Edição 428 | 30 Setembro 2013

Manifestações expõem fragilidades e limites do projeto constitucional-republicano de democracia

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Redação

Cinco participantes das manifestações que surpreenderam o Brasil entre os meses de junho e julho narram suas experiências, impressões e avaliações dos protestos. São homens e mulheres, jovens e adultos, de profissões e formações culturais distintas, que estiveram presentes em atos organizados nas cidades de Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro.

Os depoimentos foram realizados a partir de convite feito por meio do Facebook, uma das principais ferramentas utilizadas nas convocações para os protestos. Daniel Teixeira, mestrando no Departamento de Antropologia do Museu Nacional – UFRJ, também deu contribuição à coleta destes depoimentos, sugerindo nomes de pessoas que participaram das manifestações e que, solidariamente, enviaram seus textos.

Eis os textos.

 

“Do dia pra noite todas as grandes TVs, rádios e jornais viraram apoiadores das manifestações, o que ajudou a aumentar a sensação de que algo estava errado”

Gabriel Machado é morador de Belo Horizonte e graduando do curso de graduação em Engenharia de Computação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG.

Confira o depoimento.

 

No último mês de junho, fomos todos surpreendidos por várias manifestações país afora. As marchas se tornaram grandes como há décadas não se via, embora seus objetivos e anseios fossem (e ainda são) pouco definidos. Como vários outros brasileiros, fui às ruas por curiosidade. Esperava que fosse o início de uma mudança com a qual sonhava já há tempos, uma virada à esquerda, um levante popular, o povo assumindo seu papel de líder da nação. O que vi nas ruas, porém, foi bastante diferente do que imaginei.

Estive nas ruas nos três jogos da Copa das Confederações realizados em Belo Horizonte. No primeiro cheguei tarde. Peguei um ônibus e me dirigi à região da Pampulha, onde fica o estádio Mineirão. No caminho, fui tentando ligar para amigos e ter notícias do que estava ocorrendo. Nenhum me atendeu. Já havia se passado cerca de quatro horas desde que a marcha partira da Praça Sete de Setembro, no centro da cidade. Tive notícias, por familiares, de que os confrontos já estavam ocorrendo e que a polícia tentava dispersar os manifestantes.

Chegando próximo à UFMG, vi uma fila interminável de viaturas da polícia. Fiquei algum tempo sentindo o clima do ambiente. Muitas pessoas cantavam, riam e tocavam instrumentos, mas a qualquer barulho mais alto a correria recomeçava. O cheiro de gás lacrimogêneo ainda era forte no ar. Algumas pessoas derrubavam grades e a cerca da universidade estava no chão. Fui caminhando com o restante dos manifestantes de volta à praça Sete e vi no caminho várias pichações em protesto à Copa, à Fifa e às políticas públicas implementadas pelo prefeito e pelo governador. Ainda eram apenas rascunhos das pichações que seriam feitas nas próximas manifestações.

Desci procurando um ônibus, porém tive que andar mais de uma hora até passar o primeiro. O trânsito continuava fechado e os veículos passavam lentamente. Pela praça Sete passam milhares de pessoas durante o dia e, à noite, tomam conta da cena os bares e os frequentadores dos quarteirões fechados: hippies, punks, jovens de periferia e de classe média, grupos de surdos-mudos, moradores de rua, além de carrocinhas de cachorro-quente e a polícia. Nesse lugar, se encontravam cerca de três mil pessoas, várias ainda segurando cartazes e outras apenas conversando e avaliando o dia. Passado algum tempo, um grande grupo de manifestantes chegou vindo da Pampulha. Depois fui embora – tinha que trabalhar no dia seguinte. Já em casa acompanhei pela PosTV o desenrolar do protesto, que terminou em bruta pancadaria no centro da cidade, com manifestantes quebrando bancos e grandes lojas e policiais reprimindo fortemente. Não houve nenhuma boa notícia.

Nos dias seguintes a essa primeira manifestação fui recolhendo relatos de amigos que me contaram do horror que passaram. Bombas atiradas para o alto, manifestantes correndo desesperados, cavalaria avançando sobre as pessoas, tiros de borracha, cassetetes e desespero generalizado. Vários conhecidos levaram tiros de borracha. Uma amiga levou um golpe de cassetete na cabeça que a fez levar vários pontos – há um vídeo que mostra ela se levantando do chão e caindo em seguida com o golpe dado pelo policial. Nenhum destes conhecidos estava em enfrentamento com a polícia, nenhum deles reagiu ou arremessou algo e todos levaram os tiros direto no corpo, mostrando que a polícia simplesmente ignorou a instrução de ricochetear no chão as balas de borracha.

Nas conversas que tive depois dessa primeira marcha, as impressões que compartilhei com meus amigos foram de que, além de despreparados, não éramos um grupo unificado. Grande parte das pessoas ia às ruas sem noção do que exigir de nossos governantes. Muitos cartazes traziam dizeres vagos como "abaixo a corrupção" ou "valorização da saúde", numa clara demonstração de que a ação política ainda é algo muito distante de nossa realidade.

No segundo jogo, fomos à manifestação mais preparados. Chegamos à praça Sete e vimos que o cenário era diferente. Além de vários cartazes de "Fora Dilma" e coisas do tipo, havia um bloco de esquerda que nunca imaginei ver unido. Vários partidos, que em outras situações estariam se digladiando, se uniram em um grupo maciço para se proteger e levantar bandeiras em comum. Algo raro de se ver. Fomos "armados" de cartazes/escudos, feitos de cartolina e papelão grosso, com o objetivo de nos proteger de eventuais tiros de bala de borracha (eles funcionaram maravilhosamente bem).

