Edição 246 | 03 Dezembro 2007

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 248 p.

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

André Dick

O nacionalismo do colonialismo: os paradoxos em Leyla Perrone-Moisés

O artigo a seguir é inédito, escrito com exclusividade por André Dick para a IHU On-Line, trata da obra Vira e mexe, nacionalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), de Leyla Perrone-Moisés. Dick é graduado em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Seu mestrado e doutorado, realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foram na área de Literatura Comparada. Poeta e ensaísta, é autor dos livros de poesia Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002) e Papéis de parede (Juiz de Fora: Funalfa Edições; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004). Em colaboração com Fabiano Calixto, organizou A linha que nunca termina (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004), com ensaios, poemas e depoimentos sobre o poeta Paulo Leminski. Dick concedeu entrevista às Notícias do Dia do site do Instituto Humanitas Unisinos, www.unisinos.br/ihu, em 27-07-2007, intitulada “A quase-arte de Mallarmé”. Mentor da editoria de poesia Invenção, novidade nas páginas da revista IHU On-Line, Dick escreveu os artigos “O Bope em ritmo de rock”, comentando o filme Tropa de elite, na edição 240 da IHU On-Line, em 22-10-2007, e “O império da pessoalidade”, sobre o livro O império dos signos, de Roland Barthes, na edição 243, de 12-11-2007.

Um conceito muito polêmico que envolve a cultura no Brasil é o de “identidade nacional”. Ele é tema do livro mais recente de Leyla Perrone-Moisés , Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário, circunscrito, no entanto, mais ao ambiente literário. O que se percebe, à primeira vista, é que Leyla deseja combater o multiculturalismo que vem dominando boa parte dos gabinetes acadêmicos, desviando a discussão da literatura para outros campos, como os da sociologia, da história e da economia.

Os três primeiros capítulos (que abrangem 60 páginas) são mais elaborados e coesos, procurando explicar o que se entende por nacionalismo no Brasil e na América Latina. No primeiro, “A cultura latino-americana, entre a globalização e o folclore”, a idéia é de que não devemos nos reduzir apenas à cultura do Brasil, e os países da América Latina não podem se unir culturalmente, eliminando o “estrangeiro”, apenas porque possuem problemas socioeconômicos. Ressalta, com isso, que a origem desses países, que foram colonizados, não deve ser esquecida, para restringir nosso discurso ao indivíduo formado totalmente pelos valores artísticos locais. Também não haveria apenas folclore na América Latina, e sim um cosmopolitismo, o que é uma estocada justamente em algumas teorias pós-coloniais, afirmando que o “grande destino da América Latina não é encerrar-se em Macondos reais, nem morrer de sede corporal e cultural num Grande Sertão geograficamente circunscrito”  – o que, por outro lado, desmerece um pouco a relevância tanto de García Márquez  quanto de Guimarães Rosa , pois restringe dois narradores exímios a localidades biográficas. Inseridos num mundo colonizado pelos Estados Unidos, os latinos-americanos, segundo Leyla Perrone-Moisés, precisam dispor de “armas conceituais tão afiadas e de formas artísticas tão apuradas como aquelas de que dispõem as culturas que ainda são hegemônicas” . A pergunta que caberia é se essas culturas a que Leyla se refere (representadas pelos Estados Unidos e pela França) ainda são tão hegemônicas, ou elas já incorporam elementos de países ditos periféricos. Isso se percebe, é verdade, bem mais no campo da música do que na literatura, mas é algo a se pensar.

No segundo capítulo, “Paradoxos do nacionalismo literário na América Latina”, é feita uma retomada de acontecimentos históricos. O nacionalismo surgiu nos países latino-americanos em razão das independências e até hoje é prejudicial por misturar política e economia com elementos estéticos. A crítica explica particularmente a influência francesa sobre a cultura brasileira. A França, que não foi um país diretamente colonizador, representava a idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, em oposição às metrópoles ibéricas. Leyla destaca, nesse caso, Oswald de Andrade , que em Paris teria finalmente “descoberto” o Brasil. Com a entrada em cena dos nacionalistas – incluindo nesse grupo os modernistas –, as influências francesas foram, aos poucos, sendo vistos como prejudiciais. Com isso, tentou se estabelecer uma cultura própria, que tentava se libertar da influência estrangeira e dar uma homogeneidade à cultura latino-americana – o que seria um equívoco.

Por meio desse ângulo, Leyla contraria, amplamente, as teorias que se colocam contra o “colonialismo cultural”. Neste sentido, ela combate O local da cultura (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998), do autor indo-britânico Homi K. Bhabha , que se tornou um guia nos gabinetes de Literatura Comparada no início do século XXI, afirmando, com isso, que a imagem da América Latina pobre mas alegre, ignorante mas vital, é a que convém, justamente, ao olhar das ditas culturas hegemônicas e alertando para o fato de que os melhores autores latino-americanos sempre se utilizaram das velhas formas vindas da Europa, ao trazer consigo a memória e o projeto europeu.

