Edição 240 | 22 Outubro 2007

Investigações arqueológicas revelam passado indígena

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IHU Online

“Cada expedição arqueológica traz surpresas e nossos trabalhos nunca são definitivos, porque ainda estamos desbravando o imenso território brasileiro”, conta Pedro Ignácio Schmitz, antropólogo e professor da Unisinos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Durante sua trajetória como pesquisador e antropólogo, Schmitz diz que teve uma grande emoção quando descobriu um sítio arqueológico há cinqüenta metros da casa em que nasceu, local onde há 7.000 anos a.C. viviam os índios. “Certamente aí nasceu minha vocação de arqueólogo”, relembra.

Diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos, Schmitz diz que as atuais pesquisas arqueológicas não têm mais um caráter acadêmico, e sim de “salvamento quando se fazem novas barragens, linhas de transmissão, reflorestamento e outras intervenções no solo”.

Pedro Ignácio Schmitz é graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Cristo Rei, em Geografia e História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e em Teologia, pela Pontifícia Faculdade de Filosofia e Teologia de Cristo Rei. Também é doutor em Geografia e História, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Eis a entrevista:

IHU On-Line - Como estão suas atuais pesquisas referentes aos indígenas? De que maneira os novos estudos nos ajudam a rever a imagem do índio que perdurou por muitos anos no imaginário social?
Pedro Ignácio Schmitz -
O avanço das pesquisas se dá principalmente pela ação da equipe interdisciplinar do Instituto Anchietano de Pesquisas e a orientação de dissertações de mestrado e teses de doutorado no PPG de História, abrangendo a formação dos grupos indígenas antes da chegada dos europeus, a ação do colonizador e a política do Estado. Os novos estudos nos apresentam melhor o que era e como vivia a população nativa, como reagia aos mecanismos coloniais e como se afirma hoje na consolidação de sua identidade e na busca de novos espaços.

IHU On-Line - Que dados e objetos encontrados em sítios arqueológicos demonstram o dia-a-dia do índio no Estado e sua relação com a natureza e a vida?
Pedro Ignácio Schmitz -
A pesquisa principal relaciona-se ao estudo das aldeias, nas quais se podem observar a organização das moradias com seus apetrechos e instrumentos, as formas de depositar os mortos, a disposição e qualidade do lixo. Também estudamos suas excursões para caçar, pescar e coletar produtos naturais. Cada um dos grupos nativos tem sua forma tradicional de fazer estas coisas, o que chamamos sua “cultura”. Os antepassados dos Kaingang viviam em casas com os pisos profundamente rebaixados, nos pinheirais do planalto, nos quais conseguiam a maior parte de sua subsistência. Os antepassados dos Guaranis viviam em aldeias de casas de palha nas matas virgens plantando seus alimentos, à semelhança do que fizeram posteriormente os imigrantes alemães; as pinturas com que suas mulheres decoravam as panelas mostram grande habilidade e gosto. Por sua vez, os Charruas e Minuanos viviam em tendas móveis, caçando nos campos, pescando nas grandes lagoas e colhendo os frutos das palmeiras butiá e jerivá.

IHU On-Line - Como estão suas pesquisas no município de Taió, em Santa Catarina? Quais são as principais evoluções desde 1985?
Pedro Ignácio Schmitz -
O projeto Taió, junto às nascentes do rio Itajaí, em Santa Catarina, é o projeto-pai de nossas pesquisas na Unisinos. Paralelamente ainda existem, no Planalto Meridional, os projetos São Marcos, perto de Caxias, e São José do Cerrito, perto de Lajes, estudando também “casas subterrâneas”, e Arroio do Sal, estudando sambaquis. Em Taió escavamos “casas subterrâneas” e sítios de acampamentos de caçadores. As casas subterrâneas estão datadas do século VIII ao século XIII de nossa era; podem ser dos antepassados dos índios Botocudos (hoje chamados Xokleng), que ofereceram grande resistência à fundação e expansão da colônia Blumenau. Os acampamentos dos caçadores começaram 7.000 anos a.C. e continuaram ao menos até o século XIII. Uma de nossas perguntas é se também estes acampamentos estão ligados à formação dos Xokleng. Desde 1985, os grupos que viviam em “casas subterrâneas”, antepassados dos índios Kaingang e Xokleng, são muito mais conhecidos, o que não quer dizer que não haja o que fazer para uma próxima geração de arqueólogos.

