados, e o pau de arara, em que os pobres são torturados, temos o mesmo movimento violento em ação.
O que muda é a complexidade da sociedade que passou por processos de transformações econômicas e políticas intensas, sobretudo na segunda metade do século passado, e hoje vive imersa em um contexto globalizado em que o consumo, principalmente o que envolve bens tecnológicos de ponta, é o seu grande motor. Neste cenário difuso, fluido, poroso, no qual questões pregressas da formação da nossa sociedade sequer foram resolvidas, parte desta violência de origem se transforma em criminalidade, que também incorpora um censo de organização global impressionante. E, pelos estudos que desenvolvemos no grupo transdisciplinar hoje extinto, os apelos do consumo em todos os níveis, envolvendo até mesmo os corpos das pessoas, funcionam como mola propulsora dos conflitos urbanos que vivem um processo de segmentação e diversificação. Podemos dizer que há várias origens para este estado de violência atual, inclusive os de ordem neurocerebral. No entanto, eu estou convencido que, no caso brasileiro, a fusão dos processos violentos pregressos com esta ode desmedida ao consumo globalizado faz toda a diferença nas especificidades de violências e criminalidades que enfrentamos todos os dias.

IHU On-Line - Como se instaurou a cultura do medo na região do Vale do Sinos? De que maneira a população lida com esse cenário de violência?
Ronaldo Henn
- O Vale do Sinos, fazendo parte de uma região metropolitana populosa e industrializada, foi incorporando muito rapidamente situações de exclusão e crime que se verifica em centros urbanos mais densos como os formados por São Paulo e Rio de Janeiro. E aqui há uma peculiaridade que favorece a incidência de determinados crimes: as cidades do Vale do Sinos são cortadas pela BR-116, que funciona como rota para operações criminosas, incluindo fugas. Por outro lado, o processo de favelização, disparado na década de 1970 com o êxodo rural e a conversão das cidades como objeto de desejo e emprego, se intensificou nas sucessivas crises econômicas pós-73. Mas há outro componente importante. No início da década de 1980, São Leopoldo ainda conseguia manter certos laços sociais, culturais e econômicos que foram se dissolvendo com a globalização. Só no comércio, para se ter uma idéia, a grande maioria das lojas que eram locais e mantinham determinados laços com a comunidade foram progressivamente substituídas pelas grandes redes. Isso provocou uma mudança radical no próprio design da cidade. No plano da cultura, ela passou a conviver com tribos que se hostilizam e se organizam territorialmente em nichos distribuídos pelo centro. Enquanto isso, na periferia, o crime organizado vai se fortalecendo na medida em que existem regiões estratégicas, próximas da BR-116, e que funcionam como rotas. E passa a atrair toda uma juventude sem perspectivas, louca para ter o “tênis da hora”. A classe média, por sua vez acuada, ergue muros e grades. Toda uma estética calcada no medo ganha forma.

IHU On-Line - São Leopoldo é apontada como uma das cidades gaúchas mais violentas. Nessa realidade, a criminalidade juvenil ganha bastante destaque. Como compreender as ações violentas desses jovens? As relações familiares têm contribuído para essa mudança?
Ronaldo Henn
- Ao longo de 2005, fizemos uma pesquisa específica em São Leopoldo. O que ficou evidente, para nós, era a excessiva internalização, que prefiro chamar de confinamento, de adolescentes em conflito com a lei. Isso não chega a se constituir em um indicador de que houve um aumento da criminalidade juvenil, até porque a percepção deste aumento é muito mais resultado da maneira sistemática como os jornais ampliam noticiários de crimes que envolvem adolescentes. Em cotejamento com outras pesquisas, a incidência de adolescentes em crimes é bem inferior àqueles que estão na faixa dos 20 aos 24 anos, que forma a grande maioria de apenados. O que nos chama a atenção é que a imensa maioria destes jovens confinados é de origem muitíssimo pobre e com laços familiares e comunitários fortemente comprometidos. Se muitos adolescentes são confinados e não se percebe melhoras, é sinal de que este sistema não funciona. Uma intervenção mais positiva e inventiva nas comunidades vulneráveis, em que estes laços pudessem ser reconstituídos com a perspectiva de novos horizontes, expectativas, aumento da auto-estima, da capacidade lúdica, traria resultados bem mais interessantes do que o mero confinamento, que funciona mais como um cordão de isolamento de cimento armado.

IHU On-Line - Que tipo de violência tem predominado na região?
Ronaldo Henn
- A nossa pesquisa focou o ano de 2005 e nela os furtos e roubos ganhavam destaque. Entretanto os homicídios, mesmo que viessem diminuindo desde 2003, ainda apareciam num volume significativo, em torno de 50 casos. É importante observar que a maior parte destes casos acontece exatamente nas comunidades carentes, o que nos leva a supor que a população pobre é bem mais vulnerável a situações fatais de criminalidade do que outras.

