Edição 240 | 22 Outubro 2007

Uma crítica ao idealismo em favor de uma certa autonomia da política

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“A tese de Hans Küng é, e é aqui reside a sua originalidade, de que é preciso que se reconheça uma certa autonomia ao fator político, que não pode estar inteiramente submetido nem à lógica científica e às leis econômicas nem também às normas jurídicas e aos ideais morais, como muitos gostariam. O certo é que entre política e ética existe uma tensão inevitável, que precisa ser sustentada e não resolvida. De todas maneiras, exige-se um novo paradigma humano da política, determinado pela ética, proporá ele”, escreve o filósofo argentino Alfredo Culleton, em artigo inédito, escrito com exclusividade para a IHU On-Line. Confira a seguir a íntegra do material. Os subtítulos são nossos.

Culleton é graduado em Filosofia, pela Universidade Regional no Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, leciona nos cursos de Graduação e Mestrado em Filosofia na Unisinos. Confira a entrevista concedida pelo filósofo à IHU On-Line edição 160, de 17-10-2005, junto com o historiador Nilton Mullet Pereira, intitulada “Em nome de Deus: um retrato de época”, comentando aspectos do filme apresentado no Ciclo de Estudos Idade Média e Cinema, promovido pelo IHU. Outra entrevista com Culleton pode ser conferida sob o título “A interculturalidade medieval”, na edição 198, de 02-10-2006. Sua contribuição mais recente à nossa publicação aconteceu na edição 232, de 20-07-2007, quando junto com o jurista Vicente Barreto falou sobre “Ética mundial e Direito: uma contribuição de Hans Küng”.

Há um clamor por um novo paradigma político quando os Estados Unidos entram na Europa nos anos de 1917-1918. Hans Küng coloca Woodrow Wilson  como proponente de uma nova ordem mundial que ele vai chamar de idealista, confrontado ao velho realismo identificado com a figura de Kissinger.

Wilson (1856-1924), acadêmico da Universidade de Princeton, presidente democrata, propõe, em 1918, os famosos quatorze pontos: o programa de paz americano, programa este baseado em três princípios:

a) liberdade para todos os povos; b) justiça para amigos e inimigos; c) garantia de paz através de uma liga das nações. Isto é interpretado como um conflito entre duas concepções diferentes de diplomacia:

1 - A antiga política européia de uma paz imposta (realista), e 2 - A nova proposta americana de uma paz justa (idealista).

O problema deste idealismo é que acabou gerando uma mentalidade missionária e com pretensões universalistas, e terminou elevando a guerra à condição de uma “cruzada pela democracia”, de motivação moral. Küng remete a um  teólogo dos anos trinta chamado Reinhold Niebuhr , que no livro Homem moral e política imoral  faz uma crítica ao idealismo por este correr o risco de se tornar: 

a) Hipócrita porque supõe como evidente que só a própria política e só as próprias instituições seguem princípios morais, sendo que todas as metas egoístas são camufladas por meio de discursos morais.

b) Ilusórias, por ser impossíveis de serem realizáveis como a de ser modelo para toda a terra, ou lemas como América contra o reino do mal de Ronald Reagan , que levam a desilusões e ao cinismo.

c) Ineficaz, porque toda política exige forças e sanções objetivas.

Wilson, efetivamente, não consegue impor-se na aspiração de uma nova ordem mundial construída menos sobre o poder do que sobre a justiça. Os realistas farão uma crítica radical à hipótese de “uma harmonia natural dos interesses, que poderia ser mantida com um pouco de boa vontade e sabia compreensão humana”.

Hans Küng dedica um longo segundo sub-capítulo à teoria política de Morgenthau, considerado um realista que entende, sobretudo, que a política é gerenciamento de poder. Os seus intérpretes se esforçarão por entender isto como oposto à moral, mas Küng busca entender diferentemente. Na realidade, Küng critica ambos os modelos e busca oferecer uma visão alternativa da relação entre poder e moral partindo de uma concepção antropológica que tem dois pontos fundantes: a) O homem, como ser ambivalente, e o poder, e b) a inevitável tensão entre política e ética.

a) O homem como ser político é um conceito que recebemos desde Aristóteles , mas que esse homem essencialmente aspira ao poder é um elemento novo introduzido por Nietzsche . A partir disto, não podemos considerar nem o poder nem o homem como essencialmente bons e benéficos nem maus e demoníacos, mas o homem como ser complexo e ambivalente, entre a razão e a loucura.

Os homens, se fossem demônios, diz ele, nenhum governo seria possível; se fossem anjos, nenhum governo seria necessário. O que é poder, pergunta ele, respondendo que “poder, de maneira geral, é a autorização, a possibilidade ou a liberdade de determinar sobre outras coisas, homens ou relações”.

Max Weber  que define o poder de maneira um pouco mais crua dizendo que é “toda chance de, dentro de uma relação social, impor a própria vontade mesmo contra a resistência de outros, não importando em que esta chance se baseia”; portanto, diz ele, “toda qualidade que se possa imaginar e toda constelação imaginável pode colocar alguém na condição de impor sua vontade numa dada situação”.

Poder a favor da vida

Por isso, todo homem tem algum tipo de poder pelo fato de ser portador de alguma qualidade. Disto se segue que o poder pode ser sempre bem empregado no sentido de ser a favor da vida humana ou mal empregado, utilizando-o de maneira desumana. De aqui se desprende que desde  sempre foram imensos os esforços da humanidade para impor limites ao abuso do poder, sobretudo dos detentores do poder político.

Hans Küng relaciona uma lista de seis importantes conquistas/invenções, européias da humanidade contra o abuso do poder político:

1 – A domesticação do poder através da constituição e das leis;
2 – Participação no poder pela divisão dos poderes que se controlam mutuamente;
3 – Limitação do poder através de direitos fundamentais intocáveis. (lei natural até direitos humanos e leis pétreas da constituição);
4 – Moderação do poder pelo princípio da correspondência. (proibição de excesso na punição ou retaliação) (principio da proporcionalidade);
5 – Participação no poder dos súditos do poder;
6 – Equilíbrio do poder através da diminuição do gradiente de poder.  (buscar um equilíbrio entre grupos econômicos e sociais).

b) A inevitável tensão entre política e ética

Dirá Hans Küng que a posição realista possui sua verdade, que não deve ser menosprezada: seria ilusão, diz ele, fazer política com ideais abstratos, falsas esperanças e desejos utópicos. A realidade da política, mesmo que não deva ser equiparada à racionalidade, tem como tal que ser levada a sério e as ideologias que encobrem as relações de poder devem ser desmascaradas pela crítica da ideologia.

Entende que a própria política não é ciência, mas uma arte, a arte de em cada nova situação reconhecer a tempo e intuitivamente qual é o caminho certo. Esta afirmação merece um tratamento especial dado que acredito esteja querendo reforçar uma certa autonomia da política respeito da ética, da teologia e da ciência.

A tese do Hans Küng é, e aqui reside a sua originalidade, de que é preciso que se reconheça uma certa autonomia ao fator político, que não pode estar inteiramente submetido nem à lógica científica e às leis econômicas nem também às normas jurídicas e aos ideais morais, como muitos gostariam. O certo é que entre política e ética existe uma tensão inevitável, que precisa ser sustentada e não resolvida. De todas maneiras, exige-se um novo paradigma humano da política, determinado pela ética, proporá ele.

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