IHU On-Line - Em sua trajetória de pesquisas sobre os índios, que informações o senhor já encontrou que mais lhe surpreenderam?
Pedro Ignácio Schmitz -
Cada expedição arqueológica traz surpresas e nossos trabalhos nunca são definitivos, porque ainda estamos desbravando o imenso território brasileiro. Às vezes, as coisas estão debaixo de nossos próprios pés e não as vemos. Uma de minhas maiores surpresas aconteceu quando um colaborador meu, na década de 1960, encontrou um sítio arqueológico numa pequena gruta que ficava cinqüenta metros atrás da casa em que eu nasci. Neste pequeno abrigo eu brinquei muito. Em 1970, escavei o sítio, mas só recentemente mandei datar e este ano (2007) publiquei. Pois é, os índios moravam aí 7.000 anos a.C. Certamente aí nasceu minha vocação de arqueólogo.

IHU On-Line - Como o senhor percebe os estudos arqueológicos no Estado? De que maneira as pesquisas arqueológicas contribuem para esclarecer a historicidade dos indígenas?
Pedro Ignácio Schmitz –
Hoje, a maior parte das pesquisas arqueológicas no Estado não mais tem caráter acadêmico, mas de salvamento quando se fazem novas barragens, linhas de transmissão, duplicação de estradas, reflorestamento e outras intervenções no solo. Muitas vezes, também estes trabalhos terminam como dissertações ou teses acadêmicas. Com isto, o conhecimento não se interrompe, embora ele não esteja mais tão claramente restrito ao Estado; hoje o arqueólogo trabalha em âmbito nacional, lá onde aparecer “serviço”.

IHU On-Line - Que relação é possível traçar entre brancos e índios? Como os brancos visualizavam os indígenas quando chegaram ao Estado?
Pedro Ignácio Schmitz -
O colonizador que chegou considerava os índios selvagens, “sem lei, sem rei, sem religião”. A ação correspondente podia ser a matança, a escravidão, ou a conversão e civilização. Se ele se opunha ou incomodava, era a guerra. Alguns grupos mais desenvolvidos podiam ser transformados em mão-de-obra, como escravos, na economia colonial falta de braços. A missão, ou a catequese, na qual se buscava formar a personalidade do indígena dando-lhe uma feição européia, era uma das propostas mais comuns. Com o sucessivo avanço dos colonizadores, os nativos que sobreviveram às ações iniciais, às epidemias e à pobreza, foram confinados em “reservas”, liberando o terreno para os “brancos”, especialmente para os imigrantes europeus. Nestas reservas, tanto as subordinadas ao Estado quanto as do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a orientação era deixá-los evoluir por sua conta e risco, sem maiores intervenções da administração. Mas como as reservas, no Rio Grande do Sul, estavam no mesmo espaço em que se criaram novas colônias para os descendentes de imigrantes alemães, italianos e poloneses e para o escoamento de sua produção foram abertas estradas de rodagem e de ferro, a pressão sobre as “reservas” se fez cada vez mais forte, sufocando seus moradores.

IHU On-Line - Que mudanças ocorreram com o tempo? O homem branco mudou sua percepção perante o índio?
Pedro Ignácio Schmitz -
Nas últimas décadas, desenvolveu-se forte conscientização das populações indígenas, resultado de ações de antropólogos, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), de igrejas pentecostais e de ONGs, que redundaram em maior afirmação de sua identidade como índios específicos (Kaingang, Xokleng, Mbyá, Kaiowá). Esta afirmação vem acompanhada de considerável aumento demográfico, insistência na demarcação das terras das reservas, reivindicação de novos espaços no campo, criação de associações civis para representá-los perante órgãos do governo e ONGs, estabelecimento de núcleos indígenas urbanos, escolarização generalizada, bilíngüe ou em escolas públicas e o aproveitamento de cotas nas universidades para a formação de profissionais de todas as categorias: não só professores, mas também enfermeiros, advogados, técnicos agrícolas, médicos, para atender inicialmente às próprias comunidades, depois também para ocupar cargos na sociedade nacional e participação na política regional. Para isso, o discurso das lideranças é extremamente forte, sempre firmado na Constituição brasileira. Esta mudança é especialmente marcada entre os índios Kaingang. Os índios Mbyá (Guarani) usam outras estratégias, igualmente eficientes.