Iniciamos a marcha em direção ao estádio e fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que estava nas ruas. Ao chegarmos à UFMG, cerca de nove quilômetros depois, tive notícias de que ainda havia pessoas saindo do centro da cidade. A quantidade de manifestantes, estimativa sempre tão flutuante, chegou a 200 mil em algumas fontes. Chegando lá, o cenário era ainda pior do que no primeiro dia. Além da Polícia Militar, estavam nas ruas o Exército e a Força Nacional de Segurança, estes dois últimos dentro do campus da UFMG, fato inédito até durante a ditadura. A polícia havia montado uma barreira na avenida Antônio Abrahão Caram, ao lado do campus, em frente ao viaduto José de Alencar.

Fomos para perto da barreira, para ver, ouvir e sentir o clima. O que vimos foi assustador. Ao lado do Batalhão de Choque estavam pelo menos 50 homens da força nacional, ocultos pela vegetação junto à cerca do campus. Vimos várias pessoas incitando os manifestantes sobre a polícia, que já atirava algumas bombas de gás lacrimogêneo. Entre elas estava um homem, já pra lá dos 50, de camisa regata e com quase dois metros de altura que gritava para os manifestantes "vamos pra cima deles! Vamos, é nossa chance!". Outro homem, esse sem camisa e na casa dos 40, gritava, nervoso e bravejante, "avancem! Vamos! Pra cima deles!".

Os manifestantes nada faziam além de assistir. Algumas poucas pessoas arremessavam, lá de trás, pedras e rojões. E então a polícia resolveu reagir. Sem nenhum sinal visível, bombas de gás e de efeito moral voaram da barreira do choque e de dentro do campus. Várias balas de borracha vieram em nossas direções e, nessa hora, ficamos felizes por estarmos com nossos escudos. A sensação do gás foi horrível, senti vontade de vomitar e senti minha garganta fechando. Saímos correndo. Alguns poucos foram para a frente e começaram a chutar e devolver as bombas. Muitas pessoas correram para cima do viaduto, de onde várias caíram e dois morreram durante as manifestações. Passamos vinagre num pano para aliviar a sensação de sufocamento e ardência.

Depois disso resolvemos que já tínhamos visto o bastante e fomos para a casa de uma amiga em um bairro vizinho. Eram cerca de 17h. Ficamos lá fazendo uma avaliação da manifestação e a sensação de derrota era unânime. Todos se sentiam desnorteados e tinham a sensação de que algo de muito ruim estava para acontecer. Nos escondemos todos lá até depois das 22h e ficamos ouvindo os helicópteros e sentindo o cheiro do gás, que se espalhava pelo bairro. Todas as notícias que recebemos foram sobre a violência policial: além das já habituais bombas e balas de borracha, a cavalaria avançava em massa e os helicópteros auxiliavam a lançar bombas e a espalhar o gás. Fui pra casa de táxi com um casal de amigos e continuei acompanhando pela PosTV a manifestação, que acabou de forma semelhante à anterior. 

Entre o primeiro e o segundo protestos em Belo Horizonte, a mídia nacional mudou o discurso completamente. Enquanto antes se falava de baderneiros e vândalos, agora se falava do gigante que havia acordado. Do dia pra noite todas as grandes TVs, rádios e jornais viraram grandes apoiadores das manifestações, o que ajudou a aumentar a sensação de que algo estava errado. Apesar desse sentimento ruim, via-se que todos estavam tão desorientados quanto eu: o governo, a mídia, a polícia e o restante dos manifestantes. Nas conversas que tive depois da segunda marcha, cheguei à conclusão de que toda essa violência desnecessária da polícia, os agentes infiltrados provocando vandalismo (o que foi flagrado em vídeo mais de uma vez) e a reviravolta na opinião da mídia faziam parte de um plano para deslegitimar as marchas.

No jogo seguinte, cheguei na praça Sete com certo atraso. A massa já havia saído e poucas centenas de pessoas ocupavam a rua despretensiosamente. Fiquei um tempo por lá e fui cuidar de outras coisas. As notícias que recebi depois foram assustadoras: um grupo de manifestantes mais organizado, além de quebrar várias lojas, queimou carros de concessionárias, soltou foguetes e rojões na polícia e transformou a Pampulha em um cenário digno de filme de ação. A polícia respondeu à altura.

Não sei de onde surgiu a ideia da Assembleia Popular Horizontal, mas a convocação foi feita pelo Facebook e a plenária aconteceu debaixo do Viaduto Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte. Nesta primeira, havia cerca de mil pessoas. Tudo aconteceu em clima de paz e alguns atos foram marcados. Naturalmente havia vários integrantes de partidos, de movimentos sociais e de organizações não governamentais, mas também havia muitos autônomos, não vinculados a nenhuma instituição, além de policiais disfarçados. Outras assembleias ocorreram e marcou-se um ato para um sábado de manhã, em frente à Câmara dos Vereadores. Nesse dia, havia sido marcada uma sessão extraordinária para votar uma proposta enviada pelo prefeito Márcio Lacerda para diminuir o preço da passagem de ônibus. A proposta previa uma isenção de um imposto municipal para que a passagem abaixasse 10 centavos.

