Edição 238 | 01 Outubro 2007

A crítica e subversão de Gorz ao capital

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IHU Online

Refletindo com e contra o legado de André Gorz, Ricardo Antunes falou, por telefone, com a redação da IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida sexta-feira, 28-09-2007, ele menciona as suas concordâncias e discordâncias para com o intelectual que, em sua opinião, é, inegavelmente, é um dos grandes teóricos sobre o mundo do trabalho. Antunes comenta, entre outros assuntos, o livro Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho (São Paulo, Campinas: Cortez, Editora da Unicamp, 1995), que escreveu como resposta à polêmica levantada por Adeus ao proletariado: para além do socialismo (2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987), de Gorz, e lembra que ele foi um crítico do capital, que preconizava a subversão dos valores e da lógica desse sistema.



Antunes é graduado em Administração Pública, pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), mestre em Ciências Sociais, pela Unicamp, e doutor na mesma área, pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese As formas de greve: o confronto operário no Abc paulista - 1978/80, publicada sob o título A rebeldia do trabalho (O confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978/80)  (2. ed. Campinas: Unicamp, 1992). Fez pós-doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, é livre-docente pela Unicamp, com a tese Adeus ao trabalho? (Metamorfoses no mundo do trabalho e dimensões da crise do sindicalismo), e professor titular em Sociologia do Trabalho, com a tese Os sentidos do trabalho (9. ed. São Paulo: Boitempo, 2005). Escreveu e organizou 30 obras, das quais mencionamos O que é sindicalismo (19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999); Desertificação neoliberal no Brasil (2. ed. Campinas: Autores Associados, 2005); e Uma esquerda fora do lugar: o governo Lula e os descaminhos do PT (Campinas: Autores Associados, 2006) e Il Lavoro in Trappola (Milão: Jaca Book, 2006).
Na edição 132 da IHU On-Line, de 14-03-2005, concedeu a entrevista “1985-2005: A Nova República 20 Anos Depois”, e na edição 194 da IHU On-Line, de 04-09-2006, falou sobre A necessidade de uma política radical. O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu, publicou inúmeros artigos e entrevistas escritos e realizados com Antunes. O artigo mais recente que veiculamos discute a centralidade do trabalho para Marcio Pochmann e Ricardo Antunes, nas Notícias do Dia de 10-04-2007. Confira, ainda, nas Notícias Diárias de 22-11-2006 a entrevista com Antunes intitulada A nova morfologia do trabalho e os (des)caminhos do sindicalismo.

IHU On-Line - Qual é o maior legado intelectual que André Gorz deixa à contemporaneidade? E como esse pensador pode ajudar a sociedade contemporânea a reformular seus conceitos sobre o trabalho?
Ricardo Antunes –
Primeiramente, é preciso dizer que a morte de Gorz nos entristece muito. Ele tem uma obra vastíssima. Sua produção dos anos 1960 até hoje sempre foi, com todas as oscilações e diferenciações, positiva, instigante e provocativa na esquerda e para a esquerda. Temos a reflexão, nos anos 1960, sobre a nova divisão social do trabalho, a idéia de um exercício de uma autonomia operária, e, em seu período anterior, ele fazia uma espécie de aproximação entre marxismo e existencialismo, uma leitura muito humanista. Até a obra mais recente de Gorz, Adeus ao proletariado, e textos como O imaterial, publicado há pouco mais de dois anos no Brasil, são de importância fundamental. De tudo isso, permanece uma reflexão viva sobre as mudanças do mundo do trabalho.

A contribuição de Gorz é uma contribuição polêmica e eu mesmo pude, respeitosamente, polemizar aqui e ali com ela. O meu livro Adeus ao trabalho? é uma referência clara e polêmica a Adeus ao proletariado, de Gorz. Mas eu diria que, como o mundo do trabalho mudou, o significado do trabalho está alterado. Gorz, na concordância ou em dissonância com sua obra, ou na concordância e na discordância com um ou outro dos vários livros que compreendem sua obra, sempre agregava elementos de reflexão. Esse é o legado maior de Gorz, que era, também, um autor do limite, um crítico do capital. Lembro, inclusive, que na bela entrevista que ele concedeu à IHU On-Line , sobre a qual vários intelectuais brasileiros foram chamados a debater, inclusive eu mesmo, ele indicava que era preciso subverter os valores e a lógica do sistema do capital. Não estou citando-o textualmente, pois não tenho o material em mãos, mas lembro do espírito da entrevista, que falava na necessidade de subversão da lógica e os desvalores do capital. Isso mostra que, mesmo na sua maturidade mais plena, sua reflexão mantinha o tom crítico. Em algumas das outras obras ele foi menor, mas o conjunto de sua produção é uma das mais ricas fontes no estudo sobre o trabalho, e é por isso que tem tanto impacto em tantas partes do mundo.

