Edição 239 | 08 Outubro 2007

Che, ministro. Um depoimento

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IHU Online

Autor do livro O Ministro Che Guevara: testemunho de um colaborador (Rio de Janeiro: Garamond, 2004), o cubano Tirso Saenz fala de Che Guevara como alguém que dividiu com ele o ambiente de trabalho por cinco anos. “Um convívio intenso”, que o faz sentir por Che “um amor de pai, de grande amigo”, como ele descreve na entrevista exclusiva que concedeu à IHU On-Line por telefone, na última semana.



Ernesto Che Guevara, entre outros cargos, foi, entre 1961 e 1965, Ministro da Indústria, em Cuba. Tirso Sáenz, foi designado, em 1962, vice-ministro para a Indústria e, em seguida, vice-ministro para o Desenvolvimento Técnico. Foi aí que teve a oportunidade de conhecer melhor o Che que viraria mito e que é tema de capa da edição desta semana da IHU On-Line.

Tirso Sáenz nasceu em Havana, Cuba, em 12 de outubro de 1931. Bacharel em Engenharia Química pelo Rensselaer Polytechnic Institute, Troy, New York, EUA, é também doutor em Ciências pelo Ministério de Educação Superior de Cuba. Foi professor titular adjunto no Instituto Superior Politécnico "José A. Echeverría" de Havana. Criou o Centro de Estudos de História e Organização da Ciência em 1976. Ainda na década de 1970, foi presidente da Comissão para o Uso Pacífico de Energia Atômica. Presidiu a Comissão Nacional para a Proteção do Meio Ambiente e Recursos Naturais entre 1980 e 1985. Trabalhou no Brasil como professor visitante da Unicamp em 1996 e, de 1997 a 1998, como especialista visitante no Instituto de Ciência e Tecnologia do Governo do Distrito Federal. Atualmente, é especialista do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular no Ministério do Meio Ambiente. Além de ter publicado, ou editado, mais de dez livros, foi membro da extinta Academia de Ciências Agrícolas da República Democrática Alemã. Atua como membro da Academia de Ciências de Nova Iorque.

IHU On-Line - Como o senhor definiria o Che ministro, incentivador da industrialização de Cuba?
Tirso Saenz –
Considero que foi um grande ministro, com uma altíssima visão estratégica. Traçou linhas de ação mesmo com as poucas informações e os raros recursos disponíveis. Tudo em circunstâncias muito difíceis: bloqueio e falta de pessoal qualificado, inclusive de operários e técnicos. 75% dos engenheiros deixaram o país. Ainda assim, com o pessoal técnico inexperiente começou um processo de industrialização. Criou-se uma indústria que era praticamente inexistente. Como resultado desta política, temos também o número de indústrias que foram criadas se e ajudaram na renda e no emprego. Como exemplo pessoal, posso dizer que Che era o primeiro a chegar no ministério e o último a sair, com uma alta sensibilidade humana, de justiça. E foi, para mim, historicamente, o melhor ministro que Cuba teve.

IHU On-Line – O que permanece ainda hoje, em Cuba, da industrialização conduzida por Che Guevara?
Tirso Saenz –
Isso aconteceu há 47 anos. Instituíram-se bases para a criação de uma indústria sob as condições daquele momento. A única ajuda técnica e tecnológica que nós recebíamos era do campo socialista, que era atrasado nesse sentido. Ainda assim, se aproveitou muito essa possibilidade. Hoje não temos mais essa tecnologia socialista. A indústria biofarmacêutica é 100% cubana e uma indústria de nível internacional. Hoje, o nível cultural e técnico de Cuba é infinitamente superior ao que existia nos anos 1960. O que podemos dizer é que esse processo inicial deu base ao processo de industrialização atual.  

