Edição 249 | 03 Março 2008

Acertos e erros: uma avaliação do governo cubano

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Patricia Fachin

As mudanças em Cuba “não representam um retorno ao capitalismo”

Cuba poderia construir o verdadeiro socialismo, “com democracia e liberdade”, mas as circunstâncias mundiais obrigam os cubanos a “adotar elementos da economia de mercado para sobreviver como nação e assegurar o bem-estar de sua população”, comenta o jornalista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Hélio Doyle. Os maiores problemas do país, como a alimentação racionada, por exemplo, são conseqüências da economia de mercado, adotada pelo país desde a década de 1990, explica ele.

Entre tantos equívocos e acertos no regime comandado por Fidel, o pesquisador ressalta que o poder popular cubano não assegura a participação dos cidadãos no governo como deveria, mas “chega mais perto do que nas ‘democracias’ capitalistas de países subdesenvolvidos e mesmo, em alguns aspectos, desenvolvidos, nos quais a democracia que um cidadão goza é proporcional ao dinheiro que tem”. 

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Doyle alerta que possíveis mudanças no regime, mesmo com a sucessão de Raúl Castro, são delicadas e questiona: “Como dar mais liberdade à oposição se ela mesma diz que seu objetivo é abri o país aos Estados Unidos, voltando à situação antes da revolução? Como aumentar a possibilidade de negócios privados sem aumentar as desigualdades sociais e assim aumentar as tensões na sociedade?”. Para ele, independente das alterações dos próximos anos, é imprescindível manter “algumas das características do socialismo que se tentou construir”.

Hélio Doyle é autor da dissertação de mestrado Revolução e Democracia: o poder popular em Cuba, realizada em 1992. Sobre o país socialista, ele produziu dois documentários: Cuba, o poder popular (1991) e As crianças de Chernobyl (1990). Ambos foram premiados. O primeiro recebeu o prêmio revelação na Jornada de Cinema e Vídeo da Bahia e o segundo foi o melhor vídeo no I Festival do Vídeo de Brasília. Doyle foi jornalista do Correio Braziliense e atualmente é docente e pesquisador do Núcleo de Estudos Cubanos (Nescuba) da Universidade de Brasília (UnB).

IHU On-Line - O senhor disse que a renúncia de Fidel não representa grandes mudanças em Cuba, e que o regime socialista permanecerá. Entretanto, é possível vislumbrar alguma mudança na política econômica do país?
Hélio Doyle
- A política econômica de Cuba vem sofrendo mudanças desde os primeiros anos
da revolução, na década de 1960. Passou por diversas fases, diversas etapas. As mudanças mais significativas ocorreram a partir de 1990, quando Cuba se viu sem o apoio da antiga União Soviética e dos países do Leste Europeu vinculados ao Comecom (Conselho Econômico de Assistência Mútua) e ainda sujeita ao violento bloqueio econômico dos Estados Unidos, que vinha desde 1961. Essas mudanças na economia ajudaram a retirar Cuba do fundo do poço e reerguê-la, mas tiveram um alto custo social para o sistema. A situação hoje é bem melhor do que na década de 1990, mas é claro que há grandes problemas que ainda têm de ser resolvidos. Logo, são necessárias mais mudanças na economia, como o próprio Raúl Castro tem dito e repetiu na Assembléia Nacional. O importante é que essas mudanças pretendidas não representam um retorno ao capitalismo, mas uma tentativa de manter o socialismo, ou pelo menos algumas das características do socialismo que se tentou construir.

IHU On-Line - O sentimento do povo cubano por Fidel mudou ao longo desses 49 anos em que ele esteve à frente do poder? Há um consenso popular sobre a figura do ex-presidente?
Hélio Doyle
- Nenhum dirigente consegue manter o mesmo nível de apoio e popularidade em dez anos, quanto mais em 49 anos. Fidel, quando lutava contra Fulgêncio Batista, era quase uma unanimidade, só não tinha apoio do então ditador, de seus apoiadores e dos empresários e latifundiários que se beneficiavam do antigo regime. Começou a perder apoio quando mostrou que não queria fazer apenas uma troca de comando, mas uma revolução social. O agravamento dos problemas econômicos e as restrições à liberdade, ao longo dos anos, foram aumentando a rejeição parcial ou total a ele e ao sistema. Mas a maioria dos oposicionistas radicais ao sistema socialista, ao governo de Cuba e a Fidel vive nos Estados Unidos, na Espanha. São os que rejeitam radicalmente o socialismo, ou mesmo os que pretendem um nível de vida melhor no capitalismo, embora nem sempre consigam isso. Em Cuba, a oposição é ínfima e desarticulada, não tem qualquer respaldo popular. Só existe para os jornalistas estrangeiros e para o escritório de interesses dos Estados Unidos e algumas embaixadas européias. Fidel tem o apoio da maioria da população, até porque, se não tivesse, já teria caído. Não haveria como reprimir uma forte manifestação popular contra o sistema a 150 quilômetros da Flórida depois que terminou a guerra fria.