A manifestação ocorreu com confronto da polícia, que atirou gás de pimenta a esmo, e terminou com uma ocupação da câmara que durou uma semana. Esta ocupação, por um lado, conseguiu uma reunião com o prefeito e outra com o governador, mas, por outro, desmobilizou a assembleia, pois a mesma passou a ser marcada em cima da hora e dentro da própria Câmara de Vereadores. Depois de uma semana de atividades, decidiu-se por desocupar a câmara e realizar uma ocupação cultural de uma tarde no centro da cidade. Ao final de todo este processo, conquistou-se a diminuição da passagem de ônibus em 15 centavos. Entretanto, o mais importante dessa questão, a abertura das planilhas de custo das empresas de ônibus, não aconteceu.

Desde então, o movimento de rua esfriou visivelmente em Belo Horizonte. Ainda assim, continuam acontecendo assembleias nas quais várias pessoas tentam reverter a metodologia para algo realmente democrático e horizontal. Vários grupos se formaram, vários contatos foram feitos e os grupos que já existiam se fortaleceram. Espero que alguma mudança significativa ocorra e que tudo isso não tenha sido em vão. Espero que essa balançada na inércia do povo tenha um efeito positivo e que as pessoas cobrem mais de seus representantes. Espero que esse movimento não dê uma guinada à direita. Espero, principalmente, que uma nova forma de representatividade surja para que tenhamos realmente voz diária na política e não apenas de dois em dois anos. Venceremos!


“O Facebook era uma miríade de opiniões humildes, ironias vagas, desconfianças tenebrosas e certezas absolutas”

Mozart Teixeira é morador de Brasília, estuda biblioteconomia na Universidade de Brasília - UNB e faz estágio no Senado Federal.

Confira o depoimento.

 

A violência na repressão policial aos protestos do dia 13/06 desencadeou em uma insatisfação que chegou até as portas do Congresso Nacional. Foi em 20/06 que Brasília viu seu terceiro e maior protesto, como não se via, talvez, desde 1992. Nunca me esquecerei do que ocorreu naquele dia.

Por volta das 17h, no meu estágio na biblioteca do Senado, já era notória a inquietação no ar, mas só ao sair do expediente em direção ao protesto é que fui entender a real gravidade da situação. Andei sozinho a pé no trecho entre a parada de ônibus localizada ao lado do Palácio do Planalto e os ministérios. Eram centenas de metros de tropas da polícia, o que me deixou tenso. Mas nenhum policial mexeu comigo. Não me revistaram, nada. Calmamente, cheguei ao protesto. 

Por volta de 18h20min, cheguei ao gramadão em frente ao Congresso Nacional e, realmente, nunca vi tanta gente na minha vida. Nesse momento, o clima era leve, festivo. Rapidamente constatei que não era possível encontrar bandeiras de partidos na multidão. Isso deixa muitas pessoas preocupadas. Algumas falavam em teorias da conspiração, em fascismo, em golpe.

Havia dias eu tinha percebido que, daquilo ali, qualquer partido sonharia em se apossar. Na segunda-feira da mesma semana, três dias antes da manifestação do dia 20, um militante vestido com a camiseta de um partido tentou falar com a polícia em nome da manifestação. Foi prontamente desacreditado e expulso. Tenho certeza de que havia outros partidos, de todo tipo de orientação ideológica, querendo tentar o mesmo. Eu fiquei satisfeito, porque tenho o receio dos protestos se mercantilizarem. De pessoas receberem cachês de partidos para usar camisetas e empunhar bandeiras nesses protestos. Basta pensar em como as coisas são nas eleições. Daqui a pouco estão até distribuindo santinho. Enfim... 

Cheguei sozinho, passei horas perambulando pelo gramado do Congresso e no Eixo Monumental, principalmente no lado do Palácio Itamaraty. Ali, o fluxo de pessoas vindas da rodoviária e do Museu Nacional para o protesto chamava atenção, por ser aparentemente interminável. Muito bonito naquele momento, mas também um prelúdio dos problemas que estavam por vir.

Anoiteceu. Alguns amigos chegaram da Universidade de Brasília (UnB) e nos encontramos embaixo da bandeira do estado de Minas Gerais. Nos dirigimos ao gramado e nos unimos àquele coro colossal de palavras de ordem e frases de efeito, do tipo "policial, pai de família, não defenda essa quadrilha!", "Copa do Mundo, eu abro mão! Quero dinheiro pra saúde e educação!", "Brasil, vamos acordar! Um professor vale mais que o Neymar!". Alguns dizem que os protestos se pautam em conceitos vagos e amplos demais. Eles tentam determinar quais são as pautas comentando o que se grita nas ruas. Não entendem que nenhuma multidão de dezenas de milhares de pessoas se expressa através de discursos elaborados, declamados em uníssono. 

A característica mais marcante ali foi o caráter cosmopolita da manifestação. Lá havia pessoas de todo tipo, que entre si discordavam com frequência: sobre se deviam ou não (tentar) invadir o Congresso; depredar ou não o patrimônio público; insultar, ou até agredir, ou não a polícia; se você devia ou não correr ao chegarem as bombas de gás lacrimogêneo. A maioria parecia tender a um certo pacifismo, mas os elementos belicosos acabam, em algum momento, sendo mais ruidosos. E realmente se fizeram notar. 

E aí o caos deu as caras. 

Metade das bandeiras dos estados foram roubadas ou queimadas. Eu mesmo, junto com alguns amigos, me peguei discutindo aos berros com duas garotas que queriam queimar uma delas. Agora, em retrospecto, acho que isso foi uma grande perda de tempo. Lamento as bandeiras terem sido queimadas, discordo de quem o fez, mas percebo que não estou em posição de julgar qual a forma mais ou menos apropriada de protestar contra tantos motivos de descontentamento que estão nas profundezas há muito tempo, e só agora vieram à tona. 

