Edição 250 | 10 Março 2008

Doença como lucro versus saúde como direito

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Stela Meneghel

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o Arteplex, do Shopping Bourbon.

$O$ saúde é mais um filme de Michael Moore, focado no tema da atenção em saúde, mostrando o sistema de saúde americano pautado na medicina liberal, cuja assistência fica a cargo das seguradoras de saúde, e comparando-o com países que possuem a medicina estatizada através de sistemas nacionais de saúde: Canadá, Inglaterra e Cuba.

A questão proposta pelo diretor é: “Por que nós, o maior país ocidental industrializado, não temos uma cobertura gratuita e universal do sistema de saúde?”. A paternidade do sistema privado de saúde é atribuída a Richard Nixon (presidente dos EUA) e a John Ehrlichman (conselheiro de Nixon), cuja conversa de 17 de Fevereiro de 1971 foi recolhida por Moore junto ao Gabinete de Gravações da Sala Oval.

O estilo é o mesmo utilizado por Moore nos filmes anteriores: Tiros em Columbine e Farenheit 11 de setembro. Um documentário motivado por um tema polêmico, construído com dados secundários, relatos de casos e o especial senso de humor que o leva a abordar figuras públicas, a distribuir panfletos pelas ruas ou mesmo levar roupa suja para ser lavada na Casa Branca.

Considero este filme didático: ajuda-nos a fazer a defesa do SUS (Sistema Único de Saúde), desmistifica algumas críticas, tais como as filas de espera, a dificuldade em fazer exames complementares, a demora para receber tratamentos de maior complexidade e a pretensa remuneração aviltante dos profissionais de saúde.

No Brasil, o SUS foi viabilizado em mais de dez anos de luta pelo movimento da Reforma Sanitária, que congregou amplos setores da sociedade civil organizada e dos serviços de saúde. Até então, grandes parcelas da população (agricultores, ambulantes, empregados domésticos) não tinham acesso à atenção à saúde.

No Brasil, o SUS é responsável, além da assistência médica, pelo desenvolvimento de programas de educação em saúde; pelas ações de vigilância sanitária e epidemiológica; e pela atenção integral e universal da população em todos os níveis de complexidade.

Em que país o Estado oferece assistência integral para toda a população portadora da HIV/AIDS, câncer e problemas renais crônicos que exigem hemodiálise? Realiza a maioria dos procedimentos de alta complexidade, como as cirurgias cardíacas, internações psiquiátricas, transplantes de órgãos? Não é com certeza os Estados Unidos de Bush e de Nixon, onde os políticos comprometidos com lobbies da indústria farmacêutica e seguradoras de saúde têm sistematicamente minado a discussão deste tema, é o que nos diz Michael Moore em $OS saúde.

Nos países onde há um sistema nacional de saúde, essa política impactou na diminuição da mortalidade nos grupos mais vulneráveis (crianças menores de um ano e na faixa pré-escolar, parturientes) nos grupos tradicionalmente excluídos: negros, indígenas, migrantes e pobres.  Serviços de saúde públicos e universais propiciam acesso facilitado à atenção em saúde de populações historicamente marginalizadas e melhora nos indicadores de nutrição, morbidade e mortalidade. Sistemas únicos de saúde representam uma política pública universal, socialmente controlada, financiada pelo Estado e direcionada pela integralidade, equidade e universalidade. 

Mas o Sistema Único de Saúde brasileiro não está totalmente a salvo, como ocorre na Inglaterra. No Brasil, a grande mídia bombardeia intensamente o SUS, apontando e ampliando suas limitações e falhas e fazendo ouvidos de mercador frente a suas conquistas e mesmo em relação à inquestionável melhoria dos indicadores sanitários. Há sempre o perigo de desmonte e privatização do sistema, já que o Brasil e a América Latina, com seus milhões de famílias de classe média, representam um mercado potencial extremamente rendoso para as seguradoras de saúde.

O sistema nacional de saúde inglês foi estruturado no pós-guerra e atende atualmente quase que a totalidade da população inglesa por meio da política de saúde da família (um modelo que inspirou o Programa de Saúde da Família que vem sendo implementado no Brasil). Em $O$ saúde, Moore visita uma farmácia, indaga sobre o preço dos medicamentos (que possuem um preço padrão pré-fixado), pergunta ironicamente ao farmacêutico onde está a seção de perfumes, alimentos e detergentes e faz uma vista domiciliar a um próspero médico de família.

No Brasil, assim como nos Estados Unidos, o setor de planos de saúde surgiu e se consolidou à margem de qualquer controle do Poder Público e dos cidadãos. Os conflitos entre as empresas e os consumidores vêm de muito tempo, e muitos deles ainda estão sem solução, já que a finalidade primordial dos planos de saúde é o lucro. Em 2000, as empresas que operam com planos de saúde lideraram o ranking de denúncias junto ao Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) brasileiro. As maiores reclamações se referem ao desrespeito à lei e prejuízos ao público, e as maiores vítimas são os idosos, na medida em que sofrem com os aumentos abusivos aplicados na mudança por faixa etária.

$O$ saúde recebeu algumas críticas, como a de que o autor utiliza um raciocínio circular para tentar provar os seus próprios argumentos e a de que os sistemas nacionais de saúde não impactaram na saúde das populações. Estas críticas caem por terra frente aos dados estatísticos publicados pela OMS que mostram como Cuba, um país pobre e que tem sofrido historicamente com o bloqueio econômico, possui alto índice de desenvolvimento humano, e a segunda mortalidade infantil do continente, além de elevada expectativa de vida e padrão de excelência na atenção em saúde.

O final do filme é surpreendente: a equipe de filmagem realiza uma quixotesca viagem a Cuba acompanhada de um grupo de americanos que foram lesados pelo Estado ou pelas seguradoras. A idéia era irem a Guantánamo e usufruírem a atenção prestada pelo sistema de saúde penitenciário. Claro que não conseguem, porém são amistosamente acolhidos pelo povo cubano, recebem atenção médica gratuita e tratamento de “hermanos” pela solidária corporação de bombeiros de Havana. Sem dúvida, ponto para Cuba, para Moore e para os países que investem na saúde como direito da população e dever do Estado!

 

Ficha técnica

Título original: Sicko
Diretor: Michael Moore
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 113 minutos
Ano de lançamento: 2007
Elenco: Michael Moore, Reggie Cervantes, John Graham, William Maher e LInda Peeno.
Resumo: O filme de Moore traça o painel do deficiente sistema de saúde americano. A partir do perfil de cidadãos comuns, somos levados a entender como milhões de vidas são destruídas por um sistema que, no fim das contas, só beneficia a poucos endinheirados. Depois de examinar como o país chegou a esse estado, o filme visita uma série de países com sistema de saúde público e eficiente, como Cuba e Canadá.

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