Edição 245 | 26 Novembro 2007

“O que Dawkins vem fazendo atualmente não é ciência, mas sim uma pregação de suposições filosóficas indemonstráveis”

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IHU Online

Dawkins “parece crer piamente que a teoria da seleção natural explica tudo no mundo”, disse o filósofo Álvaro Valls docente nos cursos de gradução e pós-graduação em Filosofia da Unisinos e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof). E ele vai além: “O que Dawkins vem fazendo atualmente não é ciência, mas sim uma pregação de suposições filosóficas indemonstráveis. Isso explica por que razão precisa adotar em seus capítulos títulos como ‘Por que quase com certeza Deus não existe’. Ora, se ele só tem quase certeza, por que vende suas idéias como se fossem o resultado dos estudos científicos sérios?” As afirmações fazem parte da entrevista a seguir, concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line, neste final de semana. Questionado sobre uma possível aproximação entre as críticas de Nietzsche e Dawkins ao cristianismo, Valls esclarece: “O que diferencia Nietzsche dos escritores ateus atuais é que ele possuía uma visão crítica aprofundada da realidade, não estava apenas preocupado em efeitos imediatos ou em vender seus livros”.

Valls é graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (FASP), e mestre em Filosofia, pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, com a dissertação O surgimento do conceito de coisificação em Theodor Adorno, 1924-1938. Doutorou-se em Filosofia também na Universidade de Heidelberg, com a tese O conceito de história nos escritos de Soeren Kierkegaard, Valls é autor, entre outros, dos livros O que é ética (São Paulo: Brasiliense, 1986) e Da ética à bioética (Petrópolis: Vozes, 2004). É o tradutor e organizador da obra Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado - Aforismos, novelas e discursos, de Sören Kierkegaard (Porto Alegre: Escritos, 2004), da qual a edição 123 da IHU On-Line, de 16-11-2004, publicou a orelha do livro. A obra foi apresentada no evento Sala de Leitura nessa mesma data. Na edição 175 da IHU On-Line, de 10-04-2006, concedeu a entrevista “Paulo e Kierkegaard”.  Na edição 209, de 18-12-2006, concedeu a entrevista intitulada “Cristianismo, uma mensagem”. Nas Notícias do Dia do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, em 16-11-2006, falou sobre Uma Filosofia brasileira surgirá com tempo e muito trabalho, na qual comenta a sua indicação à presidência da Anpof na gestão 2007-2008. Confira, também, o artigo “Um só Deus e muitos ateísmos”, escrito por Valls e publicado pela Zero Hora, em 03-11-2007.

IHU On-Line - Qual é o seu ponto de vista sobre a tentativa de Dawkins de combater um fundamentalismo com outro?
Álvaro Valls -
Não sei se se pode dizer que Dawkins adota um fundamentalismo para combater outro, mas certamente a ocasião que o leva a combater a religião é o esforço dos criacionistas para imporem nas escolas americanas uma doutrina cientificamente improvável. Sua reação, como darwinista, é a de defender a ciência, as descobertas científicas e o modo de pensar da racionalidade científica. Mas, quando um cientista se põe a discutir sobre religião, ele geralmente se coloca em um terreno que não é científico nem teológico, mas sim filosófico. E, neste campo, ele parece movimentar-se com uma crença ingênua nas teses descrentes. Ele parece crer piamente que a teoria da seleção natural explica tudo no mundo.

IHU On-Line - Quais são as objeções teóricas você faz a esse posicionamento?
Álvaro Valls -
O que Dawkins vem fazendo atualmente não é ciência, mas sim uma pregação de suposições filosóficas indemonstráveis. Isso explica por que razão precisa adotar em seus capítulos títulos como “Por que quase com certeza Deus não existe”. Ora, se ele só tem quase certeza, por que vende suas idéias como se fossem o resultado dos estudos científicos sérios?

