Edição 239 | 08 Outubro 2007

Por um socialismo baseado em critérios políticos e éticos

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IHU Online

Para o professor Peter McLaren, os ensinamentos de Che Guevara “têm bastante a oferecer a educadores” de todo o mundo. Seguidor de Paulo Freire, McLaren diz que as teorias do educador brasileiro e de Che podem desempenhar um papel vital, transformando “as escolas em espaços para a justiça social e a prática socialista revolucionária”. Ele fez essa e outras declarações em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

McLaren é estudioso de Pedagogia Crítica e leciona na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Graduado na Universidade de Waterloo em Literatura Inglesa, fez faculdade de Educação na Universidade de Toronto. É Ph.D. em Teoria Educacional pelo Ontário Institute for Studies in Education (OISE). Escreveu inúmeros livros, dentre os quais citamos A pedagogia da utopia (Santa Cruz do Sul: Universidade de Santa Cruz do Sul, 2001) e Pedagogia revolucionária na globalização (Rio de Janeiro: DPA, 2002). Para maiores informações, acesse o site http://www.gseis.ucla.edu/faculty/pages/mclaren/. Confira a entrevista que ele concedeu com exclusividade para a IHU On-Line número 223, de 11 de junho de 2007,  intitulada “Paulo Freire é o mais importante educador crítico lido nos EUA”.  

IHU On-Line - Como Che é lembrado nos Estados Unidos? Por que na América do Norte a idolatria por ele é bem menor do que nos países do Sul?
Peter McLaren -
Para aqueles da esquerda revolucionária, o espírito de Che vive e nos convida a acalmar o turbilhão que nos envolve e fixar nosso olhar em direção ao futuro. A figura de Che Guevara atinge, ao mesmo tempo, o coração e a mente. Aqueles desejosos em responder este chamado são compreensivelmente poucos na América do Norte em comparação com os países da América do Sul. Nós, do Norte, existimos em um estado de esquecimento, de autoproteção em relação às condições nos países “subdesenvolvidos” do Sul. Nós vivemos em um estado de “amnésia social” sobre como o imperialismo norte-americano roubou as vidas de cidadãos do Sul através da CIA roubando em suas eleições, pelos militares norte-americanos treinando esquadrões da morte no Sul, pelos programas de ajustes estruturais pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo Banco Mundial, pelas políticas comerciais protecionistas dos Estados Unidos, pelo poder militar-corporativo explorando os recursos naturais e a força de trabalho dos pobres. A globalização do capitalismo através das políticas econômicas neoliberais localizou/colocou o volume da nossa classe operária em países de Terceiro Mundo, nos quais a exploração violenta/descabida ocorre longe dos norte-americanos.

Resquícios de Che na América

Hoje, é o setor informal que mantém a América Latina longe de afundar em um abismo mais profundo de pobreza criado pelos políticos do neoliberalismo. Terras estão sendo devastadas por operações de mineração internacionais, a água e as florestas estão sendo destruídas por desmatamento e lixo tóxico, o ar está saturado com chumbo e partículas em suspensão, e os sistemas de saúde, educação, habitação, saneamento estão em ruínas. As condições que levaram Che Cuevara a pegar em armas ainda estão lá; elas, na verdade, pioraram.

Mas mesmo aqueles do Norte que conhecem as condições no assim chamado Terceiro Mundo freqüentemente sentem-se impotentes para ajudar.

Movimentos sociais nos Estados Unidos precisam se manter firmes, continuar a expandir e aprofundar a sua agenda anticapitalismo e anti-racismo, e educadores precisam fazer um grande caso para o antiimperialismo, para uma alternativa socialista ao capitalismo. A luta pelo socialismo deveria ser a peça central de cada luta revolucionária para derrotar o imperialismo, o racismo, o patriarcado e o colonialismo do poder, como meu trabalho na Venezuela com os chavistas continua a me ensinar. Quem vive nos Estados Unidos, a “barriga” da besta, tem especial responsabilidade para instigar uma revolução socialista aqui mesmo no centro do imperialismo.

IHU On-Line - No seu livro Guevara, Freire e a Pedagogia da Revolução, que relações o senhor apresenta entre Che Guevara e Paulo Freire?
Peter McLaren -
O Che é mencionado em alguns dos escritos de Freire , mas eles não se conheciam pessoalmente. Ambos eram do Sul, e ambos eram revolucionários. Freire não era um guerrilheiro, mas respeitou a trajetória política de Che, sua vida e trabalho. Freire, claro, tinha um projeto pedagógico sistemático, desenvolvido durante toda sua vida. A pedagogia de Che não foi codificada ou filosófica ou teoricamente desenvolvida, mas estava muito presente em sua luta pelo socialismo e pelo humanismo socialista.

IHU On-Line - Como o pensamento e as ações de Che Guevara influenciaram o senhor na elaboração da pedagogia revolucionaria?
Peter McLaren -
Nos países do Norte, a pedagogia crítica tornou-se, nos últimos anos, tão completamente psicologizada, tão liberalmente humanizada, tão tecnologizada, e tão pós-modernizada conceitualmente, que seu atual relacionamento com lutas maiores de libertação parece extremamente atenuado, se não fatalmente acabado. O campo da educação é oprimido por múltiplos, competitivos e altamente sutis discursos acadêmicos. É fácil sentir-se frustrado tentando encontrar um chão seguro sobre o qual agir. Isso tem sido largamente o resultado de duas condições: o desaparecimento da luta de classes nos países do Norte, e o interesse em “políticas identitárias”, que desconecta justiça racial e de gênero da luta contra o capitalismo.

Aqueles de nós que escrevem sobre classes sociais e sistemas mundiais, hoje, estão condenados dentro dos EUA como perpetradores de “violência epistemológica”, que quer trazer “fechamento” ao sentido. Discussões de relações e formações políticas e ideológicas estão sendo aderidas por muitos educadores esquerdistas norte-americanos como se essas arenas de poder social existissem isoladas de forma antisséptica da luta antiimperialista. Aqueles que entendem que a luta antiimperialista e socialista deve ser empreendida ferozmente para a derrota das depredações do capitalismo têm especial admiração por Che Guevara. A vida de Che e seus ensinamentos têm bastante a oferecer a educadores por todo o mundo. Os acadêmicos burgueses que investem em proteger sua própria posição de classe estão interessados em Che apenas até onde sua imagem icônica pode ser desconstruída. Eles são obcecados com sua estatura icônica como um ídolo de filme de matinê que enfeita camisetas e pôsters. Freire reconheceu que uma teoria social identificada como “pós-moderna” corre o sério risco de ignorar a sujeição comum ao capitalismo que as pessoas estão enfrentando ao redor do mundo.

Che X Freire

Em meu livro sobre Freire e Che , eu tematizei que, no acordar para a morte da União Soviética, em face da reestruturação da acumulação global e transnacionalização de facções da elite econômica, e no meio do atual entrincheiramento da cultura/ideologia do consumismo e do individualismo, as idéias e o exemplo de Che Guevara e Paulo Freire podem desempenhar um papel vital em ajudar educadores a transformar as escolas em espaços para a justiça social e prática socialista revolucionária, particularmente aqueles educadores que trabalham em instituições de formação/capacitação de professores. Freire pode ensinar-nos sobre saber como sabemos, e saber como saber (know how). Freire admirava Che Guevara, mas o trabalho de Freire é sobre criar consciência revolucionária através da educação, formal e informal. Che acreditava que a luta armada era inevitável e estava preocupado em criar consciência revolucionária fazendo a revolução, a qual incluía resistência armada tanto quanto desenvolvimento humano através da filosofia da prática socialista, ou seja, através de autodesenvolvimento e autoatualização. Ambos, Che e Freire, desejavam um mundo sem exploração e terror.

Mas no presente momento histórico, quarenta anos depois da morte de Che, as contradições no coração da economia de mercado estão mais exacerbadas que no tempo de Che.
No caso de Che, encontramos um ser humano que se identificou totalmente com as massas humanas em sofrimento, e que não estava interessado em posses materiais e poder, e que, como José Martí, possuía uma identificação incondicional com todos aqueles que estão sob o jugo da opressão e da exploração. Che é um símbolo do potencial que todos nós temos para sermos mais completos como seres humanos. A educação era extremamente importante para Che. A educação era parte do processo para a construção de comunidades de “seres humanos novos-socialistas”. Para Freire, o amor é uma característica do verdadeiro diálogo quando este é praticado sem as distorções do poder. Nas palavras de Freire: “Como um ato de bravura, o amor não pode ser sentimental: como um ato de liberdade, ele não deve servir como pretexto para a manipulação. Deve gerar outros atos de liberdade; do contrário, não é amor. Apenas abolindo a situação de opressão é possível restaurar o amor que essa situação tornou impossível. Se não amo o mundo – se não amo a vida – se não amo as pessoas – não posso entrar nesse diálogo”.

Autotransformação e transformação social eram vistas por Che assim como por Freire como mutuamente constitutivas, dialeticamente reiniciando atos que resultam em prática revolucionária – a criação do novo ser socialista para uma revolução permanente.

Che e Freire lutaram tão determinadamente para manter viva a transformação do sistema mundial capitalista, e, através dessa luta, a transformação do coração humano.
 
IHU On-Line - O pensamento dele ainda é relevante, mesmo 40 anos após a sua morte?
Peter McLaren -
Assim como o mundo parece ter abandonado o socialismo, o socialismo se recusa a abandonar o mundo. A mensagem contida em um dos mais famosos escritos na história do socialismo, o Panfleto Junius, de Rosa de Luxemburgo , soa tão verdadeiro hoje como quando ela escreveu estas palavras: “Hoje, encaramos a escolha exatamente como Friedrich Engels  a vislumbrou uma geração atrás: o triunfo do imperialismo e o colapso de toda a civilização na Roma antiga, despopulação, desolação e degeneração – um grande cemitério. Ou a vitória do socialismo, que significa a luta de consciência ativa do proletariado internacional contra o imperialismo e seu método de guerra”.

Che constrói um novo socialismo

Muitos revolucionários consideraram a escolha de Luxemburgo para testar o caminho que Che tomou. O que é notável sobre Che foi o modo como ele foi contra a esquerda tradicional de seu tempo na busca pelo novo, caminhos mais igualitários e humanos para sua meta digna, caminhos que ele sentiu que fossem mais consistentes com o que ele entendia que fossem os princípios éticos do comunismo. Che rejeitou os modelos de socialismo do Leste Europeu que reclamavam “conquistar o capitalismo com seus próprios fetiches”. Em seu ensaio de março de 1965, “Socialismo e o Homem em Cuba”, ele escreveu: “A alucinação  de que o socialismo pode ser alcançado com a ajuda de instrumentos cegos deixados para nós pelo capitalismo (o commodity como célula econômica, lucratividade, interesses materiais individuais como alavanca e assim por diante) pode levar a uma rua sem saída... Para construir o comunismo, é necessário, simultaneamente com as novas fundações materiais, construir um novo homem”. Conjugando contingência com necessidade, Che não estava apenas rejeitando as camadas de tecnocracia e burocracia que tal modelo traria para Cuba, mas também desafiando a visão economista do socialismo (a qual enxergava a esfera econômica como um sistema autônomo governado por leis próprias de valor ou de mercado) com um socialismo baseado em critérios políticos e éticos. É importante enfatizar que o marxismo de Che tem um caráter essencialmente não-dogmático.

Os ensinamentos

O não-dogmatismo de Che no domínio da teoria (Che enxergava o marxismo como um guia para a ação, uma filosofia da prática, uma teoria da ação revolucionária) não estava desligado de sua prática pedagógica, uma vez que ele rejeitou imediatamente o culto stalinista da autoridade (ao qual ele freqüentemente se referia como escolástico/escolasticismo) e reclamou ser impossível educar as pessoas a partir de cima. Fazendo ecoar a questão criada por Marx em suas “Teses sobre Feuerbach”  (“quem irá educar os educadores?”), Che escreveu em um discurso de 1960: “A primeira receita para educar as pessoas é trazê-las para dentro da revolução. Nunca presuma que educando as pessoas elas irão aprender, apenas pela educação, com um governo despótico em seu calço, como conquistar seus direitos. Ensine-as, primeiro, e principalmente, a conquistar seus direitos e quando elas forem representadas no governo irão aprender sem esforço o que quer que lhes seja ensinado e muito mais”. Che começou com o desafio da capacidade humana na criação do “novo homem”, com o imperativo de transformar os multilateralmente agravados e o sofrimento humano sob o jugo da agressão imperialista. O que Che advogava era, em essência, uma política de autotransformação pela luta revolucionária, a luta pela humanidade, dignidade, liberdade e justiça do ponto de vista do proletariado lutando a guerra de classes.

Atualidade do pensamento de Che

Ao olharmos para as lutas socialistas contemporâneas por práticas de democracia direta e representativa, reconhecemos o insight de Che de que a luta de classes é mais que uma luta econômica, é uma luta para que [as pessoas] se tornem mais completas como seres humanos através da criação de sociabilidades em alargamento contínuo, de horizontes ilimitados para o enriquecimento humano. Nesse contexto, uma pedagogia da libertação torna-se a auto-educação do povo através de sua própria prática revolucionária como parte da luta de classes. E a luta de classes, nesse sentido, se refere à luta por uma classe em si que se torne uma classe por si através de participação direta e ação protagonista na parte das massas elas mesmas.

