Edição 241 | 29 Outubro 2007

Pilares da superação: elo, sentido e lei simbólica

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IHU Online

Jacques Lecomte propõe um modelo de resiliência para crianças e jovens, o qual denomina de triângulo da resiliência. Na proposta, Lecomte sugere que os adultos manifestem um elo e estabeleçam regras, permitindo ao jovem “apoiar-se nisso para criar sentido em sua vida”.  Ele defende a idéia de que “não se é resiliente sozinho”, e considera o elo essencial na reconstrução do indivíduo.



Jacques Lecomte é doutor em Psicologia e docente na Universidade Paris 10. É co-autor, com Stefan Vanistendael, do livro Le bonheur est toujours possible, construire la résilience (Bayard: 2000). Também é membro do Comitê científico sobre resiliência.

Confira a seguir a entrevista, concedida por e-mail, à IHU On-Line.

IHU On-Line - Quais são os fundamentos essenciais do processo de resiliência?
Jacques Lecomte -
Para todas as pessoas que sofreram um ou vários traumatismos, dois elementos são essenciais para a reconstrução, que Stefan Vanistendael resumiu com as palavras: o elo e o sentido. O elo como processo interpessoal e o sentido como processo intrapsíquico.

Estes dois elementos são fundamentos essenciais, quer se trate de vítimas de maus tratos, quer se trate de pessoas atingidas por uma doença grave ou por um acidente, vítimas de atentados ou de catástrofes naturais etc. Além disso, quando se trata de crianças e de jovens, eu constatei ser necessário um elemento suplementar, que eu qualifico de lei (no sentido simbólico, de balizas, de quadro educativo estrutural).

Eis, em poucas palavras, o que é preciso entender por estes três termos:

O elo: o apoio humano é essencial na reconstrução. Ele pode provir de membros da família (salvo, evidentemente, quando o traumatismo são os maus tratos pelos pais), de amigos, de profissionais etc. O essencial é que essas pessoas manifestem uma atitude acolhedora, sensível, empática com o indivíduo em sofrimento. Em resumo, “não se é resiliente sozinho”.

O sentido: A busca de sentido é como que sistemática nas pessoas traumatizadas. Elas se esforçam por compreender as causas do que lhes acontece, mas também a maneira de transformar este sofrimento em algo útil, para elas ou para os outros. Por exemplo, muitas vão engajar-se numa associação humanitária sobre o tema que está na origem de seu sofrimento (perda de um filho, doença grave etc.).

A lei simbólica: eu desenvolvi uma pesquisa junto a adultos que tinham sido maltratados em sua infância e que se haviam tornado pais afetuosos com seus próprios filhos. Estes sublinharam a importância do elo e do sentido, mas também das regras de vida, de respeito aos outros etc. A criança e o adolescente em dificuldade necessitam não somente de amor, mas também de um quadro estrutural. Um erro fundamental seria pensar que o fato de tecer elos é incompatível com o de estabelecer regras. Ora, estas duas atitudes são não somente compatíveis, mas, mais ainda, complementares e necessárias.

Eu propus, pois, um modelo simples da resiliência das crianças e dos jovens: o triângulo da resiliência. Quando um ou mais adultos manifestam simultaneamente um elo e estabelecem regras, isso vai permitir ao jovem apoiar-se nisso para criar sentido em sua vida (o sentido, redobrado, sentido de significação e de direção). A responsabilidade dos adultos é a do elo e da lei, a responsabilidade do jovem é a do sentido. Ninguém pode “fazer” sentido em lugar de qualquer outra pessoa.

IHU On-Line - Qual é o papel dos professores como tutores de resiliência? O que significa ser um “tutor de resiliência”?
Jacques Lecomte –
Explico esses papéis nos tópicos abaixo:

Professores

Os professores situam-se particularmente bem para manifestar, ao mesmo tempo, um elo e uma lei junto aos jovens. Muitas histórias de resiliência que me foram contadas começaram precisamente graças a professores. Á luz destes testemunhos, o debate sobre a oposição entre ensinar e educar parece sem fundamento. Um professor é tanto mais eficaz em sua função quando ele sabe ultrapassá-la. Este é o caso ante qualquer aluno, mas é ainda mais evidente ante crianças em sofrimento. O professor não pode contentar-se em ser um simples transmissor de conhecimentos, mesmo junto a crianças saídas da população em geral. Ater-se à estrita função de ensinante contém uma mensagem implícita, percebida pelas crianças e pelos adolescentes, a saber, “a disciplina que eu vos ensino é mais importante que vocês mesmos”.

Pesquisadores perguntaram a estudantes o que eles consideravam serem as características de um bom ensinante. Para eles, um bom professor é, ao mesmo tempo, aquele que sabe ensinar bem (explicar clara e pacientemente, saber suscitar o interesse e a motivação) e aquele que manifesta um conjunto de qualidades humanas que se exprimem pela escuta, a gentileza, a disponibilidade para com os alunos, a compreensão, o humor, a simpatia. Eles apreciam os professores que dão prova de uma exigência bem dosada, mas rejeitam aqueles que dão prova de uma severidade excessiva. Vê-se bem, aqui, a associação do elo e da lei. E, se isso é verdade para estudantes em geral, é ainda mais o caso para crianças traumatizadas.

Tutores de resiliência

No mundo francófono, utiliza-se freqüentemente a expressão “tutores de resiliência” para designar as pessoas que desempenham um papel importante na emergência e no desenvolvimento da resiliência do jovem em sofrimento. Esta metáfora dá muito bem conta de duas características freqüentemente presentes nessas pessoas: elas constituem uma baliza sólida para a criança, deixando-a desenvolver-se à sua maneira. Mas há diversos graus e diversas maneiras de acompanhar um jovem em sofrimento. Poder-se-ia falar de promotor, de facilitador (cujo impacto é menos forte que o do tutor) ou ainda de catalisador, pessoa que facilita um encontro entre uma criança e um tutor.

A modéstia

O tutor de resiliência procura menos provar para si e provar para os outros que ele desempenha um papel importante, do que permitir ao jovem descobrir os seus próprios recursos. Antes de fazê-lo ele próprio, ele

facilita a ação do outro. E, quando ele age, ele o faz geralmente de maneira discreta. O universo da resiliência é, pois, uma grande escola de modéstia: na maior parte do tempo, os tutores de resiliência não sabem que eles o são. Com efeito, há uma grande diferença entre a pessoa que tem o sentimento de ter dado (muito pouco) e o resiliente que tem o sentimento de ter recebido (enormemente). Isso é muito simples de compreender. Uma criança mal amada pode perceber como uma verdadeira iluminação em sua existência o encontro de uma pessoa calorosa, aberta, atenta. Por certo, o tutor de resiliência tem, em geral, consciência que ele fez bem a tal criança, mas o que ele não sabe é até que ponto ele lhe fez bem. Aí reside toda a diferença entre a percepção de um e a do outro.

A emergência e o desenvolvimento da resiliência não se decretam. Eles se produzem muitas vezes à revelia do próprio tutor. A pessoa que se autoproclamasse “tutor de resiliência” correria grande risco de cometer erros ou até mesmo provocar catástrofes.

IHU On-Line - Como se produz o processo de resiliência em projetos sociais, em casas de acolhida de órfãos, por exemplo?
Jacques Lecomte -
Um princípio mais amplo da ação dos trabalhadores sociais é a “boa distância profissional”. A idéia central é que, no decurso da relação entre o profissional e o usuário, devem ser reduzidos e até evacuados os elementos suscetíveis de perturbar o caráter “objetivo” desta relação, em particular os aspectos emocionais e afetivos. É, pois, preciso focalizar-se no caráter técnico da ajuda concedida (conselhos, concessão de uma ajuda financeira, encaminhamento a outro serviço etc.). Isso é considerado vantajoso por diversos motivos: protege o profissional e o usuário de invasões emocionais inoportunas; permite tratar os dossiês de diversas pessoas de um modo que seja sensivelmente reproduzível de uma pessoa a outra. O ideal é que o dossiê de um usuário pudesse ser tratado da mesma forma por toda a assistência social do serviço.

Segundo esta concepção, um bom trabalhador social deve estabelecer uma clara delimitação entre o universo pessoal e o universo profissional. Ora, isso levanta alguns problemas. De uma parte, este tipo de relação é totalmente assimétrico. A distinção pessoal/profissional só funciona em sentido único. Mas interroguemo-nos um pouco: gostaríamos que alguém viesse sistematicamente fuçar em profundidade em nossa vida, por exemplo, num período de crise com nosso “eu” adolescente?

De outra parte, pudemos constatar, ao longo deste livro, em que ponto o elo, ou seja, uma relação afetiva estabelecida entre uma pessoa em sofrimento e uma outra ajudava a primeira a se (re)construir. O inverso também é exato: recusar-se a estabelecer elos de pessoa a pessoa limita as ocasiões de fazer emergir a resiliência. Alexandre Jollien, que passou o essencial de sua juventude num estabelecimento para pessoas com handicap, dá testemunho deste sofrimento: “As relações com o pessoal permaneciam superficiais. Jamais chegamos a discutir de indivíduo a indivíduo; só tínhamos direito a palavras de profissional a ‘criança’, de médico a ‘enfermo’. Aquilo com que mais sofri, conclui ele, é com a distância profissional”.

Ater-se ao estrito registro da tecnicidade profissional sem introduzir um elo de humanidade não é suscetível de fazer emergir a resiliência. Por isso, penso ser preciso associar a boa proximidade humana (para facilitar a resiliência do jovem que se acompanha) e a boa distância profissional (para proteger-se enquanto profissional).

É no caso a caso que é preciso discernir onde se situa a boa atitude, o que, evidentemente, é por vezes algo inseguro para o profissional. Mas, por outro lado, também mais enriquecedor. Por vezes se faz sentir a necessidade de manifestar mais afetividade, por vezes mais reserva, e não há nenhuma regra absoluta. É, em todo o caso, nesta zona, em que se é ao mesmo tempo plenamente profissional e plenamente humano, neste espaço da “comum humanidade” (do profissional e da pessoa acompanhada), que pode emergir a resiliência.

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