IHU On-Line - Que leitura Kierkegaard faria da afirmação de Dawkins de que a religião leva, necessariamente, à violência?
Álvaro Valls -
Quando Kierkegaard  fala da religião, pensa geralmente no cristianismo, que, para ele, é uma religião do amor, da misericórdia e do perdão, com um Deus que é amor em suas três pessoas. Este Deus é Pai e por isso somos irmãos, e Ele toma a iniciativa também da reconciliação, como está retratado na parábola do Filho Pródigo. A figura evangélica de Jesus Cristo nada tem desta violência que hoje os escritores ateus andam discutindo. A própria cruz, que substituiu a figura inicial do peixe como símbolo dos cristãos, geralmente favorece a ascese e a mística, e não o ódio e a violência. Não se pode negar que tenha havido muito abuso no passado, tais como os relacionados às perseguições aos judeus, por exemplo, em Portugal e na Espanha nos séculos passados. Mas o que dizer das atuais propostas guerreiras do escritor ateu Christopher Hitchens  (conforme a entrevista à Folha de S. Paulo da semana passada), de invadir Irã e Coréia do Norte, e de apoio às invasões do Afeganistão e do Iraque? É um caso claro de convergência deste ateu com o presidente George W. Bush, líder do chamado fundamentalismo americano.

IHU On-Line - Recuperando sua idéia do artigo “Um só Deus e muitos ateísmos”, qual é a atualidade da crítica de Nietzsche ao cristianismo e em que aspecto ela se aproxima da que Dawkins e Harris fazem atualmente?
Álvaro Valls -
Nietzsche recrimina o cristianismo por difamar esta vida e preferir uma outra, que vem depois da morte. Esta visão seria de responsabilidade de Paulo de Tarso , e não de Jesus. Nietzsche chega a chamar Paulo de “o inventor do cristianismo”. Vê sua religiosidade como baseada no ressentimento, comum ao judaísmo. Os cristãos, em vez de aprender a seguir o mandamento do amor (Jo 13, 34-35), teriam desenvolvido um ódio vingativo contra os judeus. Teriam dominado as consciências pela noção do pecado, pelo sentimento de culpa. Mas quem lê Nietzsche e concorda em vários pontos com sua análise, não pode deixar de reconhecer que algo assim como o pecado existe sempre, tal como existe o arrependimento e a necessidade do perdão. Dawkins cita uma comediante americana que declara que todas as religiões são a mesma coisa: “culpa, com feriados diferentes”. Mas não basta ignorar a questão da culpa e do mal, para superar a religião. O que diferencia Nietzsche dos escritores ateus atuais é que ele possuía uma visão crítica aprofundada da realidade, ou seja, não estava apenas preocupado em efeitos imediatos ou em vender seus livros.

IHU On-Line - Quais são os riscos e as oportunidades que se descortinam em destronar Deus e em seu lugar colocar o homem?
Álvaro Valls -
No século XIX, quando era forte por toda parte a aliança entre “altar e trono”, quem enfraquecia a religião solapava o regime político, muitas vezes pouco ou nada democrático. Mesmo hoje em dia, sempre haverá algum proveito numa atitude ao menos autocrítica em relação à nossa religião. Pois, se Deus é perfeito e infinito, todas as imagens que fazemos dele são imperfeitas, e, se adoramos tais imagens, adoramos de fato um ídolo. Deus sempre é maior, maior do que a maior realidade que possamos imaginar ou pensar. Se for para colocar o homem como modelo, que o seja então conforme a antropologia de Pilatos (em Jo 19,5), quando ele apontou para Jesus e exclamou “Eis o homem”. Idolatrar um líder político qualquer ou a humanidade abstrata sempre nos levará a frustrações. Kierkegaard, evangélico, escreveu, certa vez, que foi um erro de Lutero  substituir o Papa pela multidão. Decerto não será erro menor substituir a palavra de Deus pela opinião dos jornalistas, que muitas vezes, por falta de convicções, apenas usam opiniões emprestadas, e as passam adiante, emprestando-as.

