Edição 240 | 22 Outubro 2007

A dignidade humana em primeiro plano, a base da moral do Weltethos

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IHU Online

“No Ethos Mundial – tanto no que se refere aos direitos humanos como também aos deveres humanos – a dignidade humana está em primeiro plano; ela é a base da moral”, explica seu autor, o renomado teólogo alemão Hans Küng, que nesta segunda-feira, 22 de outubro, está na Unisinos proferindo a conferência "As religiões mundiais e a Ética Global". Na tarde deste mesmo dia, ele estará reunido com um grupo de professores e professoras de teologia da região sul do Brasil, na sede do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Segundo Küng, o projeto da ética global “não é uma teoria ou ideologia, mas uma práxis, no sentido de possibilitar a prática convivência das pessoas humanas na família, na escola, na comunidade, numa cidade, numa nação e também na comunidade das nações”. Confira a íntegra da entrevista exclusiva que Küng nos concedeu por e-mail, na última semana, adiantando alguns dos aspectos que irá discutir em sua vinda ao Brasil. Conheça mais detalhes sobre o pensamento künguiano no Fórum On-Line disponível no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu.



Teólogo católico, Küng vive desde 1967 em Tübingen, onde leciona na Universidade. Por suas posições firmes diante de Roma, sofreu duras represálias, que em 1979 culminaram na cassação de sua autorização canônica para lecionar Teologia em instituição superior católica. Küng tinha tamanho prestígio intelectual na época que a Universidade, para que o professor e sua equipe de pesquisadores pudessem continuar atuando, criou o Instituto de Pesquisas Ecumênicas, como unidade autônoma em relação à Faculdade de Teologia Católica. Em 1990, ao encerrar sua carreira na Universidade, Hans Küng lançou o Projeto de Ética Mundial. Recentemente, em setembro de 2005, o papa Bento XVI surpreendeu a opinião pública mundial ao receber Küng para uma longa conversa amigável, na residência de Castel Gandolfo. 

Também no Brasil a obra de Küng,  Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana (São Paulo: Paulinas, 1992) foi marco fundador de uma discussão que, pela premência dos fatos, frutificou rapidamente e continua a angariar apoio. Seguiu-lhe a publicação de Uma ética global para a política e a economia mundiais (Petrópolis: Vozes, 1999).  A obra mais recente de Hans Küng, traduzida para o português é O princípio de todas as coisas. Ciências Naturais e Religião (Petrópolis:Vozes, 2007). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se situa o Projeto da Ética Mundial ante a discussão entre o absolutismo da verdade e o relativismo?
Hans Küng -
O Projeto de uma Ética Mundial (Weltethos) não toma posição em abstrato ante tais questões teóricas. No Projeto de uma Ética Mundial, não se trata de uma teoria ou ideologia, porém de uma práxis, no sentido de possibilitar a prática convivência dos homens na família, na escola, na comunidade, numa cidade, numa nação e também na comunidade das nações. Não se trata, portanto, da questão da verdade em si, porém de padrões, valores e posturas éticas bem concretas e elementares, que podem e devem ser expressas por todos os humanos da mais diversificada orientação espiritual e da mais diversificada religião e filosofia. 

IHU On-Line - Portanto, nenhuma “ditadura do relativismo”?
Hans Küng -
Não, já é bem claro que o Projeto de Ética Mundial não cultua um relativismo absoluto, no qual “anything goes”. Também é um fato de que a imensa maioria dos humanos não está disposta a aceitar, sem mais, por exemplo, o assassinato de inocentes, o abuso de crianças e de mulheres ou a mentira de governantes. Neste sentido, há realmente normas constantes. Mas estas normas devem sempre ser realizadas numa situação concreta e essas situações podem ser muito diversas. E, quando o papa se queixa com razão de uma “ditadura do relativismo”, deve-se, de outra parte, acentuar que outras tantas pessoas lastimam uma ditadura do absolutismo: que alguém quer saber, sozinho no mundo, o que é “a verdade”, por exemplo, em questões de regulação de nascimentos, aborto, tecnologia genética, ajuda a moribundos e assim por diante. Nós não necessitamos nem de uma ditadura do relativismo, nem de uma ditadura do absolutismo.