Além de esse argumento parecer um tanto simplista, não há um aprofundamento sobre o livro de Homi Bhabha, e, desse modo, a recusa de Leyla à teoria pós-colonial é ligeira demais – e não explorada devidamente. Se, por um lado, essa teoria é, muitas vezes, política e ideológica, por outro, ela chama a atenção para o fato de que o colonialismo cultural não é algo simples nem imposto, mas cria um embate – tensão inexistente, em parte, no livro de Leyla. Ou seja, o colonialismo não se resume apenas a uma incorporação do estrangeiro, de centros hegemônicos, como se entende em Vira e mexe, nacionalismo – sobretudo num ensaio a respeito da influência de Victor Hugo  sobre Castro Alves  – mas, hoje em dia, a uma cultura muito mais pluralista, não tão localizada em nichos. É verdade que a autora tem razão em afirmar que autores não podem ser destacados apenas por pertencerem a países que fogem ao eurocentrismo ou à cultura norte-americana, mas a cultura pós-colonial evidencia que há uma crise de representação e não um diálogo claro e absoluto como a autora quer encontrar em autores, não por acaso até o alto Modernismo.

Ao longo de seu livro, Leyla acaba esquecendo uma tradição que a antecede na área da crítica. Seu esquecimento no caso de um nome como Antonio Candido  é especial. Quando o cita, é como se ele não tivesse sido um dos teóricos a falar mais sobre o nacionalismo – num sentido mais amplo. Nas palavras dele, no prefácio de sua Formação da Literatura Brasileira (1957), esta “é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no Jardim das Musas...” e “pobre e fraca” . Para Candido, “nossas literaturas latino-americanas, como também as da América do Norte, são basicamente galhos das metropolitanas” . Simples e direto. O Romantismo, como se sabe, é um movimento nacionalista, a partir do qual Candido constrói o alicerce de sua Formação. E Leyla destaca, em seu livro, que do romantismo “nossos escritores receberam, com entusiasmo, o conceito de nação e o sentimento nacionalista” . Mas como essa idéia pode se aplicar a Candido se tão explicitamente ele é contra o nacionalismo ufanista e é um autor com uma base teórica universal?
Pode-se dizer que Candido acaba gerando um paradoxo insolucionável em sua obra, quando afirma, no prefácio de Formação da Literatura Brasileira, que a literatura em nosso país, “como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura” . O que seria, afinal, “vida nacional no seu conjunto”? Ao mesmo tempo, Candido observa que a “construção nacional” tem uma “velha concepção cheia de equívocos”, mas que merecem ser reavaliada sob uma nova ótica, retomando-se, sobretudo, o Arcadismo: “[...] é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certas intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira” .

Para Leyla, o nacionalismo tende a negar o outro, a ser purista e mesmo racista. Não é o caso, obviamente, da visão sobre o nacionalismo de Candido – um autor que conseguiu traçar comparações de escritores brasileiros com trabalhos de estrangeiros ao longo de sua trajetória. Isso porque este nacionalismo que Leyla condena diz respeito às relações sociais. No entanto, no plano literário, não negar o vínculo é também uma espécie de nacionalismo, um nacionalismo mais discreto, mas ainda não aceitável, quando indica que devemos nos conscientizar socioeconomicamente de nossas limitações e tentar produzir a “nossa literatura” – o que Leyla, aliás, condena em seu livro.

É difícil compreender muitas vezes – e isso atinge diretamente a “identidade nacional” tão discutida em congressos e simpósios – por que Candido considera a universalidade de certas literaturas se, ao mesmo tempo, destaca, em alguns escritos, um traço de independência que caracteriza um determinado caráter nacional: “Há literaturas de que um homem não precisa sair para receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras, que só podem ocupar uma parte da sua vida de leitor, sob pena de lhe restringirem imediatamente o horizonte. Assim, podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol, que só conheçam os autores de sua terra e, não obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas emoções literárias” . Nessa colocação, pode-se observar que o crítico avalia que literaturas de “Primeiro Mundo” não precisariam de outras para se fortalecer, pois já teriam nascido fortes, restando aos países periféricos, entre os quais coloca o Brasil, se esforçarem para competir com as que os precedem. Mas Joyce , por exemplo, exprimiria apenas valores irlandeses em sua obra? Ou Proust apenas valores franceses e Shakespeare, ingleses? No ensaio “Machado de Assis e Borges: nacionalismo e cor local”, Leyla trabalha perfeitamente com a idéia de que, antes da “cor local”, a cor literária é universal e estabelece uma ligação com a “biblioteca infinita” do autor de Ficções.