O gás foi se acumulando em grande quantidade a poucos metros do Congresso, entre as bandeiras e o espelho d'água. A multidão segurou a onda o quanto pôde. Ao nosso lado, pedaços de lixo pegavam fogo. Em dado momento a situação ficou insuportável, confesso que até entrei um pouco em pânico. Então alguém gritou "vamos pro Itamaraty!". Se algum dia eu descobrir que isso partiu de algum agente de segurança pública, não ficarei nem um pouco surpreso. Mas também não vou pôr minha mão no fogo por isso. Um cesto tão grande dificilmente passa sem ter alguma maçã podre. A multidão subiu em direção ao Itamaraty fugindo do gás. Algumas pessoas pareciam ter mesmo intenção de invadir. E a gente foi atrás, pra ver no que ia dar. 

Houve corre-corre. Muitas bombas caindo, barulhos de tiro de borracha. Nos abrigamos atrás de uma Kombi, para nos proteger mais do corre-corre da multidão do que de qualquer outra coisa. Levou alguns minutos para percebermos que era uma zona aquilo ali, mas não era o fim do mundo. De repente até começamos a nos habituar com o gás lacrimogêneo. 

Às vezes me pergunto se não é esse o problema, de nos acostumarmos com coisas demais. Os paulistanos e cariocas, com o Comando Vermelho, o Primeiro Comando da Capital (PCC), arrastões e milícias ao longo dos anos, será que não estão ficando habituados ao quebra-quebra? Será que não estão perdendo o medo de barulho de tiro? Para um cara que já vivenciou tiroteio em túnel ali, colado com Copacabana, qual o real significado de umas bombinhas de gás lacrimogêneo e umas balas de borracha? 

A tentativa de invadir o Palácio do Itamaray falhou. Achei estranho. Já viram aquele lugar? Um espelho d'água raso e pouco extenso, vidro pra todo lado. Ouvi dizer que conseguiram fazer uma pichação na área externa. Achei estranho, mas também desconheço a tática usada pela segurança para impedir as pessoas de entrarem ali. Respirei aliviado. Do lado de fora, uma barraca que sobrou de algum desses eventos "pão e circo" da Esplanada dos Ministérios foi atingida pelas chamas que atearam em uma caçamba de entulho cheia de lixo. Mas pelo menos não era a tela Paz e Concórdia, de Pedro Américo, que estava pegando fogo dentro do palácio. 

As coisas foram ficando gradualmente mais calmas. A massa antes concentrada no gramadão se dispersou. Alguns ambulantes aproveitavam pra vender água, refrigerante, cerveja e comida. Pessoas compartilhavam vinagre com quem pedia a todo momento. A multidão oscilava entre momentos de simpatia e antipatia com os PMs, que, inclusive, levaram uma faixa com palavras de apoio à manifestação – um de meus amigos entrou no espelho d'água pra ajudar a segurar a faixa e mostrá-la, para a multidão e para a própria polícia em momentos alternados. 

A multidão ficou em um vai-e-volta por causa do gás, até dispersar de vez. Na confusão mental daquele espetáculo babilônico todo, me descuidei e deixei cair meu celular, que já estava sem bateria de tantos telefonemas e mensagens que iam e vinham a todo momento. Na saída, paramos pra catar alguns restos de bomba e encontramos uma bala de borracha. Paramos pra ver como ficou o Itamaraty no fim da manifestação. Acabamos conversando com dois PMs que, muito cordiais, explicaram que concordavam com as reivindicações dos manifestantes, entendiam seus motivos e compartilhavam muitas das suas opiniões e interesses gerais. Disseram também que acharam linda a manifestação da segunda-feira anterior, enquanto que, a do dia 20, um fracasso total. 

Cheguei então em casa e abri o Facebook. Vi que as informações não paravam de chegar. Era uma miríade de opiniões humildes, ironias vagas, desconfianças tenebrosas e certezas absolutas. Discussões, textos e textos e textos, vídeos e vídeos e vídeos. Com tudo que surgiu na rede relativo a esse assunto naqueles primeiros dez dias, um sujeito sério e analítico pode se ocupar por muito tempo, talvez até o resto do ano. Esses protestos não são como os da Turquia, aonde há um alvo pontual para a insatisfação popular. A presidente Dilma Rousseff até pode estar com a aprovação em queda, mas passa longe de ser um Erdogan (o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan). Há quem fale em impeachment. Eu interpreto isso um pouco como um eco de 1992; aquele não foi um ano qualquer e eu, que na época ainda nem sabia ler, ainda me lembro daquela situação maluca de inflação e insegurança total relativa aos rumos do país. E de como tudo parecia estar bem a partir do momento em que o então presidente Fernando Collor de Mello tinha sido botado pra correr.

Pra mim é clara a relação com o mensalão (esquema de corrupção envolvendo pagamentos a parlamentares) e uma decepção. Duas décadas separam esses dois momentos emblemáticos (impeachment de Collor e mensalão) e muitos dos agentes políticos da primeira época são os que estão aí hoje. O Collor sofreu impeachment em 1992, foi execrado pela mídia e opinião pública, mas hoje está no Senado. A política brasileira às vezes toma rumos que até o capeta duvida, só pra depois voltar ao que era antes, como um grande hímen complacente que não cede nunca.