IHU On-Line - Quais são as maiores dificuldades para que as quatro diretrizes do Projeto  se insiram no modelo da hodierna sociedade ocidental?
Hans Küng -
Trata-se, de um lado, dos libertinos que não aceitam nenhuma norma moral para si, que utilizam qualquer próximo apenas como meio para um fim e, quando vem ao caso, dele abusam irrefreadamente. Há governantes que com mentiras conduzem povos inteiros à guerra, ou Chief Executive Officers (CEO’s), que, com seus balancetes falsificados, enganam milhões ou bilhões de pessoas. Os grandes escândalos que vivenciamos na política, na economia e mesmo na ciência impeliram muitas pessoas à constatação de que nem tudo pode ser permitido, mas que as antiqüíssimas normas como “não matar”, “não furtar”, “não levantar falso testemunho”, “não abusar da sexualidade” valem para as pessoas de todas as culturas e de todas as camadas sociais.

IHU On-Line – Então, é só o libertinismo que prejudica a recepção do Ethos mundial?
Hans Küng -
Não, também a prejudica um rigorismo que identifica imediatamente qualquer norma moral com exigências rigorosas bem concretas, como as da doutrina moral católico-romana tradicionalista. Muitas pessoas rejeitam a autoridade moral da Igreja católica porque dela se abusou demasiadamente para todas as possíveis prescrições concretas, tanto na moral sexual como também na disciplina eclesiástica.

IHU On-Line - É possível uma Ética Mundial, mesmo “minimalista”, sem que se pressuponha um núcleo de ordem natural, como o direito natural ou a teologia natural?
Hans Küng -
O Projeto de uma Ética Mundial atua mais empiricamente, enquanto se questiona as tradições religiosas e filosóficas da humanidade sobre esses critérios básicos e se vê que felizmente eles são confirmados por toda parte. O tradicional direito natural é pouco apropriado para isso: é verdade que ele tem atrás de si uma grande tradição greco-escolástica, mas padece há tempo sob dois percalços:

1. Ele é encarado de maneira demasiado estática e não faz jus ao constante desenvolvimento ulterior, também da moral.

2. Abusou-se dele com freqüência, para, por exemplo, em questões da moral social e sexual, fixar determinadas normas que se desenvolveram historicamente como sendo de direito natural. Acima de tudo, foi prejudicial que se tenha estigmatizado como imoral qualquer meio anticoncepcional, porque seria “contra naturam”. Uma ética contemporânea quase não fala da natureza, porém da pessoa ou do indivíduo humano. Por isso, no Ethos mundial – tanto no que se refere aos direitos humanos como também aos deveres humanos – a dignidade humana está em primeiro plano; ela é a base da moral.

IHU On-Line - Que sentido podem manter essas quatro diretrizes, se delas for tirada a fundamentação cultural e/ou religiosa?
Hans Küng -
Como são fundamentadas as normas elementares da humanidade é uma questão secundária. Elas podem ser fundamentadas por uma religião ou por determinada filosofia ou também de maneira pragmático-humanista. Para poder conviver de maneira prática, é preciso unificar-se em relação às próprias normas, porém não em relação à sua fundamentação.

IHU On-Line - Como dialogam o Projeto da Ética Mundial e a democracia?
Hans Küng -
O Projeto da Ética Mundial já pressupõe todas as diferenças que de fato existem na sociedade mundial em perspectiva múltipla. Seria ilusório pensar que poderíamos eliminá-las todas. Antes, é mais importante que pessoas e grupos humanos, que nações e também toda a sociedade humana possam conviver pacificamente, embora os indivíduos e grupos se diferenciem uns dos outros por múltiplas diferenças. Um ordenamento democrático deve, para poder funcionar, pressupor valores éticos básicos que ele próprio não pode criar.

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