Edição 249 | 03 Março 2008

Karl-Josef Kuschel faz 60 anos: teologia em diálogo

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Paulo Soethe

Paulo Astor Soethe escreve sobre a importância da obra teológica do sexagenário Karl-Josef Kuschel

O coordenador do PPG em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Soethe escreveu o artigo que segue com exclusividade para a IHU On-Line. Nele, afirma que “Kuschel  é referência imprescindível para quem esteja atento ao diálogo entre religião e literatura, tanto do ponto de vista da teologia como dos estudos literários. Com olhar perspicaz e franco, não busca profissões de fé nas obras literárias, mas destaca nos grandes escritores a presença da religião, a tensa confrontação dos textos literários com as tradições religiosas”. Graduado em Letras Alemão-Português, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras, pela Universidade de São Paulo (USP), o Prof. Dr. Paulo Soethe cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha. Eis o artigo:

Em 6 de março, o teólogo Karl-Josef Kuschel completa 60 anos. Titular da cátedra de Teologia da Cultura e do Diálogo Inter-Religioso na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen, Alemanha, Kuschel é internacionalmente reconhecido, sobretudo em duas áreas: o diálogo inter-religioso entre judeus, cristãos e muçulmanos; e as relações entre teologia e literatura.
Doutor honoris causa da Universidade de Lund, na Suécia, Kuschel vem de uma tradição intelectual em que a teologia não ficou circunscrita a instituições confessionais, nem excluída do universo acadêmico “secular”. Sua atividade, inserida no âmbito do que chamaríamos uma “teologia pública” – hoje a expressão nos diz muito –, repercute em meios eclesiásticos, mas também no universo acadêmico e cultural não-religioso. A presença freqüente na mídia e sua atividade editorial (como diretor da série Religião e estética da Ed. Grünewald, por exemplo) associam-se à autoria de mais de 40 livros e centenas de artigos, em uma produção, sobretudo, acadêmica, mas também voltada ocasionalmente a um público mais amplo.

Em continuidade e aprofundamento de livros anteriores, desde Discordia en la casa de Abrahan. Lo que separa y lo que une a judíos, cristianos e musulmanes (Ed. Verbo Divino, Estella/Navarra, 1996), Kuschel apresentou em sua obra mais recente, com 683 páginas na edição original alemã, uma síntese teológica dos fundamentos para o triálogo entre as grandes religiões monoteístas: Judeus – cristãos – muçulmanos: origem e perspectiva (Ed. Patmos, Düsseldorf, 2007). O teólogo propõe e exerce nessa obra a prática de um “ecumenismo abraâmico” em que “não se pode mais pensar isoladamente no bem da Igreja, da Sinagoga ou da Umma”: agora, cabe ficar “atento, sem indiferença, ao destino dos demais ‘irmãos’” (p. 609). Não se trata, segundo Kuschel, de ignorar diferenças, “mas tornar passíveis de entendimento mútuo, em um espírito benéfico, as pretensões de verdade sustentadas em cada uma das religiões, irredutíveis a uma só” (p. 608). Vice-presidente da Fundação de Ética Mundial (Stiftung Weltethos) desde 1995, Kuschel desenvolve nessa linha de trabalho atividade integrada à de seu antigo mestre e atual interlocutor, Hans Küng , de quem havia sido assistente científico por duas décadas, até 1989.
De outra parte, Kuschel é referência imprescindível para quem esteja atento ao diálogo entre religião e literatura, tanto do ponto de vista da teologia como dos estudos literários. Com olhar perspicaz e franco, não busca profissões de fé nas obras literárias, mas destaca nos grandes escritores a presença da religião, a tensa confrontação dos textos literários com as tradições religiosas. Kuschel não incide na manipulação da literatura com fins religiosos, nem na obtusidade de quem ignora, na produção literária consagrada, o elemento religioso. Seu princípio é deixar os autores falar – na dicção que lhes cabe: a literária. E só então posiciona-se como teólogo e interlocutor. Para ele, as grandes obras de arte, por seu caráter livre e indeterminado, e por sua capacidade de representar a multiplicidade da existência humana, podem colocar o homem em contato intenso com o que está para além dele. Na verdade, é instável e irredutível que essas obras representam (a verdade de vidas humanas em sua graça e mistério, mas também em sua não rara tragicidade) a verdade divina presente sob a forma parcial que cabe ao homem apreender. Kuschel, ao ouvir os escritores, entrega-se a um exercício anunciado e criterioso de teologia intercultural: não pretende incorrer em falsa estetização da religião, nem em sacralização da arte. As experiências religiosa e estética preservam cada qual sua especificidade e valor próprio, e iluminam-se reciprocamente, em uma relação nem sempre pacífica de afirmação e crítica. Esse norte é seguido até as publicações mais recentes, como Deus adora esconder-se: esboços literários de Lessing a Muschg (Ed. Grünewald, Mainz, 2007).
Ciente do valor e força da literatura da América Latina para suas reflexões, Kuschel também dedicou atenção a alguns autores de nosso continente, como Jorge Luis Borges , Augusto Roa Bastos e Mario Vargas Llosa, este último com La guerra del fin del mundo, sobre o trágico episódio da Guerra de Canudos – um dos emblemas da fé popular e da crise de modelos religiosos em nosso país.
Na tradição teológica, Kuschel recorre nessa área em especial a Romano Guardini  e Paul Tillich , para partilhar com eles a convicção de um caráter de revelação ou antecipação presente na arte. Constata na literatura contemporânea o papel central da descoberta do ser humano como ser insondável, em constante situação de risco e de incerteza, por conta da própria liberdade. As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a ameaça ao meio ambiente e à vida, a inexorável consciência em relação à culpa do gênero humano e à fragilidade da pátina de civilização que recobre nossas relações sociais, políticas e econômicas – eis os fatores que ensombrecem a dicção literária de nosso tempo. Sem esquivar-se a isso, Kuschel pode concluir, no entanto, com o olhar do teólogo, que ao fim desse percurso resta muito mais que misantropia e indiferença. A paisagem obscura delineada em muitas obras serve para aguçar a pergunta sobre o sentido e legitimidade da Criação.