IHU On-Line - Como era a relação entre Fidel Castro e Che Guevara na conduta do poder cubano, seja na revolução, seja depois, quando os revolucionários assumiram o poder?
Tirso Saenz –
Eu fui testemunha de que as relações entre eles eram muito fraternais. Lembro que Fidel depositava uma grandíssima confiança em Che. Não lembro que Fidel tenha interferido nas decisões que Che tomava no ministério da indústria, mas Che o consultava quando era necessário. Sempre foi uma relação de muito respeito e carinho entre eles. Che saiu de Cuba não por uma briga com Fidel, mas por um compromisso histórico que ele tinha com a guerrilha. Praticamente toda a América Latina passava pela ditadura militar: Argentina, Brasil, Colômbia, Venezuela. Che, em Cuba, fomentou muito o envio de guerrilheiros para toda a parte. Ele não iria ficar em Cuba, tranqüilo, como ministro, sabendo que amigos e companheiros enviados por ele a lutar na guerrilha estavam lutando e ele estando tranqüilo como ministro. Mas posso assegurar que Che e Fidel não brigaram, porque eu compartilhava diariamente o trabalho de Che.

IHU On-Line - O senhor concorda com uma das definições que persistem sobre Che, a de que, para qualquer mudança, seria necessário pegar em armas?
Tirso Saenz –
Naquele momento, era a única alternativa. O primeiro exemplo foi a Revolução Cubana . Essa era a idéia predominante naqueles momentos. Até se pode discutir se era certo ou não. Hoje é diferente. Por vias democráticas Chávez , Evo Morales , Ortega  tomam o poder e são governos progressistas, de esquerda. Ou seja, dialeticamente, o que foi necessário num momento não é necessário agora. Naqueles momentos, a idéia de Che, sobretudo tomando como experiência a Revolução Cubana, era a de que para derrotar a ditadura era necessário tomar as armas. 

IHU On-Line - Como o senhor avalia a idolatria de Che no Brasil? A imagem dele se transformou num produto de consumo?
Tirso Saenz –
Eu não seria tão absoluto. Eu dividiria em duas partes. Tenho muitos contatos, precisamente por ter trabalhado com Che, sou convidado a dar muitas palestras, ir a reuniões, e vejo que há milhares e milhares de jovens – veja que interessante! – que usam a camiseta do Che não como um produto de consumo. Não como essas coisas nojentas que a revista Veja  mostrou (maiôs com a foto de Che e a tatuagem que Mike Tayson fez dele). São pessoas que levam Che como uma amostra de carinho e respeito. Não acho que no Brasil a imagem de Che foi convertida em objeto de consumo. Há o respeito, o carinho e a devoção à imagem de Che em todo o mundo, não só no Brasil. 

IHU On-Line – Por que o senhor acha que mesmo 40 anos depois da morte de Che Guevara ele ainda é tão idolatrado?
Tirso Saenz –
O mais interessante é que isso parte do pessoal mais jovem, que não tinha nascido quando Che morreu. Porque eles respeitam esses ideais de solidariedade, essa questão de estar disposto a dar a vida por um ideal, o sentido do humanismo revolucionário. Isso impressiona muito os jovens, que o respeitam.

IHU On-Line - O que o senhor guarda de mais significativo do seu convívio com Che Guevara? 
Tirso Saenz –
Eu guardo várias coisas. Primeiro, o exemplo pessoal que ele dava. O sentido de discutir tudo. Ele escutava muito, gostava de discutir, de ser discutido, ou seja, ele ouvia tranqüilamente um “eu não concordo com você”, e aí começaria uma discussão, porque ele gostava que suas idéias fossem analisadas. Ele era, nesse sentido, um mestre. Ele explicava as coisas de forma que se entendia tudo, se trabalhava em equipe, com um sentido de discussão coletiva, de crítica e autocrítica. Che era exigente no trabalho, mas tinha uma elevada sensibilidade. Nunca ouvi da boca dele a famosa frase “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”. Mas acredito que ele poderia ter dito isso sim. Por exemplo, ele gostava (e isso quem me contou foi a viúva dele) de recitar poemas para ela, em momentos de intimidade. E, antes de sair para a guerrilha, gravou com sua voz duas fitas com esses poemas. Ou seja, não perdeu a ternura nem nesse momento.

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