Edição 428 | 30 Setembro 2013

Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de democracia

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Redação

“Os partidos, a academia, a polícia e os jornalistas procuravam desesperadamente identificar, e por vezes até direcionar, líderes, objetivos e pautas das manifestações. Falharam em grande medida”

Caio Lobato é morador do Rio de Janeiro – RJ, graduando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro IFCS- UFRJ e membro do Comitê Editorial da Revista Habitus - revista da Graduação em Ciências Sociais da UFRJ.

Confira o depoimento.

 

Perdido. Sim, perdido, devo confessar, por mais dolorido que o seja – nenhuma outra palavra poderia descrever com melhor exatidão como me encontrava naquele singular dia 10. Era minha primeira participação direta nas múltiplas manifestações que assolaram o Brasil no mês de junho e que persistiram nas semanas seguintes ainda chacoalhando com força algumas cidades. Nem mesmo os mais altos catedráticos ousam afirmar com sua completa segurança e sisudez habitual se os poucos atos que ainda teimam em prosseguir capturando a atenção dos telejornais seriam os comuns e não tão temidos tremores secundários após grandes terremotos ou se são sinais precursores de um abalo sísmico ainda maior que estaria por vir. Mas não nos adiantemos - façamos o que exige qualquer manual voltado a escritores iniciantes, insistindo em relembrá-los do básico: comece pelo início. Às 18h do referido dia, participava eu de mais um encontro editorial da revista da qual faço parte, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), no Largo de São Francisco, centro do Rio de Janeiro. Com a reunião já se alongando insossamente para seu fim, arroguei-me o direito de, entre uma fala e outra, puxar meu celular e teclar rapidamente uma mensagem de texto, enviando-a a dois destinatários: “Como está o ato?”.

Requisitava informações a amigos sobre a passeata que se desenrolava a algumas centenas de metros dali, posicionando-se fisicamente na avenida Presidente Vargas e politicamente contra o aumento de R$ 0,20 das passagens no município do Rio de Janeiro. A manifestação do dia 10 era o seguimento do que ocorrera quatro dias antes, quando, em parte incentivados pelas passeatas em São Paulo convocadas pelo agora já famoso Movimento Passe Livre (MPL), cerca de 100 ativistas se manifestaram pacificamente, no mesmo espaço, no mesmo horário e com a mesma pauta. Como fora informado por conhecidos, não muito diferente de sua inspiração paulista, os cariocas que protestaram no dia 6 foram recepcionados por bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo disparadas pela tropa de choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Como estudante de Ciências Sociais e há anos participante um tanto quanto flâneur de alguns círculos variados de ativismo político no RJ, os relatos me entusiasmaram e aquiesci em participar do próximo a alguns amigos. Era com estes que tentava me comunicar disfarçadamente durante a referida reunião. Duas respostas curtas se sucederam rapidamente: “Pau comendo”; “Black bloc”.

A última me deixou atônito. Diferentemente do agora, em que o “black bloc” estampa capas de revistas de grande circulação e é tema especial de reportagens em canal de notícias nacionais, até aquele momento só era possível observar esta tática de luta anticapitalista a partir de vídeos, textos e artigos sobre manifestações em outros hemisférios, além oceanos, não em nossas praias tupiniquins. Ansioso para ver o que ocorria, dei fim à reunião que já se arrastava e rumei rapidamente à manifestação. Em meus anos de ativismo desde o ensino médio, mesmo não me considerando um militante e nunca tendo me filiado a nenhuma organização, já havia participado de dezenas de passeatas, visitado e participado de ocupações, chegando mesmo a ver a tropa de choque em ação – nada disso havia me preparado para o que testemunharia.

Cruzando as apertadas ruas do Saara, espaço de comércio popular no centro do Rio posicionado entre o já referido IFCS e a avenida Presidente Vargas, deparei-me com uma cena que parecia saída de reportagens de cenários de guerra. Bombas explodiam por todo o lado, jovens ativistas corriam perseguidos por várias motos policiais, nuvens de gás se espalhavam pelo camelódromo. Trabalhadores recém-saídos do trabalho tentavam desesperadamente se abrigar nas lojas, que eram apressadamente fechadas pelos comerciantes, muitos aterrorizados. Controlando a adrenalina, continuei avançando e cheguei à Presidente Vargas. Mais trabalhadores confusos, muita correria, dezenas de homens da PM fechando a avenida, enquanto o barulho das bombas prosseguia.