IHU On-Line - Qual é a sua avaliação desses 49 anos de governo? Que aspectos do pensamento de Fidel o senhor considera ainda pertinentes e imprescindíveis para a política cubana?
Hélio Doyle
- O governo cubano, Fidel à frente, acertou e errou em muitas coisas. Houve erros admitidos por eles próprios e erros que não foram reconhecidos, em todos os campos: político, econômico, social, cultural. Mas, para mim, o saldo é positivo. Cuba conseguiu sobreviver a todas as hostilidades dos Estados Unidos, não se rendeu, é um exemplo de soberania de uma nação e dignidade de um povo. A imagem que passam aqui no Brasil é de um país miserável, com o povo faminto, vigiado em cada esquina. Não é nada disso. O país é pobre, e o povo tem um padrão de vida baixo, mas não há as enormes desigualdades sociais. Ninguém passa fome, ninguém mora na rua, a saúde é de primeiro mundo, há educação gratuita para todos da creche à pós-graduação e nenhum cidadão fica desamparado pelo Estado. Há restrições à liberdade, mas não é um Estado policialesco. E essas restrições, em boa parte, são compreensíveis em um país pequeno, hostilizado de todas as maneiras pela maior potência mundial. Numa situação assim, o adversário político vira inimigo, especialmente quando se sabe que é financiado pelo inimigo. Não é uma situação desejável. Os níveis de liberdade poderiam ser maiores mesmo diante desse quadro, mas é simplista exigir de um país acossado que dê liberdade de ação ao inimigo. Nenhum país, capitalista ou socialista, faz isso.

IHU On-Line - E o que poderia ser diferente?
Hélio Doyle
- Não é viável construir o socialismo, como deve ser o socialismo, em um só país, ainda mais em uma ilha isolada e ameaçada. O que poderia ser diferente é que Cuba poderia estar construindo o verdadeiro socialismo, não aquele que fracassou na União Soviética e no Leste Europeu, mas um socialismo moderno, com democracia e liberdade, igualdade entre as pessoas, solidariedade, em que o mérito de cada um vem de seu trabalho e de seu caráter, não do dinheiro que possui. Mas Cuba é obrigada, pelas circunstâncias e pela realidade do mundo, a adotar elementos da economia de mercado para sobreviver como nação e assegurar o bem-estar de sua população. E são esses elementos da economia de mercado que causam os maiores problemas que Cuba enfrenta hoje. Os elementos do capitalismo adotados a partir dos anos 1990 causaram desigualdades, tensões sociais, males próprios dos países capitalistas, desenvolvidos ou não.

IHU On-Line - Com a renúncia de Fidel, que mudanças serão oportunas para a Ilha? Cuba precisa de transformações na sua estrutura política e econômica? Acredita que elas sejam feitas por Raúl Castro?
Hélio Doyle
- É preciso mudar muita coisa, claro. Não será fácil, por causa das variáveis que limitam o alcance dessas mudanças. Como dar mais liberdade à oposição se ela mesma diz que seu objetivo é abrir o país aos Estados Unidos, voltando à situação de antes da revolução? Como aumentar a possibilidade de negócios privados sem aumentar as desigualdades sociais e assim aumentar as tensões na sociedade? É possível fazer tudo isso, mas é óbvio que o sistema não trabalhará pela sua destruição. Nenhum sistema e nenhum governo trabalha contra si próprio, em Cuba, no Brasil, nos Estados Unidos ou no Congo. As mudanças necessárias são as que permitirão melhorar a qualidade de vida da população e aumentar o nível de liberdades políticas nos marcos do socialismo.

IHU On-Line - A imprensa cubana recebe várias críticas de pesquisadores. Eles alegam, entre outras coisas, a falta de liberdade de imprensa no país. Levando em consideração o regime político adotado pela ilha, qual é a sua avaliação da imprensa cubana? Cuba sempre esteve na contramão no que se refere à liberdade de imprensa? Com a renúncia de Fidel, esse quadro pode sofrer alterações?
Hélio Doyle
- Se você racionalizar nos esquemas de um país capitalista, jamais entenderá Cuba. Cuba é socialista, ainda que um socialismo limitado pela globalização, e assim suas estruturas políticas são socialistas. No socialismo, a direção é do partido. Não há imprensa privada. O que poderia mudar na imprensa? Em vez de ser estatal, a imprensa cubana poderia ser pública, com possibilidade de a sociedade civil ter seus meios de comunicação. Poderia ser mais aberta a algumas questões. Eu acho que esse deve ser o objetivo, ainda distante. Não há mesmo liberdade de imprensa em Cuba, tal qual a entendemos. E isso é assumido. Mas há muita hipocrisia nessas análises. Lá, a imprensa é dominada pelo Estado. Aqui, é dominada pelo capital privado. A liberdade de imprensa, em qualquer país ou formação política, é limitada pelos interesses dominantes.

