Edição 238 | 01 Outubro 2007

Medos privados em lugares públicos

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IHU Online

O filme comentado nessa edição foi visto por algum/a colega do IHU e está em exibição nos cinemas de Porto Alegre

Ficha Técnica
Nome: Medos privados em lugares públicos
Nome original: Coeurs / Private fears in public places
Cor filmagem: Colorida
Origem: França
Ano produção: 2006
Gênero: Comédia - Drama
Duração: 120 min
Classificação: 14 anos
Direção: Alain Resnais
Elenco: Sabine Azéma, André Dussollier, Pierre Arditi, Lambert Wilson, Laura Morante, Isabelle Carré 

Sinopse:
No bar de um grande hotel 5 estrelas, o garçom Lionel (Pierre Arditi) escuta todos os dias as histórias de um cliente assíduo, Dan (Lambert Wilson). Ex-militar, Dan tem problemas para procurar emprego, o que torna cada dia mais instável seu relacionamento com a noiva Nicole (Laura Morante).

Nicole está ansiosa para mudar de apartamento e para isso procura um corretor de imóveis, Thierry (André Dussollier). No seu escritório, Thierry divide o espaço com a secretária Charlotte (Sabine Azéma). Cristã fervorosa, ela empresta ao colega de trabalho fitas de vídeo onde gravou trechos de seu programa religioso favorito. Ao ssisti-los, Thierry tem uma surpresa.

Charlotte começa a tomar conta do pai doente de Lionel à noite, período em que o garçom precisa sair para o trabalho. E a irmã de Thierry, a solitária Gaëlle (Isabelle Carré), acaba cruzando o caminho de Dan.

“É surpreendente a boa forma do diretor francês Alain Resnais. Aos 85 anos, o autor de Hiroshima Meu Amor (59), O ano passado em Marienbad (61) e Providence. (77) continua ativo e perspicaz como sempre. E realiza aqui um extraordinário filme sobre a procura afetiva e a solidão”, constata Neusa Barbosa. “Tudo é humano, tudo é simples e, ao mesmo tempo, surpreendente”, escreve o jornal O Estado de S. Paulo, 4-09-2006, quando o filme foi apresentado no festival de Veneza no ano passado.

“A cada momento nos damos conta de que cada personagem tece, na verdade, seu próprio labirinto. Ele o esconde sob uma identidade, sob a aparência de uma unidade. Mas Resnais parece que vai dispondo espelhos dentro de cada um, enquanto a história se desenvolve, multiplicando-os, tornando-os ao mesmo tempo quebradiços e estilhaçados mas também surpreendentes em sua diversidade e ricos em seus paradoxos”, comenta Inácio Araújo, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 13-07-2007.

Segundo ele, Medos privados... faz transparecer com clareza a enorme unidade dessa obra sempre diversa e surpreendente que Resnais vem construindo nos últimos 50 anos e que faz dele um dos grandes cineastas de nosso tempo”.


A força do afeto em novo filme de Alain Resnais

Luiz Carlos Merten comenta o filme de Alain Resnais, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 12-07-2007.

Alain Resnais trabalhava no projeto de uma ópera adaptada de Kurt Weil, O Tsar se faz fotografar. Já tinha o elenco, a direção de arte, a cenografia, a partitura. Faltava o dinheiro. Como disse o diretor em sucessivas entrevistas, é muito difícil financiar uma ópera no cinema. O último grande aficionado, Daniel Toscan du Plantier, morreu há alguns anos. A ópera cinematográfica de Resnais foi arquivada. Em busca de uma alternativa para seguir trabalhando, ele se voltou para o dramaturgo inglês Alan Ayckbourn  e fez Coeurs, uma adaptação da peça Medos privados em lugares públicos (que virou o subtítulo no original e o título no Brasil).

