Edição 249 | 03 Março 2008

Da ingenuidade ao cinismo: o Brasil de Sérgio Bianchi

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Bruna Quadros

Filme de Bianchi afirma que domínio e opressão são construídos através de relações de poder que estruturam nosso cotidiano, e que vivemos uma transformação da realidade na qual encontramos sinais de justiça aliados à liberdade, diversidade e dignidade entre pessoas, culturas, religiões

“Não seria a própria sociedade brasileira que estaria reduzida à sonolência e a fazer do próprio país uma latrina? Ora, o que o filme mostra é visível todos os dias nas grandes e pequenas cidades. O escândalo flagra a nossa hipocrisia e é ótimo se isso oportuniza o debate ético a que o filme se propõe”, observa o professor Dr. Joe Marçal, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), falando sobre a obra Cronicamente inviável, do diretor Sérgio Bianchi. O filme será exibido dia 8 de março, próximo sábado, na sala IG 119, junto ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), durante a programação do evento “Páscoa 2008 – Um grito contra a violência”. Joe Marçal conduzirá um debate com o público ao lado da Profa. Dra. Gláucia Angélica Campregher, da Unisinos.

Joe Marçal é mestre e doutor em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST). Sua tese de doutorado intitula-se Por uma teologia da imagem em movimento: uma troca de olhar a partir da obra cinematrográfica de Andrei A. Tarkovski, no horizonte da teologia de Paul Tillich.Também é assessor executivo da Secretaria Permanente do Fórum Mundial de Teologia e Libertação.

Confira, a seguir, a entrevista realizada pela IHU On-Line por e-mail com Marçal.

IHU On-Line - Cronicamente inviável é um filme que revela as mazelas do Brasil. Quais as vantagens e desvantagens de "desmascarar" um país tido como "tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza"?
Joe Marçal
- Sugiro partirmos de outra questão: sobre o que, de fato, o cinema pode revelar. O filme de Bianchi, com facilidade, seria alistado entre os “realistas”, aqueles que mostram as coisas como elas são etc. Penso que é isso que a idéia de “desmascarar” aponta. É mesmo interessante perceber como se tornou comum chamar de realistas filmes que querem mostrar a sociedade por sua violência, pobreza e outras mazelas. Parece que essas coisas são mais reais que a solidariedade e a justiça, por exemplo. Se o filme nos ajudar a perguntar a razão disso, já temos aí uma boa razão para assisti-lo. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que o cinema não mostra realidade alguma sem antes construir uma relação com o mundo, com as coisas e com a vida. A escolha de um ponto de vista e um ponto de escuta determina o argumento e o olho da câmera. Creio que é essa relação que importa perceber e refletir. Ora, é evidente que Bianchi fez uma opção por um olhar que proporcionasse o choque com uma visão generalizada em relação ao Brasil como um país de maravilhas e só. Esse choque, porém, é assumido como um desencanto e uma frustração tão generalizada quanto essa outra visão aparentemente ingênua. Por exemplo, há uma cena em que a moça que perdeu a infância em uma carvoaria no interior do Nordeste e se torna a gerente e traficante de crianças conta sobre um relato de sua avó a respeito de como Deus criou o mundo, separando céus e terra para ficar de pé – o que explica a vegetação retorcida e “amassada” do cerrado. É uma história bonita, que relaciona a noção de criação com o despertar de um Deus dorminhoco. Contudo, na conversa que segue com sua ausência, o comentário é que isso também explica que, uma vez que as árvores no cerrado continuam tortas, Deus só vem ao Brasil para dormir e fazer o que se faz quando acorda, isto é, necessidades fisiológicas (a expressão corrente é “fazer merda”, que embora chula, não há equivalente como uma ação deliberada ao erro com conseqüências incontornáveis...). Notem, contudo, que são sentidos contrastantes - da ingenuidade ao cinismo. Essa passagem direta acentua a inviabilidade social que o filme declara crônica no Brasil. Mas nós podemos nos perguntar também por que o escândalo não se dá em relação às nossas próprias expectativas e atitudes nessa dinâmica social. Não seria a própria sociedade brasileira que estaria reduzida à sonolência e a fazer do próprio país uma latrina? Ora, o que o filme mostra é visível todos os dias nas grandes e pequenas cidades. O escândalo flagra a nossa hipocrisia e se isso oportuniza o debate ético a que o filme se propõe, ótimo. Mas desde que evitando um cinismo irmão gêmeo da ingenuidade que o filme também quer criticar.
 
