Edição 244 | 19 Novembro 2007

Jogos de azar: ibope no SBT

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“O jogo de azar oferece uma alternativa pública e doméstica, aberta e hermética, pois ele reitera a possibilidade de ficar ‘bem de vida’, apelando para a sorte e sem ter de engajar-se no trabalho”, afirma Sonia Montaño, jornalista, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Para ela, esses jogos que permeiam a programação do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), retratam uma sociedade formada por um sistema que “discerne o valor dinheiro como um instrumento privilegiado para a construção da pessoa”.

A ex-editora da revista IHU On-Line participará do próximo IHU Idéias, que ocorre na quinta-feira, 22-11-2007. No encontro, ela apresentará a palestra “SBT: jogo, televisão e imaginário de azar brasileiro”, tema da sua dissertação de mestrado.

Sonia Montaño escreveu para a edição número 3 dos Cadernos IHU Idéias, intitulado O programa Linha Direta: a sociedade segundo a TV Globo. No dia 5-11-2007, ela contribuiu, com depoimento, na entrevista sobre o impacto ambiental do consumo de carne, concedida pelo biólogo e mestre em Nutrição Sérgio Greif. O conteúdo está disponível na nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu).

IHU On-Line - Qual é a importância do lúdico no desenvolvimento das culturas?
Sonia Montaño -
O jogo tem sido o grande impulsionador de todas as formas culturais. A cultura, como diz Huizinga , se desenvolveu sub specie ludi, sob forma de jogo. Ele pensa o jogo como raiz de cultura: arte, filosofia, direito, rito, mito e tantas outras expressões culturais nasceram jogando. Mesmo as atividades que visam à satisfação imediata das necessidades vitais, como por exemplo, a caça, tendem a assumir, nas sociedades primitivas, uma forma lúdica. É através do jogo que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo. Para Michel de Certeau , por exemplo, cada sociedade mostra sempre, em alguma parte, as formalidades às quais obedecem suas práticas. As formalidades na sociedade ocidental, na qual a cientificidade substituiu, com seus lugares próprios, os complexos terrenos das astúcias sociais, impondo à razão uma lógica da habilidade e da transparência, estariam em lugares tão evidentes que não são vistas. O autor sugere três lugares: os jogos, os contos e as artes do dizer. Semelhante a Certeau, Maffesoli  afirma que o lúdico é uma maneira que a sociedade tem de se dizer. Já diversos teóricos têm feito essa abordagem da sociedade a partir de um ou outro aspecto lúdico. Bauman , por exemplo, faz uma leitura da sociedade de exclusão observando jogos televisivos como o Big Brother. Na análise de Huizinga, ele adverte para uma espécie de atrofia do elemento lúdico depois da revolução industrial. O historiador constatou que as grandes correntes de pensamento do século XIX eram adversas ao fator lúdico na vida social. Nem o liberalismo nem o socialismo contribuíram para ele em alguma coisa. A ciência analítica experimental, a filosofia, o reformismo, a igreja e o estado, a economia, tudo na época se revestia da mais extrema seriedade. Na verdade, o que acontece aí em relação ao jogo e a sociedade é uma mudança ontológica. Vilém Flusser  é um autor que analisa bastante esse fato. Ele destaca duas fortes passagens com efeitos ontológicos na história: a passagem da sociedade agropecuária para a industrial e a passagem da sociedade industrial para a pós-industrial. Esta última tem como ontologia a teoria dos jogos. Em vez de desaparecer o jogo – com determinadas características -, passou a ser o elemento chave da pós-indústria. Embora encontremos camponeses e operários na sociedade pós-industrial, a maioria é composta por funcionários administrativos: muda a experiência, a visão e a ação da sociedade. Gostaria de citar ainda Walter Benjamin , contemporâneo de Huizinga e estudioso das metrópoles que surgiam no século XIX e XX. Ele diz que a realidade passa a ser percebida através de “choques” que valorizam a vivência em detrimento da experiência. Conseqüentemente, perdeu-se a relação histórica entre as ações, assim como acontece nos jogos de azar, em que cada nova jogada independe da anterior. Benjamin estende a idéia do jogo à própria relação política da época. Para a burguesia, até mesmo os acontecimentos políticos tendiam a assumir a forma de acontecimentos de mesa de jogo. O choque, portanto, tornou-se a regra e forçou uma nova percepção. A nossa realidade política, e toda a vida social contemporânea talvez esteja mais próxima da teoria dos jogos que do homo ludens de Huizinga. Esse último teria um papel chave relacionado a encontrar espaços de liberdade em uma sociedade programada, como chama Flusser às pós-industriais.