A chamada violência doméstica também apareceu como algo significativo. Como nossas fontes foram os boletins de ocorrência das delegacias, o que nos pareceu não foi um aumento de casos de agressões de homens a mulheres, mas sim algo de positivo. Ou seja, as mulheres apresentam atitudes mais afirmativas e vão às delegacias denunciar seus companheiros agressores.
Agora, o que vem me chamando à atenção nestes três últimos anos é o aumento de notícias dando conta de conflitos muito intensos entre gangues identificadas com torcidas de futebol. Há toda uma questão de construção de identidades nestas fronteiras da globalização nas quais questões históricas mal resolvidas se associam à testosterona fervilhante e à baixa auto-estima, criando explosões violentas e, infelizmente, muitas vezes fatais.

IHU On-Line - Em 2005, o senhor coordenou o Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre a Violência. Levando em consideração os dados obtidos na pesquisa, que mudanças são perceptíveis no município? Por que São Leopoldo ainda está entre as dez cidades mais violentas do estado?   
Ronaldo Henn
- Penso que a cidade vem se ocupando com esta questão com certa determinação. Existe uma secretaria municipal para tratar deste assunto, o que é muito positivo. Medidas preventivas vêm sendo adotadas, como o fortalecimento da guarda municipal e distribuição de câmeras de vigilância em locais emblemáticos. Considero tais medidas, que podem ser reforçadas com o aumento de um policiamento mais equipado, muito importantes, mas não suficientes. Defendo uma espécie de promoção dos sujeitos nas comunidades vulneráveis, com ações que envolvam os jovens em processos midiáticos, culturais, esportivos e profissionalizantes. Tais operações devem envolver também as escolas, que também se transformam em cenários para agressões de toda a ordem. Experiências como estas já demonstraram resultados imensamente positivos em vários lugares, como o bairro Restinga, Porto Alegre, no ano de 2001, em Diadema e em regiões de Belo Horizonte. São situações como estas que podem, até mesmo, superar traumas históricos que só são percebidos como visíveis quando acontece um assalto envolvendo a nossa família.

IHU On-Line - A violência sempre foi assunto de debate em grandes cidades. Hoje, a temática preocupa pequenas localidades do interior. Essa mudança de paradigma demonstra que está ocorrendo a “interiorização do crime”? Que fatores contribuem para esse deslocamento?
Ronaldo Henn
- O aumento de aparatos privados e públicos de segurança nas grandes cidades acaba criando dificuldades para os criminosos. Eles começam a migrar para os lugares menores, pacatos, nos quais estas dificuldades não existem. Com isso, começamos a ter aquela sensação de que não há lugar seguro no interior ou na praia que não seja dentro de um condomínio super fechado e protegido. Neste sentido, a idéia de se criar consórcios de segurança entre os municípios de determinadas regiões que, além de ações de repressão e prevenção, prevejam ações de afirmação dos sujeitos, deveria ser perseguida com mais entusiasmo pelas administrações públicas.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a cobertura da mídia, no que se refere à violência entre jovens e até mesmo ao ingresso desses na criminalidade? Por que a sociedade banaliza questões como essa que exigem um debate profundo?
Ronaldo Henn
- Esta idéia de banalização ainda não está muito clara para mim. O que mais me preocupa na cobertura sobre crimes são as operações de enquadramento que, sobretudo, o jornalismo dispara. Os critérios de noticiabilidade e edição, que fazem como que determinados crimes pareçam ter mais importância do que outros, são algo que me assusta. A maioria daqueles quase 50 homicídios ocorridos em 2005 não ultrapassou o limite de pequenas notas noticiosas, sem nexos estabelecidos entre elas. Um único crime que tem como vítima alguém das classes abastadas ganha, no mínimo, meia página e uma chamada de capa. Há um hiperdimensionamento de coisas como o aumento da criminalidade juvenil, que não condiz com o que apontam as pesquisas. A temporalidade de produção do noticiário é muito cruel, fazendo com que a própria mídia, na medida em que define valores, hierarquiza e mantém o silenciamento de camadas da sociedade historicamente silenciadas, se torne um agente de violência.

O que é o Grupo de Estudos Transdisciplinares?
O Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre Violência foi criado em 2002 e funcionou até o ano de 2006. Neste período desenvolveu dois projetos: Criminalidade e espaço urbano, as transversalidades da violência e Criminalidade e as(trans) mutações na cidade. O segundo estudo contou com um diagnóstico sobre aspectos da criminalidade em São Leopldo, em parceria com a Secretaria Municipal de Segurança Pública.
O grupo era composto pelos pesquisadores Ronaldo Henn, professor do PPG em Ciências da Comunicação, Carmen Oliveira, professora de Psicologia e atualmente responsável pela sub-secretaria para assuntos de infância e juventude na Secretaria de Direitos Humanos do governo Lula, e por Maria Palma Wolff, professora de Serviço Social e Marta Conte, professora de psicologia e doutora em Psicologia Clínica.

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