“Transitamos por toda a passeata sem realmente achar um ambiente próprio às nossas reivindicações”

Camila Falconi é moradora do Rio de Janeiro, graduanda em Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense – UFF onde também é estagiária, além disso, trabalha na Galeria de Arte Patrícia Costa.

Confira o depoimento.

 

Participei de duas manifestações no Rio de Janeiro, ambas durante o mês de junho, em um momento crucial do processo de reivindicações: a do dia 17 de junho, que teve seu desfecho na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), e a de 20 de junho, que seguiu à Prefeitura. É preciso ressaltar que, apesar de estar em grande grupo, depositava minha confiança no senso do meu namorado, já que compartilhamos a decisão de não irmos até o fim – no sentido de não nos envolvermos naquele ponto da passeata em que a linha tênue entre violação de direitos humanos e o exercício cidadão de expressão desaparece. Estive em ambas as passeatas desde o início, sempre combinando o encontro por volta de 17h.

Nos ambientes que frequentei, nos arredores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da UFRJ, havia em suspenso uma certa tensão. Contudo, apesar do preparo para qualquer tipo de situação, incluindo máscaras, vinagre, capas de chuva, ninguém planejou uma reação mais específica e direta, uma retaliação mais agressiva. Na primeira manifestação, percorremos a avenida Rio Branco sem grandes alardes. Chegamos a descansar um pouco próximo à avenida Nilo Peçanha, mas sem de modo algum conseguir avistar o fim da carreata fervorosa que passava. Até que soubemos que o fim não seria mais na Cinelândia, que o front da manifestação queria ir até a Alerj. Claro que é aí que toca a sirene... Mas meu intento era de não dispersar tão cedo, pois é quando estamos em grupos pequenos que os policiais militares atacam e ganham força. Mesmo assim, andei com meu namorado a passos bem menos ansiosos que meus amigos, deixando uma boa distância dessa galera que queria muito ir à Alerj.

Ouvi o primeiro estouro, e logo muitos se desesperaram. Conseguimos manter a calma da galera apesar desse primeiro susto, pois o pânico poderia acarretar incidentes diversos. Sentamos no chão gritando “calma” a todos, e aderiram – quando cheguei em casa naquele dia soube que esse primeiro estouro era a invasão da Alerj, o primeiro molotov. Chegamos mais perto de nossos amigos, mas notamos que não havia mais jeito: vimos fogo e ouvimos alguns tiros. Olhei para o meu namorado e entendemos que era para ir embora. Em alguns momentos corremos por vir uma multidão desesperada em nossa direção, mas conseguimos desviar pelas ruas ou acalmar os que passavam. Pegamos o metrô para escapar do problema. Percebemos que saímos na hora certa, pois cerca de cinco minutos depois um menino com ferimentos de bala de borracha entrava carregado na estação. 

Na segunda manifestação, os três dias que a separaram do primeiro manifesto pareciam semanas, meses. A galera era completamente outra. Tínhamos então o nosso núcleo, com dez cabeças, mais ou menos, mas nos sentíamos sós. Transitamos por toda a passeata, por toda a avenida Presidente Vargas, sem realmente achar um ambiente próprio às nossas reivindicações. Alguns grupos mais nacionalistas, ou ufanistas, seja como for, eram compostos de meninos e meninas muito jovens, o que me deixava muito apreensiva. Jovens adolescentes que provavelmente nunca foram em uma passeata e já participavam de uma manifestação de um milhão de pessoas, preenchendo todo o centro do Rio de Janeiro. Estavam muito prosas no começo, mas poderiam facilmente entrar em desespero.

Outro grupo presente era o dos anarquistas, muito preparados ao combate aberto com a polícia, por toda a sua vestimenta e palavras de ordem. Não me senti muito segura ali justamente por serem um grande alvo para ataques repressores. Tinha também muitos carros elétricos, trios elétricos, tentando abafar qualquer grito do povo, para que seus alto-falantes fizessem ouvir o discurso dos respectivos partidos. Ainda havia aqueles que perseguiam pessoas com algum sinal de ter um partido, de ser comunista ou mesmo de ser homossexual. Um amigo meu, com uma camisa do Che Guevara e com um broche da Juventude do PT, foi encurralado por esse grupo quando já havíamos saído, conseguindo escapar com a ajuda de outros.

Com a presença de setores intolerantes na passeata, ficamos receosos com a panela de pressão formada em torno da Prefeitura, em especial porque aquela região não tem muitas vias de escape nem muito acesso a transportes. Quando vimos a segunda bomba de gás lacrimogêneo, e jogada muito próximo de nós, seguimos ao metrô. Foi um sufoco. Muito exprimidos por todo o trajeto e sem muitas saídas caso um grande grupo entrasse em pânico, sempre entoávamos palavras de calma aos jovens que logo saíam correndo assim que ouviam um estouro. Conseguimos pegar a estação de metrô aberta (ela foi bloqueada pouco depois de entrarmos) e seguimos para casa. Chegamos exatamente a poucos minutos de tudo virar um caos, como tinha sido prometido e planejado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, que dispersou toda a multidão. Diversos amigos nossos ficaram presos na faculdade, ameaçados com os boatos de que os policiais estavam parando qualquer transeunte e o prendendo por vandalismo. Felizmente todos chegaram bem em casa, após algumas horas de confinamento madrugada adentro.


“Vi pessoas de todas as idades que tinham em comum uma sensação: a coisa está demais e talvez eu possa contribuir para ela melhorar”

Helena Ribeiro é moradora do Rio de Janeiro, graduada e mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e graduanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá - Unesa. 