Subitamente, deparei-me com o que identifiquei como os referidos black bloc passando à minha frente, seguindo no sentido inverso ao pretendido inicialmente pela passeata. Muito diferente dos grupos organizados que veríamos chegar a algumas centenas de ativistas caracteristicamente vestidos de preto nas semanas seguintes em manifestações no Rio, os que passavam por mim naquele instante não contavam mais do que algumas dezenas de pessoas. Em sua maioria abaixo de vinte anos, alguns poucos vestidos com a cor negra, corriam a plena velocidade pelas largas calçadas da Presidente Vargas, acossados e perseguidos por um grupo muito superior de policiais empregando balas de borracha, cassetetes e tasers indiscriminadamente e indiferentes aos transeuntes presos no meio do conflito.

Sem saber o que fazer, desorientado em meio à confusão, liguei para um amigo, que me atendeu prontamente. Encontramo-nos e me espantei que ele, também acostumado a passeatas, estava assustado.  Começou a me explicar que tinha visto a polícia iniciar o confronto, o que foi seguido por manifestantes quebrando vidraças de algumas agências bancárias e de um prédio do Banco Central. Passamos a andar juntos, observando os danos feitos pelos ativistas e a ação de grupos do Batalhão de Choque fazendo varreduras e prisões a esmo pelo agora deserto Saara, que estaria cheio fosse um dia como qualquer outro. Os manifestantes tinham se dispersado, mas os reencontramos seguindo a Presidente Vargas. Umas poucas dezenas se aglomeravam em frente à Delegacia Estadual da Criança e do Adolescente, prestando solidariedade a alguns detidos para ali encaminhados. Este grupo, ao qual nos integramos, multiplicar-se-ia até uma centena de pessoas com a chegada crescente de mais ativistas. Unidos, ainda bloquearíamos por alguns minutos o trânsito de quatro pistas da Presidente Vargas, ato pelo qual seriamos alvo de mais bombas e tiros por parte da tropa de choque antes de encerrar a noite.

Perdido, foi como me encontrei ao fim daquele dia. Estava imerso num misto de surpresa, encantamento, animação e preocupação, sentimentos que ainda se reproduziriam amplamente pelas semanas seguintes pelos múltiplos acontecimentos. Participaria de plenárias envolvendo milhares de participantes de diferentes perfis e ideias em tentativas de deliberar de forma democrática e horizontal, sem representantes, novos atos e os rumos do movimento. Ocorreriam três ocupações - duas em frente à residência do governador e uma, ainda que muito breve, na Câmara dos Vereadores. Presenciaria enfrentamentos com a polícia, alguns alcançando o nível de batalhas campais chegando a envolver blindados, munições de borracha e também letais, bombas, cassetes, escudos e tasers por parte de policiais, e barricadas, estilingues, pedras, fogos de artifício, bombas de tinta, escudos e molotovs por parte dos manifestantes.

Haveria passeatas com centenas de milhares agremiando punks, anarquistas, comunistas, militantes partidários, movimentos sociais, sindicatos, ativistas LGBTT, manifestantes independentes, nacionalistas, internacionalistas, coletivos artísticos, velhos e jovens, direitistas e esquerdistas, os mais diversos grupos e pautas, muitas vezes até mesmo contraditórios entre si. Ficaria sitiado pela polícia junto a uma centena de outros jovens dentro de universidades federais. Observaria destruição por manifestantes de carro de rede de tevê, agências bancárias, ônibus, estabelecimentos comerciais, pontos de ônibus, etc. Testemunharia a polícia atacando pessoas indefesas, praticando prisões arbitrárias, impondo toques de recolher e atacando hospitais. Assombrar-me-ia com milhares de brasileiros, nascidos em nosso querido país do futebol, cantando a plenos pulmões “Não vai ter copa” e indo ao Maracanã aos milhares para protestar em dia de jogo da seleção. Veria um dia de paralisação geral dos sindicatos com uma passeata de dezenas de milhares. Acompanharia durante madrugadas a transmissão ao vivo dos Ninjas e sua nova modalidade de mídia alternativa, cobrindo indubitavelmente melhor (nenhuma outra palavra se aplicaria) do que os maiores canais de televisão. Todos estes fatos integram apenas uma diminuta listagem do que consegui vivenciar, de forma relativamente direta, em minha própria cidade.

Perdidos. Sim, perdidos, assim deveriam se confessar os partidos, os políticos, os analistas na academia, a polícia nas ruas, os governantes em seus palácios e os jornalistas em suas redações frente à onda de manifestações. Procuravam desesperadamente identificar, e por vezes até tentavam apontar e direcionar, líderes, objetivos, grupos, rumos, pautas. Falharam em grande medida. Assim como falharam todos os grupos que observei em primeira mão tentando direcionar univocamente a multidão num sentido desejado, seja em passeatas ou em plenárias. Creio que há uma raiz em comum para os erros de agentes tão diversos: lidar com tal efervescência coletiva tentando explicá-la somente através de concepções e categorias usualmente empregadas para pensar movimentos sociais e manifestações; estas concepções usuais não se aplicam facilmente à nova forma de ebulição social.