IHU On-Line - Em que medida Cronicamente inviável contribui para alertar a sociedade brasileira, acerca do quadro que se divide em dominantes e oprimidos?
Joe Marçal
- No mínimo, o filme torna mais complexa a questão, desviando de rótulos estanques e salientando que domínio e opressão são construídas através de relações de poder que fazem nosso cotidiano. Não me parece, porém, que o filme tem uma intenção clara a esse respeito, de distinguir e elaborar uma leitura da questão. Mais enfático é o recado de que em toda e qualquer condição social cada um e cada uma quer cuidar mesmo é de garantir o seu quinhão. Isso poderia nos fazer refletir em como a noção dominante-oprimido nos ajuda a entender a sociedade hoje. É interessante lembrar a parte da entrevista da sulista que se passa durante o filme, quando diz que “a liberdade de consumo foi a única que deu certo”. Ela tem razão do ponto de vista ideológico, que é – para bem ou mal - o mais efetivo da sociedade, em termos de princípio de organização. Isso porque a divisão do quadro entre dominantes e oprimidos em nosso contexto é muito sutil e, inclusive, pode mudar conforme a esfera social em que se está. Ocorre-me Hannah Arendt  em suas reflexões sobre liberdade, quando destaca o papel ilusionista, ou ideológico, que essa noção exerce em nossa sociedade. A liberdade de consumo é uma ilusão de liberdade muito eficiente nesse sentido porque nos ajuda a conviver com o absurdo colonialismo em qual vivemos em nosso tempo, e de modo tão passível. Porém, o filme deixa a desejar quanto a uma reflexão mais profunda da questão, o que é sintomático, considerando a via crítica que opta, a do cinismo. E não o digo como escola filosófica, mas como forma de antipatia individualista mesmo. A resposta não é simples e deve ser elaborada por nós, espectadores e espectadoras. Nós continuamos vivendo com uma realidade cuja responsabilidade é nossa e de ninguém mais. E no cotidiano não tem diretor que decide enquadramentos.

IHU On-Line - Outro título reservado para o filme Cronicamente inviável foi "Eu não tenho culpa". Neste sentido, a quem cabe a responsabilidade de acabar com as diferenças, sejam elas sociais ou raciais?
Joe Marçal
- Não sabia que o filme poderia ter ganhado esse título, mas acho que faria muito jus à obra, porque ela revela seu ponto fraco, a culpa. O “x” da questão é justamente passar de uma perspectiva de culpa para a responsabilidade. A culpa é pouco ou nada construtiva. Mas também não concordo com responsabilidade de acabar com diferenças, e sim o contrário. Responsabilizar-se pelas diferenças e manter-se responsável diante delas. Não há vida sem diferenças e a sociedade, enquanto projeto harmonizador da vida em uma comunidade perfeita e “limpa”, criou as piores guerras vividas pela humanidade. A quem cabe essa responsabilidade pelas diferenças? A toda a sociedade, e todos e todas aquelas que pertençam a esse conjunto de diferenças que fazem uma sociedade ser o que ela é.

IHU On-Line - No papel de cidadão brasileiro, você acredita que o Brasil seja um país cronicamente inviável? A crise social que assola o país tem solução?
Joe Marçal
- A inviabilidade crônica foi inventada por nós, seres humanos, quando criamos a bomba atômica. A possibilidade de inviabilizar a vida de ecossistemas, sociedades e culturas parece não ser coerente com o princípio auto-organizativo desses sistemas. E isso, basicamente, porque, ao compartilharmos a vida, nós acreditamos uns nos outros, e não posso deixar de acreditar em mim e em você. Modelos de relação, de produção, de conhecimento e todas essas atividades que fazem o dia-a-dia é que mudam ou mesmo encontram seus limites. A própria ótica da cidadania já é um convite para uma outra ordem de relação e organização social. Voltando ao filme, eu diria que ele é um bom exemplo de um olhar cansado a respeito da viabilidade de um determinado Brasil, mais identificado com as expectativas de uma classe média que, ao final dos anos 1990, vivia plena frustração. É verdade que a frustração permanece e até alcançou as camadas populares durante o atual governo, o que poderia ser tomado como algo que testifica um mal crônico. Mas talvez haja nisso tudo uma inversão esperançosa, de que soluções deverão ser gestadas pela sociedade numa organização mais ampla e participativa. A crise em que vivemos é de modelo não do país, ou da nação. Prefiro entender, portanto, que vivemos uma transformação, cuja visibilidade temos de buscar nos enquadramentos da realidade em que encontramos sinais de justiça aliados à liberdade, diversidade e dignidade entre pessoas, culturas, religiões, ecossistemas... a Vida.

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