Edição 246 | 03 Dezembro 2007

O embrião não é uma pessoa

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IHU Online

O professor titular e coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB) Volnei Garrafa está entre aquelas pessoas que não considera o embrião como uma pessoa. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele explica sua posição: “Por mais argumentos que cada um dos lados – favorável ou contrário à interpretação de que um embrião de alguns dias seja já uma pessoa -, acredito que jamais chegaremos a um consenso a respeito, por absoluta falta de elementos factuais capazes de provar de modo irrefutável uma ou outra teoria”. Doutor em Ciências e pós-doutor em Bioética, Volnei Garrafa é editor da Revista Brasileira de Bioética, e presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco (Redbioética). 

IHU On-Line - Como o senhor define a comunidade científica brasileira em relação às pesquisas sobre células-tronco? Há preparo técnico?
Volnei Garrafa -
A resposta a essa pergunta é complexa. Há, sem dúvida, cientistas preparados no país para enfrentar esse tipo de desafio. Mas, por outro lado, há cientistas excessivamente apressados acelerando o processo investigativo, em alguns momentos, além dos limites confiáveis da biossegurança. O mundo todo está surpreendido com o fato de o Brasil, por meio de um grande projeto de pesquisa, ter iniciado um estudo com a utilização de células-tronco adultas em amostra de 1200 pacientes, em fase 3, sem que as fases 1 e 2 estivessem suficientemente esgotadas para dar a tranqüilidade indispensável quanto a possíveis reações adversas a curto, médio e longo prazos desse novo tipo de tratamento que é a terapia celular. Uma questão que não pode deixar de ser comentada neste contexto e constatada em todo mundo é a do açodamento, a pressa – estimulada pelo mercado (sempre ele...) – em transformar ciência em tecnologia, uma descoberta em aplicação prática, de um dia para o outro. Há algumas décadas atrás, demoravam muitos anos para um conhecimento para ser utilizado na prática. Agora, pela pressão econômica crescente dos fabricantes, das empresas, das indústrias de medicamentos e dos próprios pacientes, muitas vezes desesperados à busca de cura, entre outras, a tecnologia passa a ser disponível em meses e até em dias. Não está sendo dado o tempo indispensável, portanto, para a verificação dos possíveis problemas que uma nova técnica, um novo medicamento ou um novo instrumental biomédico, possam trazer a médio e longo prazos. E os pacientes portadores de doenças ainda incuráveis – certamente vulneráveis em suas decisões – muitas vezes se entregam desesperadamente às pesquisas, em busca de curas milagrosas e imediatas.

IHU On-Line - Considerando o Brasil um país de maioria católica, a postura dos pesquisadores e dos brasileiros em geral pode ser vista como avançada ou conservadora em relação a esse tema?
Volnei Garrafa -
Apesar das posições moralmente afirmativas da maioria dos cientistas com relação às pesquisas no campo da genética e da reprodução assistida, por exemplo, considero o Brasil um país bastante conservador. Confundimos a liberdade e o uso de minúsculos biquínis que a moda de Ipanema nos propõe, por exemplo, com a absoluta incapacidade do Congresso Nacional em abrir uma discussão responsável e verdadeiramente madura sobre temas moralmente espinhosos como aborto, eutanásia, utilização de células tronco-embrionárias. Na Itália, país católico por excelência, o aborto foi aprovado em um referendo nacional por nada menos que 69% da população no já distante ano de 1979. Portugal, recentemente, foi o último país da Europa ocidental a aprovar legislação neste sentido. No Brasil, as iniciativas legislativas nos campos que envolvem questões morais são invariavelmente encaminhadas no Congresso Nacional por partidários ferrenhamente contra, ou a ferrenhamente a favor, de determinado assunto, o aborto, por exemplo. O primeiro bebê de proveta brasileiro nasceu em 1984. Até hoje, pelas razões acima apontadas, todos projetos de lei que tramitaram no Congresso foram engavetados, não prosperaram. Por absoluta intolerância e falta de diálogo entre as partes. Chamo a isso de vazios legislativos criminosos, pois existem clínicas reprodutivas humanas fazendo absurdos nas grandes cidades brasileiras, adotando técnicas utilizadas apenas excepcionalmente, como rotina, unicamente com o objetivo escuso de aumentar os índices de sucesso, sem o devido controle e com a legislação absolutamente omissa. Isso mostra a necessidade absoluta de criação do Conselho Nacional de Bioética, nos moldes do excelente Projeto de Lei 6032 encaminhado pelo Presidente Lula ao Congresso Nacional em 5 de outubro de 2005. O referido PL encontra-se, até hoje, parado nas gavetas do Congresso. A França tem seu Comitê Nacional desde 1982, criado pelo saudoso presidente François Mitterrand. Exemplos como esse é que me permitem afirmar que o Brasil ainda é um país conservador.    

IHU On-Line - Como o senhor vê a pesquisa que descobriu a possibilidade de criação de células-tronco a partir da pele, possivelmente descartando o uso de células tronco embrionárias?
Volnei Garrafa -
Interpreto a descoberta como um fato extraordinário, que poderá proporcionar avanços significativos no sentido de controle de diversas doenças na área biomédica, sem conflitos éticos ou morais, sem a necessidade de utilização de células tronco-embrionárias provenientes de embriões humanos congelados. Tecnicamente, parece que isso se tornará realmente possível a partir das descobertas de um grupo japonês chefiado pelo prof. Shinya Yamanaka, da Universidade de Kioto, e publicada na revista Cell, e outro estadunidense, comandado por James Thomson, da Universidade de Wisconsin-Madison - casualmente a mesma instituição que abrigou o “inventor” da Bioética, Van Ressenlaer Potter –, e publicada concomitantemente na Science. As células – no caso, fibroblastos adultos, retirados da pele de ratos - foram induzidas a transformar-se em células tronco a partir da introdução nas mesmas de genes reguladores, tendo um retrovírus como indutor. O único problema moral possível de ser levantado nestes casos seria aquele de fundo alarmista e já conhecido dos cientistas: “o homem, outra vez, está brincando de Deus”. Frases deste tipo, vindos de setores fundamentalistas religiosos, que demonizam a ciência e seus avanços em inúmeras situações, já foram ouvidos quando nasceu Louise Brown, o primeiro bebê obtido por fecundação assistida em 1978 na Inglaterra, ou quando foi anunciado o nascimento da ovelha Dolly, em 1997, entre incontáveis outras situações.  