Indico aqui apenas algumas das singularidades, incomuns para o contexto brasileiro, que se apresentam: articulação em rede pulverizada, com grande uso da internet como ferramenta de mobilização; profusão das mais inúmeras reinvindicações ao mesmo tempo no mesmo lugar; ações na rua realizadas no âmbito de uma diversidade de táticas incluindo desobediência civil, ação direta e uso de humor e frivolidade na crítica de autoridades; união no mesmo espaço de grupos e pessoas de posicionamentos políticos os mais variados; um desprezo pelas formas tradicionais de política e mobilização, compreendidas aqui como partidos, eleição de representantes e lideranças formais com rituais de investidura. Isso tudo se traduz em formas de organização que tendem a desenvolver características como ênfase na horizontalidade e no caráter assembleístico, divisão em grupos de trabalho e tomadas de decisão por consenso. Afinal, como compreender e desenvolver uma chave de análise capaz de dar conta deste novo que surge de forma multifacetada? Onde estaria o ponto de ligação entre os black blocs, missas de sétimo dia para manequins, a mídia Ninja, os cantos de “acabou o amor, isso aqui vai virar a Turquia”, os palhaços com sua “Tropa de Nhoque”, as palavras de ordem contra Eike Batista, as Marcha das Vadias, a tarifa zero e os enigmáticos manifestantes que apareceram aos milhares pelas ruas trajando ao mesmo tempo a bandeira nacional e a máscara do revolucionário inglês católico Guy Fawkes popularizada pela HQ anarquista V de Vingança?

Por enquanto, só vislumbro uma forma de conciliar estes discursos e práticas fora do comum, que seguem ganhando espaço e se contrapondo à doxa ao encontrar vagas correspondências com as crises acobertadas que vivemos em nosso cotidiano. O tempo deu voltas e 1968 retorna a nos interpelar com sua exigência: “A imaginação ao poder”.  No dia 17 de julho, continuando a onda de protestos do mês anterior, ocorreu no bairro do Leblon, na zona sul do Rio, mais um ato contra o governador Sérgio Cabral. Não diferente de muitos atos nas semanas anteriores, houve enfrentamento entre manifestantes e a polícia e depredação de bancos e lojas comerciais – o que foi ficou largamente conhecido pela profusa disseminação nos jornais do saque ocorrido na loja da Toulon. Em meio às barricadas erguidas durante os interstícios do confronto, dois manifestantes estendiam uma faixa, prontamente fotografada e filmada por vários dos repórteres que ali se encontravam. “A barricada fecha a rua mas abre novos caminhos”. Ali, naquela frase escrita em garranchos de tinta preta em tecido branco, havia mais do que uma simples paráfrase dos grafites que se espalharam por Paris naquele maio de 68. O autor, sabe-se lá se consciente ou inconscientemente, talvez se poste para além de 68. A barricada não abre “o caminho”, como no original francês, mas “caminhos”, no plural, sugerindo o que parece figurar como diversas possibilidades. 

É como se a sociedade, entendida da forma mais ampla possível, não aparecesse aos manifestantes como algo inexorável, transcendente aos cidadãos e dotada da única e melhor forma possível de organização, aquela que só poderia ser modificada por certos meios institucionais já instituídos. Parece que esta massa de pessoas que vai à rua, recusando-se a ser objeto de sentidos e rótulos fáceis, declara categoricamente: a sociedade é fruto de nossas próprias ações e está aberta a grandes intervenções imaginativas. Não à toa, no centro do estopim de todos os acontecimentos estava o Movimento Passe Livre. Esse anti-herói avesso a se posicionar como o líder; contendo em seu núcleo mais ativo jovens, recém-ingressos nos seus vinte anos; operando de forma abertamente apartidária; se organizando internamente com destaque radical à horizontalidade e à autonomia, o que o leva a tomar decisões por consenso dos participantes; e dotado de uma proposta ousada, a tarifa zero, colocada fora dos programas políticos cotidianos e apregoada por políticos dos mais diversos partidos como impossível. Não a esmo decolou: propunha novos métodos e arranjos para se combater velhos problemas e questões, como o transporte público e o desenvolvimento democrático de projetos para a cidade.

Enquanto grandes mudanças mensuráveis não aparecerem como fruto das movimentações, se é que haverá tais mudanças, talvez seja isto que esse movimento – ou estes movimentos, se levarmos a sério sua pluralidade – tem de mais interessante a nos dizer: se trata de um laboratório, de convites para transpor e romper limites, para experimentar outras formas de ação, de organização, de democracia, de política e de sociedade. O Brasil se declara agora no século XXI. Cabe a nós decidirmos como e em que direção isto se desdobrará.

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