De qualquer modo, Candido está certo de que devemos aceitar o vínculo placentário com as literaturas européias, assim como Leyla Perrone-Moisés. No entanto, ele acredita que quando influímos “de volta nos europeus, no plano das obras realizadas por nós [...], em tais momentos, o que devolvemos não foram invenções, mas um afinamento dos instrumentos recebidos” . Esta reflexão, sob certo ponto de vista, é característica da relação entre colonizador-colonizado, argumento que Bhabha, em seu O local da cultura, condena: o de que devemos retribuir para os estrangeiros aquilo que antes nos ofereceram, de forma mais refinada, como se a linguagem original – e realmente inventiva – da literatura pertencesse exclusivamente a eles. Leyla, por sua vez, escreve, contrariando, inclusive, algumas posições implícitas em Vira e mexe, nacionalismo: “Se escrevermos a história das literaturas latino-americanas como um apêndice da história das línguas-mães, mantendo-as como um paradigma a ser alcançado, estaremos dentro de uma concepção evolucionista da literatura e tenderemos a considerar as primeiras manifestações coloniais como infantis e canhestras. [...] essas literaturas não tiveram um começo desprovido de tradição; por outro lado, o valor estético das obras não depende da situação política ou social dos seus produtores” . Estaria ela discordando diretamente de Candido, citado com elogios em vários momentos? 
Nesse sentido de uma certa “alimentação cultural”, Leyla, em Vira e mexe, nacionalismo, fala bastante de Oswald de Andrade, que formou sua teoria da antropofagia a partir de um olhar “ingênuo” dos índios. Oswald era um universalista, mas achava que o Brasil era uma espécie de paraíso, onde se poderia estabelecer uma nova linguagem, mesmo que impura – é o objetivo de sua poesia Pau-Brasil. Além disso, deve ser lembrado o que ele escreve no manifesto da poesia Pau-Brasil, querendo seguir a gramática brasileira do cotidiano: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” . A cultura não tem compromissos, digamos, institucionais, mas o que dizer de um manifesto assim diante, por exemplo, do ensino brasileiro atual? E mesmo Oswald, a certa altura, quis fazer parte do mundo acadêmica com tentativa de compor uma filosofia pessoal. Ou o que dizer de “O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau-Brasil. Bárbaro e nosso” ? – “nosso”, é verdade, sob determinado ângulo, pois Oswald, não desconsiderando sua enorme contribuição literária, apreciava mesmo era de passear pelas galerias de Paris e pelos imensos jardins dos plebeus paulistanos. Oswald gostaria que o brasileiro fosse aceito como era – mas não estava nem um pouco interessado em ser como o brasileiro que pregava, evidenciando mais um paradoxo de sua visão nacionalista. 

No capítulo dedicado a Mário de Andrade, Leyla ignora o nacionalismo do autor de Macunaíma ao afirmar que ele fala de uma “entidade” e não “identidade” brasileira. Isso não faz com que dezenas de referências ufanistas de Mário em sua obra sejam esquecidas. É memorável, por exemplo, um diálogo que estabeleceu com Drummond  numa carta. Pedindo ao autor de A rosa do povo que se juntasse a ele para glorificar o  Brasil, Mário ouviu do colega que o País era “infecto” e trazia “paisagens incultas”, “sob céus poucos civilizados” . Mário também tinha interesse em estabelecer uma nova gramática brasileira, com todos os erros. A própria introdução de Paulicéia desvairada é uma espécie de negação ao movimento que inspirara o livro: o Futurismo. Dizia Mário não ser um poeta futurista, ao mesmo tempo em que apresentava nomes de autores que o inspiraram, e que, naquele momento, dificilmente eram encontrados no Brasil. Afirma Leyla, em contraposição, que Mário tinha consciência de que “em determinados momentos culturais, como o do modernismo, era oportuno ser nacionalismo, e que o nacionalismo econômico e político era uma necessidade sempre renovada. O que ele não aceitava era o nacionalismo ufanista e xenófobo, porque conhecia suas ilusões e perigos, e o nacionalismo artístico, porque sua concepção da arte era universalista” . Além de não explicar o pensamento de Mário, Leyla parece confundi-lo ainda mais, numa espécie de interpretação psicológica pouco adequada.

De maneira geral, parece faltar (ou, mais precisamente, não interessar), em Vira e mexe, nacionalismo, uma leitura mais exata das teorias que enfocam o nacionalismo. Talvez porque, antes de não ser seu objetivo, Leyla seja um especialista em literatura francesa. Seus  melhores ensaios, desse modo, surgem da relação entre Brasil e França, como aqueles que dedica a Cendrars , a Lautréamont  (que Leyla já investigara em Falência da crítica ) e a Derrida , a fim de apresentar pontos críticos contra os estudos culturais, o que faz com irretocável brilho e consistência.

De qualquer modo, seu livro é um libelo contra uma retomada do nacionalismo na América Latina, sobretudo entre os literatos, e assim ganha certa importância. No entanto, não é a que ele poderia ter para ampliar o diálogo, em razão de seu enfoque muito centralizador. O questionamento que fica ao final de seu livro é se Leyla acredita que, mesmo respondendo com um trabalho por vezes inovador, as literaturas latino-americanas, principalmente a brasileira, continuam sendo ainda galhos das metropolitanas – o que continua a revelar os paradoxos do nacionalismo literário e a aporia que desvia o olhar do mais importante: a criação e os livros.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição