Edição 243 | 12 Novembro 2007

“Os quadrinhos criaram a mitologia do século XX”

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IHU Online

Álvaro de Moya concedeu uma entrevista exclusiva à IHU On-Line por telefone na última semana, resgatando os aspectos mais importantes da evolução histórica dos quadrinhos e falando sobre sua experiência de mais de 50 anos nessa área. Confira:

Jornalista, escritor, produtor e diretor de cinema e televisão, Álvaro de Moya nasceu em 1930 e é professor aposentado da Universidade de São Paulo. Autor dos livros História da história em Quadrinhos (2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993) e O mundo de Walt Disney (São Paulo: Geração Editorial, 1996), é chargista, ilustrador e produtor de quadrinhos com temática nacionalista. Para a Editora Abril, desenhou capas das revistas O Pato Donald e Mickey, como "fantasma" (ghost) de Disney. Pioneiro no Brasil no estudo dos quadrinhos, foi um dos organizadores da Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, em 1951, na cidade de São Paulo. Representou o Brasil em congressos e eventos realizados em cidades como Lucca, Roma, Paris, Buenos Aires e Nova York, e chefiou delegações brasileiras em várias cidades do mundo, onde fez conferências. Correspondente da revista Wittyworld, dos Estados Unidos, foi colaborador de enciclopédias editadas na França, Espanha, Itália e Estados Unidos. Escolhido pela Universidade La Sapienza, de Roma, foi o único representante da América Latina em evento realizado na Itália, visando discutir o centenário dos quadrinhos.

IHU On-Line - Quais são os principais passos que constituíram a evolução histórica das histórias em quadrinhos?
Álvaro de Moya -
Antes de existir o que nós consideramos hoje história em quadrinhos, existia uma pré-história em quadrinhos, que seriam as histórias ilustradas. Elas começaram em 1827, com um professor suíço chamado Rudolf Töpffer, que fez as primeiras histórias ilustradas. Goethe , grande escritor e pensador, escreveu a respeito. Ele afirmou que era impossível seguir apenas as ilustrações, que não faria sentido. Também só ler as legendas não fazia sentido. Precisava existir as duas coisas ao mesmo tempo. E considerava as histórias hilariantes. Podemos dizer que Goethe foi o primeiro crítico das histórias em quadrinhos no mundo. Enquanto isso, o Japão, através do artista Katsushita Hokusai, fez algumas histórias ilustradas em rolos, como era costume, e que se chamaram Hokusai Mangá. Foi daí que nasceu a idéia, existente até hoje, de os quadrinhos japoneses se chamarem Mangá. Em seguida, teve o alemão Wilhelm Busch, que criou Max und Moritz, que aqui no Brasil se chamou Juca e Chico, traduzido pelo Olavo Bilac , que reuniu histórias ilustradas que tiveram repercussão no mundo inteiro. Aqui no Brasil, o italiano radicado em São Paulo, Ângelo Agostini, fez as primeiras histórias ilustradas no país, em 1867. Esses foram os principais precursores, além de ingleses e franceses, que publicaram em revistas histórias contadas de maneira ilustrada.

O processo de massificação dos quadrinhos

No entanto, a idéia de massificação dessas histórias ilustradas e da introdução da linguagem que nós conhecemos hoje da história em quadrinhos aconteceu em 1895, nos Estados Unidos, com o desenvolvimento da imprensa americana. Os americanos William Randolph Hearst  e Joseph Pulitzer  disputavam o público da cidade de Nova Iorque com dois jornais populares de grande tiragem. E eles notaram que o público gostava de ilustrações. Então, começaram a publicar suplementos dominicais coloridos. O que se destacou foi um chamado O menino amarelo, de Richard Felton Outcault. Esse é o que nós chamamos do início da linguagem dos quadrinhos e da sua massificação: um personagem como o Menino Amarelo, que aparecia todos os domingos, que era uma constância, usando já a fragmentação da imagem, os balõezinhos, a onomatopéia. Posteriormente, segundo as teorias de comunicação de massa, os quadrinhos constituíram uma linguagem nova, que se assemelhava ao cinema e à literatura, mas tinha, porém, uma expressão própria. Se pegarmos hoje a constância de personagens como Batman, Super-Homem, Mônica, com o mesmo tipo de linguagem, podemos dizer que a linguagem dos quadrinhos e a difusão massiva dos personagens é que caracterizou a transição da história ilustrada para o que nós consideramos hoje os Comics, nos Estados Unidos, ou Fumetti na Itália, ou bande desinée na França, ou o Mangá no Japão.

IHU On-Line – Depois do Menino Amarelo, houve alguma grande evolução nos quadrinhos?
Álvaro de Moya –
Diversas. Teve, por exemplo, o Mutt Jeff, que foi a primeira história em quadrinhos a sair diariamente no jornal, uma tira diária em preto e branco. Depois, houve uma outra grande modificação, na década de 1930, quando descobriram que poderiam publicar história em quadrinhos em revistas e em histórias completas, que seriam os Comics Books e que aqui no Brasil passou a se chamar gibi. Essas histórias completas conseguiram uma grande massificação quando apareceram os super-heróis nos quadrinhos, o que difundiu esse tipo de revista. E, finalmente, a história em quadrinhos começou a ser endeusada pelos europeus, em 1962, com a descoberta de Will Eisner, que criou o Spirit, um trabalho muito avançado, em 1940, considerado o Cidadão Kane dos quadrinhos, porque revolucionou a linguagem. Quando os europeus descobriram a importância de Spirit no pós-guerra e principalmente na década de 1970, o Will Eisner se recusou a voltar a criar o personagem, dizendo que aquilo era algo característico do período. De repente, ele fez uma história chamada A contract with God (Um contrato com Deus), lançado pela editora Brasiliense, aqui no Brasil. Quando ele mandou essa história para o editor, o editor ligou e perguntou “o que é isso?”. E ele imediatamente respondeu, inventando um termo ao telefone: “É uma novela gráfica”. 0 editor lançou esse livro e abriu caminho para uma nova forma de apresentar quadrinhos, ou seja, em forma de livro, de romance, de novela. Hoje em dia, as principais histórias em quadrinhos são novelas gráficas. Outra característica de quadrinhos dessa época é aquela feita pelo desenhista americano Joe Sacco, que faz novelas gráficas sobre a Bósnia, sobre o Oriente Médio, e é patrocinado por bolsas americanas, que possibilitam que ele vá até o local para desenhar. As ilustrações dele são baseadas no que ele vê e em fotografias. E os personagens dele têm tom humorístico. Ele não é um autor maniqueísta, que fala das coisas de um só ponto de vista. Ele entrevista as pessoas de todos os lados e, depois, faz uma espécie de reportagem usando desenhos, de forma criativa, colocando coisas que parecem secundárias em destaque.  
  
IHU On-Line - Como o senhor percebe a evolução dos quadrinhos, já que há pouco mais de 50 anos eles eram vistos com desprezo, principalmente pelos educadores, que diziam que as histórias causavam preguiça mental?
Álvaro de Moya –
Eu vivi exatamente isso. Quando eu era jovem e queria fazer história em quadrinhos, havia uma campanha enorme no Brasil e no mundo contra as histórias em quadrinhos. Eu e um grupo de desenhistas, pela primeira vez no mundo, fizemos uma exposição de quadrinhos no bairro do Bom Retiro, aqui em São Paulo, em 18 de junho de 1951. Hoje, as enciclopédias dos Estados Unidos, da França, Itália, Espanha, citam que o Brasil foi o primeiro país do mundo a fazer uma exposição de história em quadrinhos. As coisas começaram a mudar quando os europeus, principalmente as universidades italianas, os intelectuais franceses, e cineastas de prestígio no cinema, como o francês Alain Resnais  e o cineasta Federico Fellini , começaram a dizer que foram formados lendo história em quadrinhos quando eram crianças. Picasso  também revelou que a única mágoa da vida dele foi nunca ter feito história em quadrinhos.  

IHU On-Line - Como foi, para o senhor, participar da primeira exposição de quadrinhos no País? O que isso significou?
Álvaro de Moya –
Até recentemente eu não tinha entendido ou não sabia da importância que isso teve. Nosso grupo, que tinha feito a exposição, foi vítima de uma perseguição muito grande, embora tivéssemos apoio da imprensa e da mídia. E nós, então, migramos para outros setores. Depois de doze anos, foi realizada a primeira exposição de história em quadrinhos na Europa. Só daí que eu tive a noção de que eu era um dos pioneiros do estudo de histórias em quadrinhos no mundo.

IHU On-Line - Qual foi o período de maior dificuldade e resistência de produção e consumo das histórias em quadrinhos, no Brasil?
Álvaro de Moya –
Foi no momento da Guerra Fria, em que os Estados Unidos entraram em choque com a União Soviética. Então, houve uma histeria anti-comunista nos Estados Unidos. A sociedade americana se voltou contra o cinema, contra escritores, contra músicos, contra grupos de arte. Essa histeria anti-comunista também se estendeu aos quadrinhos. E aqui no Brasil, nesse mesmo período, pais, padres, professores, escola, Igreja, todo mundo era contra a história em quadrinhos. Havia uma campanha muito grande contra a história em quadrinhos não só nos Estados Unidos como no Brasil. Vários profissionais tiveram que se afastar dessa linguagem de quadrinhos porque era um período em que as pessoas não aceitavam a aceitavam e diziam que essa forma de expressão era deletéria, porque fazia com que as crianças ficassem preguiçosas mentalmente.

IHU On-Line – E foi provado o contrário? Qual é a importância das histórias em quadrinhos para a construção do pensamento e para o aprendizado das crianças?
Álvaro de Moya –
Depois que os europeus descobriram os quadrinhos, houve uma inversão total dessa teoria, que não tinha base científica nenhuma. A Unesco encomendou para universidades da França e da Itália uma pesquisa científica sobre os quadrinhos e as crianças. E eles chegaram à conclusão de que era exatamente o contrário daquela campanha contra os quadrinhos. As pesquisas mostraram que qualquer criança, em qualquer lugar do mundo, nasce e sua família fala a língua do local, a criança liga a televisão, o rádio, ouve as músicas, e na escola todos falam a mesma língua. Não obstante, a criança precisa ir à escola para aprender a ler, escrever e falar a sua própria língua. No entanto, se colocarmos uma história em quadrinhos na frente de uma criança antes dela aprender a ler e a escrever, ela imediatamente entende que aqueles quadrinhos narram uma história. Embora ela não saiba o que está escrito nos balõezinhos, ela fica inventando a fala das personagens. Isso prova que a história em quadrinhos tem possibilidades educacionais num período pré-escolar.    

IHU On-Line – E como foi fazer história em quadrinhos, no Brasil, na época da ditadura militar, por exemplo?
Álvaro de Moya –
Nesse período, os quadrinhos já estavam consagrados como forma de expressão. A publicação das histórias em quadrinhos em jornais e revistas continuou nesse período, mas, assim como o cinema, o teatro, a televisão e os outros veículos usaram de metáforas para criticar a ditadura, os quadrinhos também tiveram esse papel. Por exemplo, o Mauricio de Souza  escreveu uma história em quadrinhos do personagem Astronauta, em que ele visitou um planeta onde tinha um jovem músico. E o sistema de domínio daquele planeta proibiu a difusão da música, achando que ela era deletéria para os jovens. Esse músico então ficou proibido de fazer músicas naquele planeta. De repente, houve um concurso musical entre todos os planetas e aquele planeta não tinha ninguém que pudesse representá-lo. Eles reabilitaram então esse jovem, que foi participar do concurso interplanetário de música. Era evidentemente uma história sobre o Chico Buarque de Hollanda. Eram pequenas atitudes que demonstravam resistência contra todo esse período negro que transformou o Brasil numa república ítalo-latino-americana de bananas.  

IHU On-Line - Como o senhor percebe as críticas políticas nos jornais diários, através das charges? Álvaro de Moya – A charge tem uma linguagem completamente diferente dos quadrinhos, mas vamos lá! A charge política hoje em dia, em jornais e revistas, é uma das coisas mais importantes como maneira de ridicularizar essa coisa nojenta que é o uso que os homens fazem da política.

IHU On-Line - Qual é a sua opinião sobre os quadrinhos hoje? 
Álvaro de Moya –
Os quadrinhos criaram a mitologia do século XX. Ou seja, os personagens de quadrinhos atingem uma multidão de pessoas como nenhum outro evento. Não há nada comparado com a história em quadrinhos. Diariamente, há um século, bilhões de pessoas no mundo inteiro lêem histórias em quadrinhos.

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