IHU On-Line - Gorz queria que o trabalho nos moldes capitalistas, fordistas, perdesse sua centralidade na imaginação de todos. Como isso é possível numa sociedade cada vez mais centrada no lucro e na tecnificação das atividades?
Ricardo Antunes –
Aqui, é preciso fazer duas considerações preliminares. Gorz partia da noção de que o trabalho era sinônimo de trabalho assalariado. Esse trabalho assalariado para ele era a forma do trabalho, e, desse modo, para ele, o trabalho é pura negatividade. O meu contraponto é que entendo trabalho não como sinônimo de trabalho assalariado. O trabalho tem um sentido que transcende o sentido de trabalho assalariado. No capitalismo é que ele se torna trabalho assalariado. Então, é diferente. A minha concepção de trabalho tem um sentido muito anterior ao capitalismo. As sociedades primitivas, ao criar suas atividades vitais para a produção e reprodução de sua existência, estavam trabalhando. Esse é o primeiro ponto. Gorz tinha uma concepção muito precisa, com a qual não concordo.

Um segundo ponto é que a sociedade atual não é mais regida pela ética do trabalho assalariado. Aí, sob meu ponto de vista, penso que há uma relativa incompreensão da forma pela qual o trabalho hoje, seja o trabalho material, seja o trabalho imaterial, participam de modo subordinado do processo de criação do valor, de tal modo que a centralidade do trabalho hoje, ou a não centralidade, decorre da seguinte questão: o trabalho, seja material, ou imaterial, tem ou não, ainda, um papel ainda importante na criação do valor? Eu penso que tem.

A terceira questão é que Gorz, como muitos outros autores, se deixaram levar por uma espécie de hiperdimensionamento do papel tecnocientífico. Eu não entendo que a tecnologia e a ciência eliminem o trabalho como criação de valor. Entendo que a ciência e tecnologia interagem de modo muito complexo com essas novas modalidades de trabalho, de tal modo que o trabalho se mantém como potência criativa e o maquinário técnico-científico-informacional e digital é parte imprescindível dessa interação complexa para a criação do valor. Mas não pode eliminar a figura fundante, determinante do trabalho vivo. Acho que esses pontos são os que eu faria a minha nuance, o meu modesto contraponto de Gorz. Acredito que devemos acentuar os pontos polêmicos de Gorz, mas, antes disso, reconhecer que ele foi um lutador intelectual. Enquanto lutador intelectual ele inspira muitos trabalhos. Em certo sentido, mesmo que na polêmica, inspirou meu trabalho também, Adeus ao trabalho? Talvez não o tivesse sido escrito se não tivesse lido Adeus ao proletariado, entre outros textos de Gorz analisados naquele trabalho.

IHU On-Line - O que sobra depois do trabalho fordista abolido? É mesmo possível superar a sociedade salarial, conforme propunha Gorz?
Ricardo Antunes -
Nós já não estamos mais num modelo de trabalho fordista, mas um trabalho assalariado que não é mais estável e regulamentado. Este é muito mais um trabalho assalariado instável, terceirizado, vivenciando uma forma do que eu chamo de precarização estrutural do trabalho. Não penso que o futuro seja do trabalho assalariado, taylorista e fordista, isso enquanto tendência já é parte do passado. Ele se mantém hoje apenas como herança forte do passado. O que vemos hoje é um trabalho assalariado reduzido a números menores de homens e mulheres que trabalham sob formas muito precarizadas, altamente intelectualizadas em algumas áreas, como os trabalhos de tecnologia de informação, combinando jornadas prolongadas com ritmos intensos de trabalho, gerando não o fim do trabalho, mas a nova morfologia do trabalho. Quando eu li Adeus ao proletariado, ali percebi um conceito, no meu ponto de vista, equívoco, qual seja: a não-classe dos não-trabalhadores. Foi lendo esse termo e refletindo sobre ele, a respeito do que eu considero um equívoco dessa conceitualização, que elaborei o termo classe-que-vive-do-trabalho. Criei esse conceito inspirado na polêmica com o conceito distinto e contrário de Gorz.