IHU On-Line - Entre tantas críticas a Fidel, uma das mais ferrenhas diz respeito ao seu governo “ditatorial”. Os países capitalistas alegam que Cuba não vive uma democracia. Entretanto, lá, educação e saúde estão disponíveis gratuitamente para todos os cidadãos. Como o senhor avalia esses dois mundos (socialista e capitalista)? Quais as vantagens de viver num país “democrático” como o Brasil, por exemplo, se a maioria da população não tem condições de comprar medicamentos, alimentos, livros? Esse modelo democrático não lhe parece uma ilusão? E até que ponto um governo socialista pode ser positivo e negativo?
Hélio Doyle
- Cuba não é uma democracia capitalista e não quer ser. Não é também o que entendo deve ser uma democracia socialista. Mas eu não cobro isso dos cubanos, pois sei que no quadro atual, diante das hostilidades e do bloqueio norte-americano, do predomínio do capitalismo no mundo, não é possível construir o socialismo como deve ser o socialismo, e, naturalmente, não é possível ter uma democracia socialista em sua amplitude. Mas Cuba não é a ditadura que pintam, como se o povo fosse subjugado pela força das armas.

Acredito mesmo que haja uma democracia no nível das comunidades, das cidades: a população participa, opina, decide. Respondendo à pergunta, eu vejo que Cuba atende as necessidades básicas do cidadão: alimentação, moradia, saúde, educação, assistência aos que precisam. O povo é educado e culto. A expectativa de vida é de mais de 77 anos, e o índice de mortalidade infantil é melhor do que o da maioria das cidades dos Estados Unidos, incluindo a capital. Como um povo que passa fome pode ter esses índices? A democracia no capitalismo é formal. Na verdade, quem decide é quem tem dinheiro, quem tem o poder econômico. Uma parcela mínima da população vive muito bem, a maioria vive muito mal, pior do que a média em Cuba.

IHU On-Line - Como o senhor percebe e compreende o poder popular em Cuba? Ele assegura a participação dos cidadãos no governo?
Hélio Doyle
- Não assegura como deveria ser, mas chega mais perto do que nas “democracias” capitalistas de países subdesenvolvidos e mesmo, em alguns aspectos, desenvolvidos, nos quais a democracia que um cidadão goza é proporcional ao dinheiro que tem. No nível municipal, como disse, há um alto grau de democracia. Os candidatos às assembléias municipais são indicados pela população, o voto é livre, há a possibilidade de os eleitores revogarem o mandato de um eleito, de seis em seis meses há prestação de contas aos eleitores, há conselhos populares. Esse nível de democracia cai nas assembléias provinciais e na Assembléia Nacional, em termos de participação efetiva no governo, mas existe, não é uma ditadura, simplesmente. E há a questão do método: os temas mais complicados, mais espinhosos, são amplamente discutidos com a população antes de serem efetivados. Enfim, não é um sistema perfeito, longe disso, mas não é a ditadura que pintam os inimigos do sistema.

IHU On-Line - O poder popular foi fundamental para garantir a sobrevivência do socialismo em Cuba?
Hélio Doyle
- Sim, foi fundamental. Não apenas como instituição, mas como método, como modo de governar. Os governantes, em Cuba, não estão longe da população. Com exceção de Fidel e Raúl, por razões óbvias, os dirigentes vivem normalmente nos bairros, fazem compras, entram em filas. Carlos Lage  pode ser visto caminhando na calçada como qualquer cidadão. A população é ouvida e isso cria consensos, respaldo às medidas.

Muitos acharam que o socialismo em Cuba cairia junto com a União Soviética, com a Hungria, a Romênia. Erraram feito porque não entenderam as peculiaridades de Cuba, as grandes diferenças entre Cuba e esses países. E agora vão errar de novo porque continuam baseando suas análises no desconhecimento do que acontece em Cuba, na visão dos intelectuais mediáticos que sabem tudo e não sabem nada e nos desejos que têm de ver o socialismo cair em um de seus últimos refúgios.

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