Edição 249 | 03 Março 2008

Sangue Negro. Cobiça e vazio

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André Dick

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre, como o Arteplex, do Shopping Bourbon.

Título original: There will be blood
Diretor: Paul Thomas Anderson
Gênero: Drama
Tempo de duração: 158 minutos
Ano de lançamento: 2007 (EUA)
Elenco: Daniel Day-Lewis, Dillon Freasier e Paul Dano
Resumo: Daniel Plainview é um explorador de petróleo que chega a uma nova comunidade, em que precisa dividir as atenções com um pastor, Eli Sunday. O conflito é mote para mostrar a conquista
de petróleo na virada do século XIX para o século XX nos Estados Unidos.

Confira, a seguir, o artigo de André Dick sobre a obra.

Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, foi um dos indicados ao Oscar de melhor filme em 2008, e não por acaso. Desde seus minutos iniciais, com um silêncio interrompido apenas pela estranha música de Jonny Greenwood, guitarrista do grupo Radiohead, trata-se de um tipo de cinema que andava esquecido em Hollywood: lento, simétrico, mas de forte impacto emocional. Não são necessários muitos diálogos – o que é raro no cinema atual - para que o espectador se sinta interessado pela trama apresentada, sobretudo na primeira e silenciosa meia hora.

Baseado no livro Oil!, de Upton Sinclair, o filme também recupera a carreira de Paul Thomas Anderson, que depois de Boogie nights e Magnólia, duas obras de rara qualidade, caiu no maneirismo de movimentar a câmera como se quisesse dar um impacto a cada seqüência, provocando, na maioria das vezes, sono no espectador, como no fraco Embriagado de amor. Sangue negro parece, em relação a este, filme de outro diretor, ou melhor, do realizador de Magnólia: alguém capaz de contar uma história com raro talento e se utilizar do talento de excelentes atores para atingir seu objetivo. Daniel Day-Lewis, por exemplo, no papel de Daniel Plainview, o prospector que chega, no início do século XX, a comunidades para escavar poços de petróleo e trazer riqueza, de preferência para seu próprio bolso, está em seu melhor momento na carreira e recebeu seu segundo Oscar de melhor ator (o primeiro havia sido em 1990, com Meu pé esquerdo).

Plainview é acompanhado pelo filho, a quem chama de H.W. (Dillon Freasier). Eles são procurados para explorar uma região que tem um potencial petrolífero, no Oeste dos Estados Unidos. A questão é que nela há uma família com um rapaz que aspira a ser pastor, Eli Sunday (Paul Dano, numa bela interpretação). A partir disso, o mote de todo o enredo se dirige a um conflito básico entre capitalismo e religião, o qual poderia ser sumariamente previsível, tratando da divisão entre alma e materialismo. Acaba ficando nas mãos do pastor Eli querer converter o explorador. Este conceito revela um lugar-comum, por sinal, e Anderson não sabe, a princípio, administrá-lo, mas ainda assim o filme tem uma atmosfera tão forte que nos esquecemos desse maniqueísmo. Isso porque se conclui, a partir de determinado momento, que o cineasta pretende mostrar que as concepções de religião e a de capitalismo estão cercadas por um profundo desespero em relação à realidade humana. Ambas se constroem, muitas vezes, lado a lado – a exploração de petróleo é feita ao mesmo tempo em que uma casa é construída para abrigar seguidores do pastor, na única seqüência mais iluminada do filme, caracterizado por cores escuras -, incluindo até a maneira como entendemos a violência que atinge os principais personagens. Ou seja, parece não haver sossego nem na imagem de um Deus protetor capaz de ajudar o indivíduo a escapar de seus problemas, aqueles que o capitalismo finge encobrir.
Todos os elementos de Sangue negro ajudam a confirmar essa idéia. Num mundo liderado por homens, no qual as mulheres saem da mesa para que os homens possam falar de negócios, e dominado pelo dinheiro e pela cobiça, os planos longos e a fotografia de Robert Elswit, premiada justamente com o Oscar, mostram o vazio de um universo que não pode ser transformado e nem se regenera. Esse vazio é cercado pela incomunicabilidade entre os homens, representada pela relação de Plainview com seu filho, que sustenta boa parte da trama e eclode perto do final, e com o homem que surge dizendo ser seu irmão. A única relação explícita do filme acaba se baseando apenas exatamente na falsidade, seja na tentativa de o desbravador de dinheiro ser salvo pelo pastor, que, posicionado como um profeta, sabe apenas fazer o espetáculo, mas não curar quem está ao seu lado, seja na figura de executivos com o objetivo de destruir famílias fingindo querer ajudá-las. É muito interessante, sob esse ponto de vista, o momento em que o pastor pede a Plainview para abençoar o poço de petróleo, como se fosse o responsável por trazer dinheiro a uma região pobre.