Confira o depoimento.

 

Sou heterossexual; branca; ficha limpa; nunca fumei maconha e nunca tomei um porre... E sou manifestante mesmo!

Entrei nas manifestações após o dia 20/06, quando soube que o governo do Rio desrespeitara a Constituição Federal ao reprimir violentamente as manifestacões. Minhas bandeiras são a defesa do Estado democrático de direito e a Constituição Federal. Também fui às ruas pela queda da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37/2011 – que tornava privativa das polícias Federal e Civil a investigação sobre infrações penais, limitando a atuação do Ministério Público, rejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados no dia 25/06 –, pela queda da chamada "cura gay" – o Projeto de Decreto Legislativo 234/2011), o qual alterava resolução do Conselho Federal de Psicologia que veta aos psicólogos participar de terapias voltadas à alteração da identidade sexual do paciente ou que tratem a homossexualidade como doença, retirado da pauta da Câmara dos Deputados no dia 03/07 – e contra a homofobia.

Eu sempre fazia o trajeto programado nas manifestações e, se não houvesse nenhum ato posterior, eu ia embora, para não ficar em pé, parada, esperando “seu lobo” chegar...  Vi pessoas de todas as idades que tinham em comum uma sensação: a coisa está demais e talvez eu possa contribuir para ela melhorar. Pessoas em coro cantando e xingando. Palavrões... como cantavam palavrões... até eu cantei! O que me pareceu um ritual catártico.

Quanto aos ditos "vândalos", não concordo com suas atitudes. Considero que eram um tipo "cobrador" a la Rubem Fonseca ou então era gente infiltrada que queria tirar a legitimidade do ato democrático. De qualquer forma, não os vi nas manifestações.

Se eu tivesse que resumir em uma frase as manifestações, eu diria que vi o povo defender os DIREITOS FUNDAMENTAIS do nosso Estado democrático de direito. Ainda que alguns não conheçam o conceito, era isso que faziam intuitivamente.

De outra parte, vi muitos funcionários públicos, os policiais, "lobotomizados", sem a menor noção de cidadania, respeito, alteridade... homens-máquinas programados para combater pessoas que não ofereciam o menor perigo à ordem.

Lembrando a terceira lei de Newton, podemos dizer que a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade. Nesse sentido, os políticos que nos aguardem, pois a força está apenas começando a se fazer sentir.


“Os partidos, a academia, a polícia e os jornalistas procuravam desesperadamente identificar, e por vezes até direcionar, líderes, objetivos e pautas das manifestações. Falharam em grande medida”

Caio Lobato é morador do Rio de Janeiro – RJ, graduando em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro IFCS- UFRJ e membro do Comitê Editorial da Revista Habitus - revista da Graduação em Ciências Sociais da UFRJ.

Confira o depoimento.

 

Perdido. Sim, perdido, devo confessar, por mais dolorido que o seja – nenhuma outra palavra poderia descrever com melhor exatidão como me encontrava naquele singular dia 10. Era minha primeira participação direta nas múltiplas manifestações que assolaram o Brasil no mês de junho e que persistiram nas semanas seguintes ainda chacoalhando com força algumas cidades. Nem mesmo os mais altos catedráticos ousam afirmar com sua completa segurança e sisudez habitual se os poucos atos que ainda teimam em prosseguir capturando a atenção dos telejornais seriam os comuns e não tão temidos tremores secundários após grandes terremotos ou se são sinais precursores de um abalo sísmico ainda maior que estaria por vir. Mas não nos adiantemos - façamos o que exige qualquer manual voltado a escritores iniciantes, insistindo em relembrá-los do básico: comece pelo início. Às 18h do referido dia, participava eu de mais um encontro editorial da revista da qual faço parte, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), no Largo de São Francisco, centro do Rio de Janeiro. Com a reunião já se alongando insossamente para seu fim, arroguei-me o direito de, entre uma fala e outra, puxar meu celular e teclar rapidamente uma mensagem de texto, enviando-a a dois destinatários: “Como está o ato?”.

Requisitava informações a amigos sobre a passeata que se desenrolava a algumas centenas de metros dali, posicionando-se fisicamente na avenida Presidente Vargas e politicamente contra o aumento de R$ 0,20 das passagens no município do Rio de Janeiro. A manifestação do dia 10 era o seguimento do que ocorrera quatro dias antes, quando, em parte incentivados pelas passeatas em São Paulo convocadas pelo agora já famoso Movimento Passe Livre (MPL), cerca de 100 ativistas se manifestaram pacificamente, no mesmo espaço, no mesmo horário e com a mesma pauta. Como fora informado por conhecidos, não muito diferente de sua inspiração paulista, os cariocas que protestaram no dia 6 foram recepcionados por bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo disparadas pela tropa de choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Como estudante de Ciências Sociais e há anos participante um tanto quanto flâneur de alguns círculos variados de ativismo político no RJ, os relatos me entusiasmaram e aquiesci em participar do próximo a alguns amigos. Era com estes que tentava me comunicar disfarçadamente durante a referida reunião. Duas respostas curtas se sucederam rapidamente: “Pau comendo”; “Black bloc”.