IHU On-Line - O que essa fúria anti-religiosa demonstra sobre a racionalidade contemporânea? A razão do homem contemporâneo exacerbou-se a ponto de torná-lo cego às manifestações do divino que o cercam?
Álvaro Valls -
Será que há mesmo uma fúria anti-religiosa? Segundo Dawkins, o que haveria é antes o oposto: muita gente que não crê evita expressar sua descrença por respeito humano. Mas vale a pena perguntar: como anda o nosso testemunho de cristãos; será que os que têm religião ou dizem que a têm, vivem de acordo, num testemunho vivo de sua fé? Quem conviveu com um santo (gente como um Dom Luciano Mendes de Almeida , por exemplo), levará por toda a vida o impacto de uma manifestação do divino. Mas quantos santos se manifestam entre nós, nesta sociedade tão avançada? E, a propósito, se nosso País, o Brasil, é católico há cinco séculos, e por seu tamanho e quantidade de católicos é tão importante para a igreja romana, por que não tivemos já uma dúzia de santos canonizados? Como podemos falar de religião, se não temos a experiência manifesta da santidade, e se em nossa vida não existem milagres (a não ser nos processos longínquos do Vaticano, quando os “milagres” são talvez entendidos como uma realização mágica com comprovação processual-burocrática)? A Igreja Católica, ao ignorar oficialmente a realidade da santidade dos leigos e centrar quase todo o seu protagonismo no clero, deveria, parece, ter um clero que manifestasse melhor o divino... E não tantos padres frustrados e pedófilos. Não digo que não haja muitos clérigos edificantes nas várias denominações religiosas, mas creio que, com os que temos, e com a repercussão social de suas palavras e de seus exemplos, não temos o direito de lamentar tanto a expansão de um racionalismo mais cético.

IHU On-Line - Por que persiste a idéia de que religião e ciência são incomunicáveis, auto-excludentes?
Álvaro Valls -
Por que o povo não pensaria que elas se excluem, se a maioria dos homens da ciência não conhece a religião e a maioria dos religiosos é ignorante em termos de ciência? Os jesuítas até que costumam destacar-se da mediocridade, neste ponto. Mas não é fácil, basta ver o caso Teilhard de Chardin, no século XX. Se o Papa há pouco se desculpou por Galileu, com quinhentos anos de atraso, quantos anos levará Roma para desculpar-se dos ensinamentos forçados em assuntos científicos atuais? Vejam a bioética. Por que a Igreja costuma dizer tanto “não” sobre assuntos novos, em que ainda não há consenso nem clareza? Como não persistirá a idéia da incomunicabilidade se as mesmas autoridades que condenam o aborto mostram má-vontade com a reprodução assistida? E, no entanto, é  claro que a verdadeira fé e a verdadeira ciência não poderiam excluir-se, se ambas se referem e se reportam à verdade, se ambas se esforçam sinceramente por atingir a verdade. Mas nos dois extremos há gente falando sobre (e condenando) aquilo que não entende. Aqui vale noticiar, porém, que no Brasil os estudiosos da Filosofia da religião têm feito progressos muito promissores.

IHU On-Line - Até que ponto as críticas de Onfray e Dawkins sobre a “celebração do nada” encontram coerência com a situação religiosa atual?
Álvaro Valls -
A religiosidade em nosso País (e provavelmente na América do Norte e na Europa também) ainda não acertou o ponto de celebrar a vida, de festejá-la, de se solidarizar com a vida que sofre, de apoiar a vida quando vulnerável. Em muitos casos, a religião exerce um papel alienante, voltada apenas para uma outra vida, a de depois da morte, entendida como um “segundo tempo” que nunca acabará. Mas para esta vida, para o primeiro tempo, que está sendo disputado, ainda faltam muitos pontos importantes. Não basta repetir (Santo Irineu?) que a glória de Deus é o homem vivo. Há que saber valorizar esta vida e este tempo.

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