Kuschel mostra-se capaz de atender a um público leitor que em geral se vê frustrado por um discurso religioso e teológico atenuador: sua obra aborda com coragem o problema do sofrimento humano e do desespero diante de sua aparente absurdidade. É certo que atitudes defensivas por parte das igrejas, diante do avanço do pensamento ateísta, tiveram como conseqüência indesejada o cultivo da imagem de um Deus entronizado: intocável, severo e isento diante da história e da vida dos homens. E é certo que a teologia do amor de Deus e de Sua compaixão com a criatura vem reparar essa distância, no mundo cristão, e trazer uma contribuição inestimável, não só para a ação pastoral. Mas não se pode esquecer, por outro lado, o fato inegável de que ainda hoje, diante de situações extremas e aparentemente absurdas de sofrimento injusto, a teologia do amor e da cruz fazem apenas aguçar o problema da teodicéia, e não solucioná-lo de forma definitiva. Se o sofrimento é decorrência da liberdade da criatura, e se nessas situações o amor de Deus se faz sentir de maneira mais intensa, não se exclui que tal argumentação soe cínica para quem sofre. Kuschel se pergunta sobre a plausibilidade de falar no sofrimento vivido em Auschwitz como conseqüência do amor de Deus e da liberdade que Ele concede à criatura. E lança aí sua dúvida diante de soluções que, levadas ao extremo, colocariam Deus “em um nível ético inferior ao de qualquer pai ou mãe que respeitam a liberdade de seu filho, mas que tudo fariam para livrá-lo de situações de infelicidade extrema”.

Em inúmeras análises literárias, o teólogo procura um caminho reflexivo pelo qual se possa fugir ao ateísmo, mas também a uma teologia indevidamente apaziguadora. Sua reflexão enfrenta problemas como o da atitude de protesto contra Deus – tema freqüente na literatura deste século – e entende tal atitude como consideração última diante do Criador, expressão radical de clamor pela justiça divina, embasado na experiência histórica de fé e de confiança em Deus, projetada para o futuro.

O esboço de uma “teopoética”, de um “dizer bem” teológico, remete-se em Kuschel a uma recomendação de Karl Rahner  quanto à sensibilidade lingüística necessária para o exercício de reflexão nesse campo. Para se dar expressão à “silenciosa insondabilidade” de Deus, não há outro instrumento para a teologia senão a linguagem. E esse desafio a teologia o tem em comum com a literatura moderna: utilizar a linguagem para conferir dicção à impossibilidade de dizer plenamente. Teologia e literatura partilham a confiança na linguagem – mas enquanto instrumento de articulação da consciência das limitações dessa mesma linguagem. Eis o aprendizado que a teologia pode intensificar em si a partir do convívio com a literatura: como formular a falta de ciência plena, fundamento e resultado de toda a dicção sobre Deus; como expressar o fato de que não se dispõe do “objeto” de que se fala; como expressar que aquilo de que se fala é, afinal, inefável. Trata-se aqui de uma conclamação aos teólogos, no sentido de que seu dizer preserve o mistério de Deus, a irredutibilidade do Criador a fórmulas e normas pálidas.

Em sua obra, pautada pela reflexão sobre a diversidade religiosa, Kuschel não prescinde da identidade cristã. Ao analisar diversas obras literárias, em compêndios volumosos como Jesus na literatura universal. Balanço de um século em textos e apresentações (Ed. Patmos, Düsseldorf, 1999), revela que para muitos escritores do século XX, Jesus Cristo é representado como arquétipo de uma humanidade inconformista, rebelde e provocativa; que o Filho surge como instância reveladora da discrepância entre o ideal e uma realidade muitas vezes miserável; e que não é “apreensível” de forma plena, escapando a toda representação direta e redutora. Jesus, relido e novamente representado pelos escritores modernos, conserva a força já presente nos Evangelhos. Incorpora como nenhum outro, também na literatura, a dialética entre impotência e força, fracasso e vitória, derrota e grandeza.

Desde o surgimento da edição brasileira de trabalhos de Kuschel no volume Os escritores e as escrituras no Brasil (Ed. Loyola, São Paulo, 1999), o nome do teólogo é referência constante em trabalhos sobre literatura e teologia, arte e religião. Sua visita à América do Sul, por ocasião do lançamento do livro, na época, pode ser considerada o marco inicial da integração de pesquisadores brasileiros em torno dessa área do saber. A iniciativa conjunta de colegas no Brasil, no Chile e na Argentina, resultou em abril de 2007 na fundação da ALALITE, Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia, atualmente com sede em Santiago do Chile.
É de esperar que outras obras de Kuschel – para além de importantes trabalhos seus publicados recentemente pelo IHU, relacionados ao diálogo inter-religioso e os direitos humanos, e sobre pontos comuns e divergências entre Hans Küng e Bento XVI ¬– ainda venham encontrar eco na cena intelectual brasileira. Há muito que ser traduzido.

Após a importante visita de Hans Küng ao Brasil, em outubro de 2007, antecedida de viagens à Colômbia e ao México, é de esperar que também Kuschel retorne em breve, no interesse do projeto de Ética Mundial, que ambos conduzem na Fundação homônima, em Tübingen.

Por ora, cabe saudar Karl-Josef Kuschel pelo cumprimento dos 60 anos! E esperar que continue sua obra e o diálogo com a América Latina.

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