Em Sangue negro, uma pergunta constante é: o que é pecado? Devemos nos basear numa idéia divina para tentar nos salvarmos? Anderson – como responsável também pela adaptação do roteiro, ou seja, trata-se de uma obra autoral - parece cético em relação a esta escolha. Para ele, o perdão está ligado a conquistar dutos subterrâneos para fazer escoar melhor o petróleo. O crescimento de uma comunidade imersa no pecado é representada por escolher sempre entre a religião e o dinheiro, e ambas as escolhas parecem condenadas. Diante disso, nos perguntamos: para Anderson, se existe um mal, ele está de que lado? De quem quer salvar o outro sob a premissa de se manter como profeta ou de quem anuncia a prosperidade aos quatros ventos quando quer apenas enriquecer? Anderson também é cético em relação à idéia de família. Se há uma espécie de união entre familiares, é porque há algo que justifique financeiramente essa união. No caso de Plainview, ele apresenta seu filho como uma relíquia para obter um bom olhar sobre ele mesmo, um prospector interessado apenas no dinheiro.

Plainview e Sunday são figuras controvertidas exatamente porque não sabemos de que lado estão: suas ações, em determinado momento, se misturam e o vazio que os acompanha parece contaminar as pessoas que os cercam. São personagens delineados, no fim das contas, com uma complexidade quase ausente na cinematografia recente e se intensificam, sobretudo com a cena do batismo, sobre a qual não se pode dar detalhes, mas que revela a verdadeira intenção de Sangue negro. O fracasso pessoal desses personagens não representa, porém, o fracasso das condutas que os conduzem: exploradores de petróleo também construíram a América, com seus prós e contras, e a religião, que oferece um sentido à vida de muitas pessoas, também continua cada vez mais presente no dia-a-dia. No caso, os personagens representados em Sangue negro representam a si próprios e não a todo um sistema com os quais parecem se confundir, a não ser que caiamos no maniqueísmo.

Como cinema, de alto nível, Sangue negro passa, ao mesmo tempo, a ser um referencial potente de imagens elaboradas com um cuidado raríssimo. O Oeste americano é retratado, nesse vazio, com suas longas planícies e por bosques vazios, numa melancolia que lembra a de Os imperdoáveis, de Clint Eastwood. O céu azul, em muitas imagens, parece confrontar a terra crua, como no momento em que o pastor se dirige a Plainview e passa por um lodaçal que o reflete. A música de Greenwood, por sua vez, acaba tomando contornos dramáticos, quando quer dar um encerramento a conflitos baseados no dinheiro e nas trocas comerciais. E a câmera de Anderson, que em outros filmes caía num certo maneirismo, parece sempre pronta a fazer com que as ações dos personagens se intensifiquem. Por isso, a importância também do cenário vazio. A cena inicial, que mostra Plainview querendo descobrir jóias, mostra uma dedicação solitária digna de alguém que deseja, como um religioso, dar um sentido determinado à sua vida, e essa solidão, de certo modo, é ininterrupta mesmo quando ele tem dezenas de homens trabalhando para o seu crescimento.

Com todos esses aspectos, há uma complexidade maior do que aquela primeira premissa (a do conflito ente religião e capitalismo), que está evidente e parece até óbvia. Diante da violência da última seqüência, de um impacto visual e emocional potencializado pelas atuações de Day-Lewis e de Paul Dano, num dueto fantástico, no entanto, o sangue que parece escorrer não tem contornos definidos, é apenas neutro, como se o maniqueísmo fosse superado por uma reflexão mais contundente. Sangue negro pergunta ao espectador, a cada minuto, e isso é visível na parte final, por que o homem costuma se afastar de um de seus eixos centrais: a tentativa de compreender. A resposta, como sempre, nunca traz soluções, e é por isso que o filme perturba tanto o espectador. 

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