IHU On-Line - O que muda em relação à clonagem terapêutica e ao transplante de órgãos caso seja realmente possível obter células tronco com alto poder de diversificação a partir da pele humana?
Volnei Garrafa -
O que muda é que, com maior liberdade, os cientistas e a ciência poderão avançar mais celeremente nas suas pesquisas com células tronco-embrionárias, que são mais adequadas que as adultas ou mesmo que aquelas do cordão umbilical, mais lábeis e mais facilmente manipuláveis sob o ponto de vista técnico-operacional da pesquisa. O caminho aberto pela utilização de células-tronco adultas, que já nos permite a renovação de algumas células e tecidos, isoladamente (por exemplo, musculatura cardíaca), será generosamente ampliado com a possibilidade de utilização de células tronco-embrionárias produzidas por clonagem terapêutica, objetivando a obtenção de órgãos completos a partir de técnicas laboratoriais, os quais são compostos por diferentes variedades de tecidos. A possibilidade de construir um novo pâncreas a partir da utilização dessa técnica, por exemplo, nos daria a possibilidade de chegarmos muito próximo de termos uma doença tão difundida e que tanto sofrimento gera, como o diabetes, controlada. Isso, no entanto, não deve ser visto como algo que será alcançado nos próximos anos; levaremos mais algum tempo, talvez décadas, para chegar a tão avançado estágio de desenvolvimento biotecnocientífico.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios do ponto de vista ético e moral que estão envolvidos no debate em torno das células tronco?
Volnei Garrafa -
O maior desafio, sem dúvida, é vencer o conflito, a polarização, o maniqueísmo, sobre a utilização de células-tronco provenientes de embriões humanos, pelas razões de todos conhecidas. Pessoalmente, penso que, mesmo daqui a um milênio, se o Planeta Terra e a espécie humana ainda aqui existirem, esses conflitos não estarão solucionados. A ciência tem se mostrado impotente para definir sob o prisma acadêmico quando se dá o início da vida humana, quando um embrião passa a ser pessoa. Jamais chegaremos a um consenso, seja biomédico, seja religioso, seja moral. Segundo HT Engelhardt Jr., temos um mundo irreversivelmente pluralista sob o ponto de vista de moralidades. Entre amigos morais, não há conflito, mas, entre estranhos morais, a única forma de convívio pacífico, sem que uns matem os outros por diferenças de modo de pensar, é por meio da frágil virtude da tolerância. De aprendermos a conviver pacificamente entre estranhos morais, uns respeitando a moralidade dos outros. Neste sentido, nas democracias pluralistas modernas, é preferível que as leis sejam declinadas afirmativamente, positivamente, deixando aos cidadãos e cidadãs adultos e informados – de acordo com sua moralidade e religiosidade – a decisão autônoma sobre os problemas que os afligem, sem uma decisão prévia, proibitiva e paternalista ditada pelo Estado.

IHU On-Line - Como o senhor defende sua posição em relação ao uso de embriões humanos para utilização de células-tronco? Quais são os seus argumentos ao afirmar que “embrião não é pessoa”?
Volnei Garrafa -
Estou entre aquelas pessoas que não interpreta o embrião como uma pessoa. E isso me ensinou meu querido professor e amigo Giovanni Berlinguer , um dos mais completos sanitaristas e bioeticistas do mundo e pessoa que procura em todas suas ações ser o mais generosa e justa possível: quando te deparas, ao mesmo tempo, com um conflito moral e um problema prático que necessita ser resolvido, os problemas práticos devem receber prioridade diante dos conflitos morais. Como disse acima, por mais argumentos que cada um dos lados – favorável ou contrário à interpretação de que um embrião de alguns dias, um blastômero, por exemplo, seja já uma pessoa -, acredito que jamais chegaremos a um consenso a respeito, por absoluta falta de elementos factuais capazes de provar de modo irrefutável uma ou outra teoria. Temos, então, que nos apegar a outros referenciais. No meu caso, utilizo o referencial utilitarista e conseqüencialista, mas sempre solidário, abrindo possibilidades de discussão para situações isoladas a serem analisadas em cada contexto (social, econômico, cultural...) onde as mesmas se dão.

IHU On-Line - O senhor gostaria de acrescentar mais algum comentário que julgue importante e as perguntas não cobriram? 
Volnei Garrafa -
Uma última observação que gostaria de registrar é que, na mesma linha de Hans Jonas , defendo que a ciência seja LIVRE, desde que seja desenvolvida dentro de referenciais éticos e em busca de objetivos construtivos. E, ao contrário, defendo que a aplicação das descobertas, a tecnologia, seja CONTROLADA. E esse controle não pode ficar unilateralmente nas mãos de cientistas; o controle precisa ser social, por meio de comitês pluralistas e multidisciplinares. A ética, assim como a ciência, é glacial. Ou é ou não é; não se pode ser 70% ético, por exemplo. Igualmente, a ética deve ser diferenciada da pura ciência e da pura técnica. Isso não significa que ela tenha uma posição superior, anterior ou mais importante que a ciência e a tecnologia. Trata-se, simplesmente, de uma posição diferenciada. A ética sobrevive sem a ciência e a técnica; essas, no entanto, sem a ética, são fadadas ao descrédito ou ao fracasso.

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