IHU On-Line - Quais lugares do Estado eram predominantemente indígenas e como a presença do índio foi se modificando ao longo dos anos? Qual é a importância deles para a construção da etnicidade do Rio Grande do Sul?
Pedro Ignácio Schmitz -
Todo o planalto meridional era ocupado nos últimos dois milênios pelos Kaingang e seus antepassados. Como eles eram relativamente poucos e não eram agricultores nem estáveis nos seus estabelecimentos, não foram atingidos pelas missões, nem pela escravização paulista. Eles entraram na história quando, no século XIX, se precisou de seus territórios para a instalação dos imigrantes e para expansão das fazendas, ocasião em que foram confinados em reservas. Hoje, eles são mais de 20.000 indivíduos, muito ativos, cuidando de seus próprios interesses.

Os vales dos grandes rios e as encostas do Planalto Meridional, cobertos por densas florestas, foram colonizados, desde alguns séculos depois de Cristo, pelos Guaranis, que formavam uma população agrícola grande e densa. No século XVII, eles foram ou missionados pelos jesuítas, ou colocados a serviço dos colonos espanhóis, ou escravizados pelos paulistas. Com a decadência das missões, eles se dispersaram e praticamente desapareceram. Entretanto, sua trajetória forma importante capítulo da História do Rio Grande do Sul. Hoje, temos novamente numerosos pequenos núcleos de guaranis (Mbyá), que vêm da Argentina e do Paraguai e migram ao longo do Oceano em busca da “terra-sem-males”.

Os Charruas e os Minuanos, que antigamente viviam nos campos do Sul do Estado, no Uruguai e parte da Argentina, foram praticamente exterminados em 1838 quando sua presença no Uruguai se tornou inoportuna. Seu sangue está muito presente na população do país vizinho.

IHU On-Line - A religião católica é constituída pela Trindade. A crença dos indígenas é diferente. Como o senhor avalia a teologia indígena?
Pedro Ignácio Schmitz -
Cada grupo indígena tem seus mitos, nos quais são apresentadas as divindades, sua origem, atuação e a relação com os humanos; os mitos também sinalizam o comportamento de seus seguidores. Os Mbyá, que atualmente migram no Estado, são extraordinariamente religiosos, tendo um templo em cada aldeia, no qual rezam muitas horas, todas as noites, com a participação de todos os membros do povoado. Nos antigos poemas, transmitidos por tradição oral, apresentam sua crença, que é parecida com a do cristianismo, mas nada tem a ver ele diretamente. “No começo, era a Palavra. Foi a Palavra que deu origem a tudo o que existe. Quando uma criança nasce é uma Palavra que assenta.” Como todo indivíduo, inclusive a criança pequena, é uma centelha divina, a liberdade é a característica da educação e da vida desses Mbyá.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a trajetória do Instituto Anchietano de Pesquisas? Qual o espaço que o Instituto oferece atualmente, para os estudos arqueológicos?
Pedro Ignácio Schmitz -
O Instituto Anchietano de Pesquisas foi criado em 1956 como um centro de pesquisa de jesuítas. No começo, ele abrangia muitos setores de conhecimento, que foram sendo reduzidos com o decréscimo do número de jesuítas. Hoje, ele se dedica à pesquisa botânica, aos estudos arqueológicos e à divulgação científica e cultural. A equipe de arqueologia é sólida e ativa, publicando sistematicamente seus resultados, iniciando alunos de graduação na pesquisa e orientando dissertações de mestrado e teses de doutorado. Desde 1965, a equipe vem executando grandes programas: primeiro, ela desbravou o Rio Grande do Sul, depois, os cerrados do Brasil Central e o Pantanal do Mato Grosso do Sul. A partir de 1984, na continuação da obra do Padre João Alfredo Rohr , S.J., ela se dedica ao litoral meridional e, nos últimos anos, retomou as pesquisas no planalto do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. A pesquisa em áreas geográficas diferentes, com populações indígenas de origem e história variadas, lhe permite uma visão ampla dos fenômenos culturais das populações indígenas do Brasil. 

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