Che procurou a abolição dos vestígios econômicos do capitalismo não como resultado automático do desenvolvimento das forças produtivas (ele rejeitava incondicionalmente a tensão evolucionista do progresso industrial-capitalista), mas pela intervenção do planejamento social (em contraste com o planejamento centralizado praticado no stalinismo). Além disso, Che reconheceu a autonomia específica da transformação social, política e ideológica que compreende o todo social, e avaliou a importância da motivação político-moral e a necessidade de várias formas de ação para mudar a consciência das massas com vistas a causar a hegemonia ideológica dos valores comunistas.

Tal luta e mudança de consciência é necessária para a luta revolucionária por todo o globo. Como apontado por Che, “o socialismo não pode existir sem uma mudança de consciência de que causará uma mais irmanada disposição para o humanitário, tanto em nível individual naquelas nações onde o socialismo estava sendo, ou foi, construído, quanto em nível mundial, com todas as nações que são vítimas da opressão imperialista”.

A sociedade desejada

Che procurou criar as condições necessárias para a construção de uma sociedade que fosse qualitativamente diferente dessa sociedade capitalista, uma verdadeira alternativa libertadora do capital em todas as suas formas, uma revolução total que transcenderia o valor do trabalho. Che não viveu para ver sua missão completa. Ainda, em outro sentido, Che pode ser considerado como muito vivo. Seu valoroso e notável espírito se reflete em cada camarada/companheiro pronto para lutar uma vez mais pela independência de ‘Nuestra America’. Na verdade, hoje a influência de Che é mais sentida que durante sua vida. Um grão de trigo deve cair no chão e morrer para que sua semente possa criar raiz.

IHU On-Line - Paulo Freire introduziu Che Guevara como um modelo ideal para o diálogo não violento. Como conciliar essa idéia com a opção pela luta armada?
Peter McLaren -
Críticos do papel de Che na guerrilha tentaram apontar as contradições que a figura de Che deveria encarnar, particularmente sua advocacia pelo humanismo e a importância que ele toma pelo sagrado da vida humana. Como ele concilia seu respeito pela humanidade com a ênfase que dava à guerrilha e a tomada de vidas humanas? Che rejeitou a criação de uma revolução nacional-democrática (uma concepção do tipo menchevique ), que também colaboraria com ou ofereceria um papel revolucionário à burguesia. A experiência cubana convenceu Che de que a burguesia nacional nunca aceitaria a reforma agrária e a expropriação de monopólios imperialistas e eventualmente tentaria uma contra-revolução através de alianças com latifundiários, as oligarquias dominantes e com, talvez, a assistência militar de imperialistas e mercenários norte-americanos. Rejeitando a então prevalente visão da esquerda tradicional latino-americana de que o caráter semifeudal e semicolonial das economias latino-americanas mitigariam uma revolução socialista em favor de uma revolução nacional-democrata, Che estava absolutamente convencido de que apenas uma revolução socialista baseada em uma aliança de trabalhadores e camponeses poderia realizar a libertação permanente das Américas. O aparato burocrático-militar do Estado burguês teve que ser destruído porque o maquinário político-militar do Estado iria inevitavelmente trair o povo em favor dos capitalistas. Ainda, enquanto Che era um arquiteto da guerrilha, ele tanto advogou quanto aderiu aos padrões de respeito pelo inimigo.

A violência da revolução permanece

A violência estrutural prevalece nos atuais regimes imperialistas e seus Estados, mas nunca é condenada por esses Estados! A violência revolucionária é a única violência oficialmente condenada por esses Estados! No pensamento de Che, a violência revolucionária é a única violência que pode ser justificada, enquanto camponeses e trabalhadores tentam defender seus familiares das agressões da classe capitalista transnacional representada no primeiro e terceiro níveis de violência. Ou quando revolucionários tentam derrubar ditadores capitalistas. A violência revolucionária pode desencadear tão poderosa violência reacionária que alguns revolucionários advogavam pela resistência não-violenta (Jesus e Gandhi  são dois dos mais proeminentes exemplos históricos). A resistência não-violenta é preferível, claro, mas nem sempre possível. O grande desafio hoje é tentar educar o povo ao redor do mundo sobre o capitalismo neoliberal – que é uma forma de violência estrutural que deve ser derrotada. Como a derrotamos irá variar dependendo das circunstâncias históricas que enfrentamos e dos contextos e conflitos globais, locais e regionais em que nos encontramos.

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