IHU On-Line - Como a senhora avalia o desempenho da televisão brasileira, enquanto um meio de comunicação lúdico, presente no cotidiano das pessoas? De que maneira a TV tem desenvolvido esse papel?
Sonia Montaño -
A TV é lúdica, isto é, é jogadora e não funcionária que obedece a um programa, quando tenciona suas próprias práticas, as mais habituais, quando dá a ver seu jogo, sua técnica, suas estéticas, revelando os modos da sua produção. Joga-se contra o programa quando se produz zonas de experimentação e de liberdade em relação ao programa do aparelho: quando se diminui a distância entre jogadores e co-jogadores, como diria Gadamer , quando se diminui a distância entre a produção e a recepção, quando se faz avançar as técnicas, nos termos de Benjamin. Isso acontece em diversos espaços de experimentação na TV brasileira, mas não é o mais comum, e está longe de acontecer no SBT. O nosso olhar também está programado. Olhamos para a televisão e toda imagem técnica como simples imagem tradicional, janela da “realidade”, do “mundo”, da “notícia” ou esperamos que ela seja “educativa” e ensine coisas boas aos nossos filhos, coisas que não esperamos de outros veículos de comunicação. Precisamos desconstruir nosso olhar, não somente para compreender a gramática do que temos na nossa frente. Por isso, Derrida  afirmava, no livro Ecografias de la televisión , que assistir televisão é uma tarefa política não só pelos efeitos que a TV tem no jogo político, mas também porque devemos compreender como se faz, como se fabrica, quem tem o poder, quem escolhe, quais as relações de força etc.  Já McLuhan  afirmava que, pela primeira vez na história humana, existem mais informações e dados fora da sala de aula ou da escola do que dentro delas. E se perguntava sobre o futuro da educação num mundo em que as produções de informação se inverteram. Para ele, essa inversão teria que inverter também a função do ensino, trocando a função de instruir pela de descobrir. Isso é fundamental para aqueles que buscam espaços de liberdade na sociedade programada, os jogadores.

IHU On-Line - Como a senhora interpreta os jogos no SBT? Como o sentido de azar está representado nessas “brincadeiras”?
Sonia Montaño -
Escolhi o SBT  para estudar o lúdico porque é a emissora que mais se enuncia através do jogo, embora a presença do jogo na tevê iniciou com a própria TV e está presente em todas as emissoras da de televisão aberta e em muitas por assinatura. No SBT, o azar está no centro de tudo, na mão de Silvio Santos, que está no centro do SBT. Além da presença de roletas, dados e outros elementos de azar, há um imaginário muito próximo como, por exemplo, o imaginário do jogo do bicho brasileiro. Na análise do jogo do bicho, há um destaque para os “banqueiros”. São figuras acessíveis e populares do mundo cotidiano, que mantêm com o apostador um elo relativamente transitório, mas definido por profunda lealdade e plena confiança, porque ambos compartilham um mesmo sistema de crenças. Diante da impessoalidade do mundo urbano, os banqueiros operam na base das intimidades e confianças que constituem parte da sociabilidade brasileira, sobretudo no que diz respeito à construção da pessoa. Um outro elemento comum é a promessa de ascensão social. O SBT apresenta-se como uma promessa de salto na escala social, o que é próprio dos sentidos de azar. Embora nem todos os seus jogos envolvam o azar, há uma produção de sentidos em relação ao azar, presente, de alguma forma, em todos os programas de jogo, em algumas vinhetas e, de forma geral, em toda a programação do SBT. Roberto DaMatta  e Elena Soárez  têm um estudo sobre o jogo do bicho muito interessante, que traz algumas características comuns a todo tipo de jogo popular que, no Brasil, permite a mobilidade social, ou pelo menos a promete.

IHU On-Line - O fascínio por esses jogos está intrínseco na cultura brasileira, por isso esses programas recebem tantas ligações, vendem tantos bilhetes (cartão do Baú, Telesena)? Ou essa opção é conseqüência do mundo do trabalho, por exemplo, que gera poucos empregos. Assim, as pessoas vêem nessas programações uma alternativa de ganhar dinheiro fácil?
Sonia Montaño -
Os jogos de azar estariam sendo capazes de relativizar a ideologia moderna. A essa ordem fundada no mercado, na quantidade, no individualismo, na “ética do trabalho”, na impessoalidade e no utilitarismo, o jogo de azar oferece uma alternativa, ao mesmo tempo pública e doméstica, aberta e hermética, pois ele reitera a possibilidade de ficar “bem de vida” apelando para a sorte e sem ter de engajar-se no trabalho. Não se trata de a sociedade brasileira simplesmente gostar de valorizar o ganho fácil, mas de um sistema que discerne o valor do dinheiro como um instrumento privilegiado para a construção da “pessoa”. Trata-se, então, de uma concepção de “pessoa” complexa e exigente. Os jogos de azar que envolvem dinheiro têm como objetivo precisamente a “desclassificação” das pessoas, eventualmente desarrumando, com seus resultados, o quadro de categorias sociais fixado pelas leis da propriedade privada e do dinheiro, pela criação incessante de “novos-ricos” e de “pobres novos”. Temos, então, no SBT, a atualização de um imaginário lúdico complexo, no qual o poder do jogo, além do prazer e alegria que a ludicidade traz, é inseparável de valores personalizantes, da riqueza, do consumo e de uma certa enunciação sobre uma pirâmide social injusta, embora nada mais heierarquizado que as relações sociais no SBT dentro e fora da tela.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição