Edição 249 | 03 Março 2008

“Se existe ainda o socialismo em Cuba, isso é matéria de controvérsia”

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Patricia Fachin

O tão sonhado socialismo cubano foi profundamente reformulado com a abertura ao capital internacional, avalia Daniel Aarão Reis

Fidel atuou de diversas maneiras enquanto esteve no poder. Mas já deveria ter renunciado bem antes, a exemplo de Nelson Mandela, que “soube sair na hora certa”. A opinião é de Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em entrevista especial à IHU On-Line, por e-mail, o pesquisador destaca quatro períodos do mandato do ex-presidente cubano e afirma que todas as transformações ocorridas na Ilha tiveram algo em comum: “a incansável vontade, a descomunal ambição” de Fidel “permanecer no poder”. 

Aarão Reis é graduado e mestre em História, pela Universite de Paris VII, e doutor em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, atua como docente na Universidade Federal Fluminense (UFF).

IHU On-Line - Qual é a sua avaliação da renúncia de Fidel? Sob o comando de Raúl Castro, Cuba pode caminhar para o socialismo democrático?
Daniel Aarão Reis
- A renúncia de Fidel Castro vem tarde, muito tarde. Ele deveria ter saído há muito tempo, contribuindo no sentido de que a revolução não ficasse tão personalizada, e não houvesse tanto culto à sua personalidade. Exemplo deste ponto de vista foi o Nelson Mandela, que soube sair na hora certa, ficando na condição de reserva política e moral de seu país. Entretanto, a ambição de exercer o poder, pessoalmente, sempre foi muito forte em Fidel e isto o levou a se eternizar no poder com conseqüências muito negativas para a revolução.

IHU On-Line - Em que medida a política adotada por Fidel nesses 49 anos nos ajuda a compreendê-lo?
Daniel Aarão Reis
- Fidel adotou muitas e diferentes políticas enquanto se manteve no poder. E foi esta faculdade camaleônica, de mudar conforme as circunstâncias, que o ajudou, no final das contas, a se manter no poder. Houve a política revolucionária dos primeiros anos; houve, depois, a fase de subordinação à URSS, quando Fidel foi capaz de aprovar a invasão soviética da Tchecoslováquia; depois, houve o tempo da retificação e, agora, nestes últimos anos, esta política de abertura ao capital internacional, inconcebível nos anos heróicos da revolução. São estas mudanças, entre outras, que ajudam a entender os vários Fidéis que existiram ao longo deste meio século. Entre todos eles, um denominador comum: a incansável vontade, a descomunal ambição de permanecer no poder.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a associação que se criou entre Fidel e a Revolução Cubana? Ele foi transformado num mito?
Daniel Aarão Reis
- Avalio como uma tragédia, uma desgraça histórica. A revolução é um processo social, histórico, quando os movimentos sociais exercem sua autonomia. Quando ela se associa a uma pessoa só, é à custa da desvitalização do processo social. As pessoas se tornam pequenininhas em face da figura gigantesca do Jefe, como se tudo houvesse dependido de uma pessoa só. Elas se transformam como as rãs na fábula, clamando por um Rei, no caso, o Caballo, o grande Fidel, o comandante em Jefe etc.  Mas a associação se fez, está feita,  também é um processo histórico. Uma tristeza que tenha acontecido, mas aconteceu.

IHU On-Line - Antes da Revolução, Cuba era o paraíso das jogatinas e do tráfico americano. Com a Revolução e o comando de Fidel por 49 anos, Cuba firmou sua autonomia como nação e recuperou sua dignidade? Qual é a sua percepção da condução do governo cubano, por Fidel Castro?
Daniel Aarão Reis
- Cuba era o puteiro do Caribe realmente e com a Revolução saiu desta situação. Mas é falso dizer que isso ocorreu “com a revolução e o comando” de Fidel. No momento da vitória, Fidel era um grande líder, certamente, mas havia outros que ombreavam com ele, em prestígio e poder: Camilo, o Che, entre muitos outros. Havia outras organizações, como o Diretório Revolucionário Estudantil, muito forte em Havana. Desgraçadamente, seus principais líderes foram mortos no assalto ao palácio de Batista. Esta outra palavra “comando” foi se afirmando com o tempo, com o processo de militarização e hierarquização da revolução, centralizada por Fidel. Quando a liderança política se torna “comando”, quando os movimentos sociais se militarizam, adeus à liberdade de crítica e à democracia, foi o que aconteceu com Cuba. Não à toa, as cores da revolução que eram múltiplas, e do próprio Movimento 26 de Julho, que eram o vermelho e o negro, se transformaram numa só cor, o verde oliva do exército rebelde. Agora, realmente foi uma grande conquista da revolução ter recuperado a dignidade e a autonomia. Mas isto deve ao povo cubano e não a um líder só, por mais importante que tenha sido.

IHU On-Line - Cuba resistiu ao embargo americano e, ao contrário do que muitos especialistas pensavam, o sistema socialista permaneceu e, embora com poucos recursos, Cuba sobrevive e apresenta um dos melhores modelos em educação e saúde. Isso pode ser considerado um feito realizado por Fidel?
Daniel Aarão Reis
- Se existe ainda o socialismo em Cuba, isso é matéria de controvérsia. Para mim, sim, existe, mas profundamente reformulado em relação aos anos 1960, com suas aberturas ao capital internacional, restabelecendo inclusive situações vexatórias como a disseminação da prostituição e a proibição de cubanos freqüentarem determinadas lojas ou lugares de diversão, a menos que estejam acompanhados por estrangeiros com moeda forte. Quanto às reformas no plano da saúde e da educação, devem ser imputadas ao povo cubano. Claro, houve a liderança de Fidel, sem dúvida, e ele tem inegáveis méritos por isto, mas só os aduladores de Fidel é que se representam a situação como tendo sido “obra de Fidel”. Trata-se do velho e nefasto culto à personalidade que devemos evitar a todo o custo.

IHU On-Line - Questões como o auxilio educação, saúde, moradia se tornam pertinentes e importantes num governo, mesmo que ele seja visto como “ditatorial”? É preferível viver num país “democrático”, em que o Estado não ofereça as necessidades básicas aos seus cidadãos ou numa “ditadura”, mas com as mínimas condições de sobrevivência? Essas são comparações possíveis?
Daniel Aarão Reis
- Todas as comparações são possíveis. A polarização entre democracia e bem estar social é nefasta. Devemos lutar por sociedades que disponham de democracia, liberdade e bem-estar social, ao mesmo tempo. Por que a polarização? Cuba poderia ter as reformas sociais e a democracia. Por que não? A opção pela militarização, pela ditadura pessoal, estava no DNA da revolução cubana, mas não necessariamente teria desabrochado como desabrochou, não fosse a ambição de mando de Fidel e a tendência das pessoas em ter a proteção de um Rei, de um Pai Protetor. Mais lamentável nisto tudo é a posição de certos intelectuais que exercitam sua capacidade crítica frente a muitas questões, mas que, frente a Fidel, ficam como medusados, demitindo-se da condição de pessoas críticas. Não é a primeira vez que acontece na História. Já tínhamos visto o fenômeno acontecer em relação a Mussolini, Hitler, Stalin, Prestes e tantos outros. Veja, não estou dizendo que todos estes ditadores foram iguais ou desempenharam o mesmo papel histórico. Foram bem diferentes, mas têm entre eles este aspecto comum: corresponderem à demanda muito humana por segurança. A fábula das rãs e do Rei refere-se à espécie humana e não a marcianos.

IHU On-Line - A política e ideologia de Fidel ainda são pertinentes para os cubanos? Quais são os principais desafios a serem superados pelo novo governo?
Daniel Aarão Reis
- A política e a ideologia de Fidel mudaram muito ao longo dos anos. Como comparar, por exemplo, as políticas dos anos 1960 e as dos anos 1970 (período de subordinação, embora nunca incondicional, à URSS e a seus modelos de organização?), ou a dos anos 70 (estatização total) com as atuais (grande abertura em relação ao capital internacional)? Os tempos e as circunstâncias mudam e impõe mudanças nas políticas. Fidel foi essencialmente um pragmático, um camaleão, sabendo se adaptar às circunstâncias cambiantes e pensando, antes e acima de tudo, no Estado, no fortalecimento do Estado e de sua posição pessoal no “comando” do Estado. O fez com maestria notável, não por outro motivo conseguiu passar quase 50 anos no poder, o que é, a rigor, uma tristeza, um atestado de miséria, para ele e para as gentes que o amam. Apesar de tudo, vale sempre ressaltar que a Revolução Cubana, sempre liderada por Fidel, soube preservar certas conquistas fundamentais: as reformas sociais e a independência nacional. Que sejam mantidas, e aperfeiçoadas, num quadro de uma democratização que tarda e que, a meu ver, já perdeu suas melhores chances históricas de construção.

IHU On-Line - Como explicar o “amor” dos cubanos por Fidel? O senhor diz que ele virou um “ditador da Ilha” e que “não há nada de pior que possa acontecer a uma sociedade do que amar seus tiranos”. Quais seus argumentos diante dessa posição?
Daniel Aarão Reis
– É muito comum na história da humanidade as pessoas amarem os seus tiranos, principalmente quando eles se associam com reformas – políticas e sociais – que correspondem aos interesses gerais.

IHU On-Line - Fidel exerceu alguma influência sobre as esquerdas brasileiras?
Daniel Aarão Reis
- As maiores influências foram do Che e de Regis Debray. Mas os dois dialogavam muito com Fidel, sem dúvida. Resta, e isto foi e é muito importante, o exemplo, a atitude, a ousadia, em defesa dos programas sociais e nacionalistas. Nisto, a Revolução Cubana foi paradigmática e será sempre considerada como um marco na história do século XX.

IHU On-Line - O senhor deseja acrescentar mais alguma coisa?
Daniel Aarão Reis
- Neste momento em que Fidel, finalmente, se vai, é preciso combater a lamentável tradição do puxa-saquismo, da adulação acrítica, particularmente forte, e triste, entre intelectuais que existem para exercitar a crítica. Que o pensamento crítico tente explicar e compreender esta dinâmica personalista da política, das revoluções, em particular. Se isto for possível, estaremos oferecendo uma contribuição a que as pessoas acedam ao que há de mais importante para as sociedades e para as gentes: à autonomia, esta formosa palavra, tão maltratada em tempos de ditadura e líderes carismáticos. 

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