A última me deixou atônito. Diferentemente do agora, em que o “black bloc” estampa capas de revistas de grande circulação e é tema especial de reportagens em canal de notícias nacionais, até aquele momento só era possível observar esta tática de luta anticapitalista a partir de vídeos, textos e artigos sobre manifestações em outros hemisférios, além oceanos, não em nossas praias tupiniquins. Ansioso para ver o que ocorria, dei fim à reunião que já se arrastava e rumei rapidamente à manifestação. Em meus anos de ativismo desde o ensino médio, mesmo não me considerando um militante e nunca tendo me filiado a nenhuma organização, já havia participado de dezenas de passeatas, visitado e participado de ocupações, chegando mesmo a ver a tropa de choque em ação – nada disso havia me preparado para o que testemunharia.

Cruzando as apertadas ruas do Saara, espaço de comércio popular no centro do Rio posicionado entre o já referido IFCS e a avenida Presidente Vargas, deparei-me com uma cena que parecia saída de reportagens de cenários de guerra. Bombas explodiam por todo o lado, jovens ativistas corriam perseguidos por várias motos policiais, nuvens de gás se espalhavam pelo camelódromo. Trabalhadores recém-saídos do trabalho tentavam desesperadamente se abrigar nas lojas, que eram apressadamente fechadas pelos comerciantes, muitos aterrorizados. Controlando a adrenalina, continuei avançando e cheguei à Presidente Vargas. Mais trabalhadores confusos, muita correria, dezenas de homens da PM fechando a avenida, enquanto o barulho das bombas prosseguia.

Subitamente, deparei-me com o que identifiquei como os referidos black bloc passando à minha frente, seguindo no sentido inverso ao pretendido inicialmente pela passeata. Muito diferente dos grupos organizados que veríamos chegar a algumas centenas de ativistas caracteristicamente vestidos de preto nas semanas seguintes em manifestações no Rio, os que passavam por mim naquele instante não contavam mais do que algumas dezenas de pessoas. Em sua maioria abaixo de vinte anos, alguns poucos vestidos com a cor negra, corriam a plena velocidade pelas largas calçadas da Presidente Vargas, acossados e perseguidos por um grupo muito superior de policiais empregando balas de borracha, cassetetes e tasers indiscriminadamente e indiferentes aos transeuntes presos no meio do conflito.

Sem saber o que fazer, desorientado em meio à confusão, liguei para um amigo, que me atendeu prontamente. Encontramo-nos e me espantei que ele, também acostumado a passeatas, estava assustado.  Começou a me explicar que tinha visto a polícia iniciar o confronto, o que foi seguido por manifestantes quebrando vidraças de algumas agências bancárias e de um prédio do Banco Central. Passamos a andar juntos, observando os danos feitos pelos ativistas e a ação de grupos do Batalhão de Choque fazendo varreduras e prisões a esmo pelo agora deserto Saara, que estaria cheio fosse um dia como qualquer outro. Os manifestantes tinham se dispersado, mas os reencontramos seguindo a Presidente Vargas. Umas poucas dezenas se aglomeravam em frente à Delegacia Estadual da Criança e do Adolescente, prestando solidariedade a alguns detidos para ali encaminhados. Este grupo, ao qual nos integramos, multiplicar-se-ia até uma centena de pessoas com a chegada crescente de mais ativistas. Unidos, ainda bloquearíamos por alguns minutos o trânsito de quatro pistas da Presidente Vargas, ato pelo qual seriamos alvo de mais bombas e tiros por parte da tropa de choque antes de encerrar a noite.

Perdido, foi como me encontrei ao fim daquele dia. Estava imerso num misto de surpresa, encantamento, animação e preocupação, sentimentos que ainda se reproduziriam amplamente pelas semanas seguintes pelos múltiplos acontecimentos. Participaria de plenárias envolvendo milhares de participantes de diferentes perfis e ideias em tentativas de deliberar de forma democrática e horizontal, sem representantes, novos atos e os rumos do movimento. Ocorreriam três ocupações - duas em frente à residência do governador e uma, ainda que muito breve, na Câmara dos Vereadores. Presenciaria enfrentamentos com a polícia, alguns alcançando o nível de batalhas campais chegando a envolver blindados, munições de borracha e também letais, bombas, cassetes, escudos e tasers por parte de policiais, e barricadas, estilingues, pedras, fogos de artifício, bombas de tinta, escudos e molotovs por parte dos manifestantes.

Haveria passeatas com centenas de milhares agremiando punks, anarquistas, comunistas, militantes partidários, movimentos sociais, sindicatos, ativistas LGBTT, manifestantes independentes, nacionalistas, internacionalistas, coletivos artísticos, velhos e jovens, direitistas e esquerdistas, os mais diversos grupos e pautas, muitas vezes até mesmo contraditórios entre si. Ficaria sitiado pela polícia junto a uma centena de outros jovens dentro de universidades federais. Observaria destruição por manifestantes de carro de rede de tevê, agências bancárias, ônibus, estabelecimentos comerciais, pontos de ônibus, etc. Testemunharia a polícia atacando pessoas indefesas, praticando prisões arbitrárias, impondo toques de recolher e atacando hospitais. Assombrar-me-ia com milhares de brasileiros, nascidos em nosso querido país do futebol, cantando a plenos pulmões “Não vai ter copa” e indo ao Maracanã aos milhares para protestar em dia de jogo da seleção. Veria um dia de paralisação geral dos sindicatos com uma passeata de dezenas de milhares. Acompanharia durante madrugadas a transmissão ao vivo dos Ninjas e sua nova modalidade de mídia alternativa, cobrindo indubitavelmente melhor (nenhuma outra palavra se aplicaria) do que os maiores canais de televisão. Todos estes fatos integram apenas uma diminuta listagem do que consegui vivenciar, de forma relativamente direta, em minha própria cidade.