IHU On-Line - Que oportunidades e riscos o senhor percebe com o surgimento desse novo trabalho? Os trabalhadores estão na iminência de perder seus direitos já adquiridos?
Ricardo Antunes -
Certamente. Quando eu falo em precarização estrutural do trabalho, percebo o risco de uma sociedade desumanizada, na qual o trabalho se tornou o objeto de destruição do mundo produtivo, assim como a dimensão ambiental sofre o processo brutal, voraz, de destruição por parte dessa lógica do capital. Se a sociedade se mantiver nessa lógica destrutiva que torna supérflua uma massa imensa de trabalhadores, que torna destrutiva os bens da natureza, a humanidade já vivencia condições de barbárie e pode vivenciar coisas ainda piores. Isso recoloca, então, o imperativo de pensarmos uma alternativa societal que rompa com a lógica do capital e o seu sistema de metabolismo social. É preciso pensar numa lógica societal, cujo metabolismo social seja voltado para a produção de valores de uso para a produção de coisas úteis segundo o tempo disponível. Gorz, é preciso dizer, deu pistas interessantes nesse aspecto, ainda que, também aqui, tenhamos bons pontos de discussão e mesmo de polêmica. Se imaginarmos que hoje poderíamos trabalhar três ou quatro horas por dia, três dias por semana e toda a humanidade seria reproduzida, se a lógica do capital não fosse dominante e imperante, a humanidade seria mais atual nesse sentido. Sintetizando a resposta, se não quebrarmos essa lógica destrutiva que preside o mundo contemporâneo, a humanidade viverá processos ainda mais tenebrosos. Como eu tenho uma análise pessimista, mas um sentido otimista olhando para o mundo, penso que as lutas sociais que estamos presenciando na América Latina, Ásia e mesmo na Europa são sintomas de que a turbulência e a temperatura social do mundo estão aumentando. Isso vale, também, para a temperatura ambiental, o que é uma tragédia, mas aqui centro foco na temperatura social, que está, felizmente, subindo.

IHU On-Line - O trabalho imaterial não tende a ser uma nova forma de escravidão ao estar “onipresente” em nossas vidas, em celulares que tocam nas horas e lugares mais inconvenientes, ou em e-mails que agendam as pessoas a qualquer momento, mesmo fora do ambiente de trabalho? Qual é o limite entre esse trabalho imaterial e a invasão das vidas privadas como instância última da subjetividade do ser humano?
Ricardo Antunes -
Primeiramente, precisamos dizer o que entendemos sobre o trabalho imaterial. Eu tenho uma leitura muito diferente da de Gorz, Negri e outros autores que tomam trabalho imaterial como trabalho do afeto, do serviço, das necessidades. Penso que o trabalho imaterial tem o sentido marxista, como pensar o trabalho no passado era só formalmente dependente do capital e hoje é, digamos assim, mais do que formalmente, sofre as formas de uma subsunção real do trabalho ao capital. É o trabalho imaterial que agrega valor, esteja ele nas tecnologias de informação, marketing, propaganda, na criação de logotipos, pesquisas, desenho de novos softwares, novos maquinários informatizados. É um trabalho que agrega valor, e também, como toda a nova morfologia presente no mundo hoje, que tem outras dimensões. O primeiro passo, aí, seria caracterizar bem o que é o trabalho imaterial, algo que faço no meu livro Sentidos do trabalho, em minha contraposição aos autores que citei acima. Recentemente, numa coletânea que o professor Josué Pereira da Silva , da Unicamp, organizou sobre a obra de André Gorz, publiquei meu artigo no qual eu fazia a contraposição da minha leitura, do trabalho imaterial em relação à leitura de Gorz, com a qual não concordo em todos seus desdobramentos, sobre o que ele considerava como trabalho imaterial. Mas, se entendermos trabalho imaterial como dependente desse maquinário, é evidente que ele é a expressão como também uma forma de trabalho intelectual abstrato e, por essência, abstrato. Em sendo trabalho abstrato ele é, em essência, negatividade.

IHU On-Line - Gorz acreditava que a sociedade do trabalho não era o patamar mais alto que poderíamos atingir. Assim, o fim do trabalho convencional seria a chance do ser humano desenvolver seus reais potenciais criativos?
Ricardo Antunes -
Não vivemos numa sociedade do trabalho, mas numa sociedade do trabalho fetichizado, maquinal, comandada pelo capital. Nesse sentido, o trabalho só vai voltar a ter significado humano e societal quando nós formos capazes de demolir as barreiras que fundamentam a sociedade do capital. Eu uso a seguinte síntese: o trabalho que estrutura o capital (criando valores de troca) desestrutura a humanidade. Num contraponto, o trabalho que estrutura a humanidade (criando valores úteis) desestrutura o capital. Esse é o dilema do século XXI. Por fim, desdobrando essa contraposição: uma vida só pode ser dotada de sentido fora do trabalho se ela for, também, dotada de sentido dentro do trabalho. O capital, o sistema de metabolismo social do capital ontologicamente falando, impede um trabalho dotado de sentido dentro dessa lógica.

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