Um filme de Alain Resnais é sempre um acontecimento, mesmo que a obra recente do autor não pareça mais tão revolucionária, na linguagem e até nos temas, como quando ele fez pináculos da modernidade no cinema - Hiroshima, meu Amor, O ano passado em Marienbad e Providence. 

Resnais mudou para continuar o mesmo - viciado pela forma, atraído por personagens que parecem retomar os ratos de laboratório de Henri Laborit em Meu tio da América.


Metáfora

Em vários momentos, quando Laura Morante visita os apartamentos desertos em companhia de André Dussolier, em busca do lugar ideal para habitar com Lambert Wilson, a câmera no alto, filmando em plongê - de cima para baixo -, acentua esse caráter de ratos num labirinto. Para seus atores e técnicos, Resnais construiu outra metáfora - a de uma teia abandonada pela aranha, mas na qual permanecem presos sete insetos. Três homens e três mulheres compõem casais (ou uma espécie de). Cruzam-se no mesmo espaço, menos um homem e uma mulher. E há uma figura misteriosa, obscura, Arthur. No passado, Resnais já havia adaptado Ayckbourn, fazendo Smoking/No Smoking. O autor inglês possui um teatro em Scarborough, que o próprio Resnais prefere definir como casa de cultura. Inclui duas salas de teatro, um cinema, um bar e uma
livraria. Todo ano Ayckbourn cria uma peça nova para apresentar em seu espaço. Há cinco, Resnais não o visitava. Ayckbourn havia estreado cinco novas peças, portanto. A que mais seduziu o
diretor foi Medos privados em lugares públicos - pelo estranhamento, como ele diz. Forneceu o material para que trabalhasse com atores que, cada vez mais, lhe são fiéis - Sabine Azéma, Pierre Arditi, André Dussolier, Claude Rich. A eles somam-se Laura Morante (de O quarto do filho) , Isabelle Carré e Lambert Wilson.

Desconstrução

Para se posicionar em relação a Medos privados em lugares públicos, o que o espectador precisa renunciar, de saída, é à intriga. Resnais sempre gostou de desconstruir suas histórias, embaralhando tempo e espaço (Hiroshima e Marienbad) ou embaralhando realidade e imaginação (Marienbad e Providence). Não acontece muita coisa em Medos privados.

Os personagens estão sempre em movimento, existem qüiprocós divertidos em cada um deles. Charlotte, interpretada por Sabine Azéma, é uma cristã interessada na salvação da humanidade ou uma perversa capaz de maquinações maquiavélicas? A fita de vídeo que ela dá a Thiérry (Dussolier) sobre o programa Canções que mudaram nossas vidas é um tédio, pelo menos até que entre em
cena esta mulher seminua - a própria Charlotte? - fazendo contorcionismos físicos que deixam o coroa solitário louco.

Imaginário

Como se posicionar face ao imaginário de Resnais? Uma boa porta de entrada é a que leva ao espaço habitado por cada personagem. Nicole (Laura Morante) busca uma casa, um apartamento de três peças. Cada personagem possui sua casa, ou seu espaço, menos Charlotte, que compartilha o escritório com Thiérry e leva seu maquiavelismo ao apartamento de Lionel (Arditi), onde exerce a função de enfermeira do pai dele, e menos Dan (Lambert Wilson), que passa a maior parte do tempo no bar em que Lionel é o atendente.

Resnais não vê incompatibilidade alguma entre cinema e teatro. Ao contrário do livro, em que o leitor pode voltar atrás, no teatro não se pede ao ator que repita a cena nem ao operador, no cinema, que volte atrás com o filme. A peça e o filme, como a vida, vêm num jorro.

Resnais situou a ação em Bercy, na área próxima à Biblioteca Nacional. É uma Paris que não parece Paris. O exterior não importa muito, só o interior, onde neva, ainda por cima - dentro das casas! O tema de Ayckbourne é o medo privado no lugar público. O de Resnais é o afeto, contra a indiferença. Não por acaso, ele rebatizou seus filmes como Coeurs - Corações.

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