Perdidos. Sim, perdidos, assim deveriam se confessar os partidos, os políticos, os analistas na academia, a polícia nas ruas, os governantes em seus palácios e os jornalistas em suas redações frente à onda de manifestações. Procuravam desesperadamente identificar, e por vezes até tentavam apontar e direcionar, líderes, objetivos, grupos, rumos, pautas. Falharam em grande medida. Assim como falharam todos os grupos que observei em primeira mão tentando direcionar univocamente a multidão num sentido desejado, seja em passeatas ou em plenárias. Creio que há uma raiz em comum para os erros de agentes tão diversos: lidar com tal efervescência coletiva tentando explicá-la somente através de concepções e categorias usualmente empregadas para pensar movimentos sociais e manifestações; estas concepções usuais não se aplicam facilmente à nova forma de ebulição social.

Indico aqui apenas algumas das singularidades, incomuns para o contexto brasileiro, que se apresentam: articulação em rede pulverizada, com grande uso da internet como ferramenta de mobilização; profusão das mais inúmeras reinvindicações ao mesmo tempo no mesmo lugar; ações na rua realizadas no âmbito de uma diversidade de táticas incluindo desobediência civil, ação direta e uso de humor e frivolidade na crítica de autoridades; união no mesmo espaço de grupos e pessoas de posicionamentos políticos os mais variados; um desprezo pelas formas tradicionais de política e mobilização, compreendidas aqui como partidos, eleição de representantes e lideranças formais com rituais de investidura. Isso tudo se traduz em formas de organização que tendem a desenvolver características como ênfase na horizontalidade e no caráter assembleístico, divisão em grupos de trabalho e tomadas de decisão por consenso. Afinal, como compreender e desenvolver uma chave de análise capaz de dar conta deste novo que surge de forma multifacetada? Onde estaria o ponto de ligação entre os black blocs, missas de sétimo dia para manequins, a mídia Ninja, os cantos de “acabou o amor, isso aqui vai virar a Turquia”, os palhaços com sua “Tropa de Nhoque”, as palavras de ordem contra Eike Batista, as Marcha das Vadias, a tarifa zero e os enigmáticos manifestantes que apareceram aos milhares pelas ruas trajando ao mesmo tempo a bandeira nacional e a máscara do revolucionário inglês católico Guy Fawkes popularizada pela HQ anarquista V de Vingança?

Por enquanto, só vislumbro uma forma de conciliar estes discursos e práticas fora do comum, que seguem ganhando espaço e se contrapondo à doxa ao encontrar vagas correspondências com as crises acobertadas que vivemos em nosso cotidiano. O tempo deu voltas e 1968 retorna a nos interpelar com sua exigência: “A imaginação ao poder”.  No dia 17 de julho, continuando a onda de protestos do mês anterior, ocorreu no bairro do Leblon, na zona sul do Rio, mais um ato contra o governador Sérgio Cabral. Não diferente de muitos atos nas semanas anteriores, houve enfrentamento entre manifestantes e a polícia e depredação de bancos e lojas comerciais – o que foi ficou largamente conhecido pela profusa disseminação nos jornais do saque ocorrido na loja da Toulon. Em meio às barricadas erguidas durante os interstícios do confronto, dois manifestantes estendiam uma faixa, prontamente fotografada e filmada por vários dos repórteres que ali se encontravam. “A barricada fecha a rua mas abre novos caminhos”. Ali, naquela frase escrita em garranchos de tinta preta em tecido branco, havia mais do que uma simples paráfrase dos grafites que se espalharam por Paris naquele maio de 68. O autor, sabe-se lá se consciente ou inconscientemente, talvez se poste para além de 68. A barricada não abre “o caminho”, como no original francês, mas “caminhos”, no plural, sugerindo o que parece figurar como diversas possibilidades. 

É como se a sociedade, entendida da forma mais ampla possível, não aparecesse aos manifestantes como algo inexorável, transcendente aos cidadãos e dotada da única e melhor forma possível de organização, aquela que só poderia ser modificada por certos meios institucionais já instituídos. Parece que esta massa de pessoas que vai à rua, recusando-se a ser objeto de sentidos e rótulos fáceis, declara categoricamente: a sociedade é fruto de nossas próprias ações e está aberta a grandes intervenções imaginativas. Não à toa, no centro do estopim de todos os acontecimentos estava o Movimento Passe Livre. Esse anti-herói avesso a se posicionar como o líder; contendo em seu núcleo mais ativo jovens, recém-ingressos nos seus vinte anos; operando de forma abertamente apartidária; se organizando internamente com destaque radical à horizontalidade e à autonomia, o que o leva a tomar decisões por consenso dos participantes; e dotado de uma proposta ousada, a tarifa zero, colocada fora dos programas políticos cotidianos e apregoada por políticos dos mais diversos partidos como impossível. Não a esmo decolou: propunha novos métodos e arranjos para se combater velhos problemas e questões, como o transporte público e o desenvolvimento democrático de projetos para a cidade.

Enquanto grandes mudanças mensuráveis não aparecerem como fruto das movimentações, se é que haverá tais mudanças, talvez seja isto que esse movimento – ou estes movimentos, se levarmos a sério sua pluralidade – tem de mais interessante a nos dizer: se trata de um laboratório, de convites para transpor e romper limites, para experimentar outras formas de ação, de organização, de democracia, de política e de sociedade. O Brasil se declara agora no século XXI. Cabe a nós decidirmos como e em que direção isto se desdobrará.

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