Edição 236 | 17 Setembro 2007

Perfil Popular - Maria Ilse D’Ávila

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IHU Online

Aos 69 anos de idade, Maria Ilse D’Ávila é um exemplo de determinação, força de vontade e solidariedade. Criada no interior, ela cresceu com o sonho de ser professora, o qual, oficialmente, não foi realizado. No entanto, ela exerce, sim, a profissão e ensina muito mais do que se estivesse em sala de aula. Atuando há nove anos na Pastoral da Paróquia do bairro Rio Branco, em São Leopoldo, Ilse passa a diante os princípios e valores da prática do voluntariado. E faz isso de coração aberto, sem demonstrar qualquer sinal de cansaço. Confira, abaixo, a entrevista que ela concedeu à revista IHU On-Line:

Origens – De origem alemã, Maria Ilse D’Ávila nasceu no município de Pareci Novo, no interior do Estado. “Quando tinha 5 anos, meus pais foram embora de lá. Fomos de mudança com uma empresa serrana para Iraí, também no interior. Era como se fôssemos imigrantes, ou sem-terra.” Filha de pais agricultores, Ilse, de 69 anos, é a mais velha dos seis irmãos.

Infância – “Tenho muitas recordações do tempo em que morava no interior. Só vim conhecer pobreza quando vim morar em São Leopoldo”, destaca Ilse. Criada na colônia, a vida simples que teve é motivo de orgulho para ela. “A gente só comprava querosene para botar nos lampiões, ou queimava banha de borco nos candeeiros, sal e a roupa para vestir. Outras coisas, como leite, queijo, chimia, eram produzidas por nós. Era uma fartura.” Na infância, Ilse passava a maior parte do tempo brincando na casa da avó. “Eu e meus irmãos brincávamos todos juntos. Nossa relação era muito boa”, ressalta.

Estudos – Já morando em Iraí, Ilse teve a oportunidade de estudar até a 5ª série e também fez a catequese. ”Meu pai fez questão que nós estudássemos. Hoje em dia, parece que ninguém mais entende que estudo é uma obrigação.” Apaixonada pelos estudos, Ilse queria muito ser professora, mas, para isso, teria que ir para um colégio de freiras em São Carlos (SC), e seu pai não permitiu. “Isso eu cobro dele até hoje. Vim para a cidade sem profissão, só com a 5ª série. Trabalhei a vida inteira fazendo faxina, me virando com o que eu sabia fazer.”

Trabalho – Ilse permaneceu em Iraí até os 16 anos. Depois disso, surgiu uma oportunidade para trabalhar como empregada doméstica, em Novo Hamburgo. “Acho que sou uma das primeiras empregadas domésticas aposentadas contribuindo, porque, antigamente, empregada doméstica não tinha nenhum direito. Quando minha situação foi regularizada na Previdência Social, eu já tinha 20 anos de trabalho.” Na primeira casa de família que trabalhou, Ilse ficou durante 10 anos. “Em 1987, me aposentei da profissão de empregada doméstica. Trabalhei como costureira em uma loja de alemães, em Porto Alegre. Atendia no balcão e fazia serviço de banco. Nas horas que não tinha fregueses, eu fazia uniforme.”

São Leopoldo – “Vim morar em São Leopoldo em julho de 1965, porque meu marido trabalhava em uma empresa no município.” Ilse conta que, nesta época, houve uma grande enchente na cidade, e, com isso, o Conselho da comunidade de São Leopoldo se reuniu e comprou uma área de terra em um dos pontos mais altos do município, o bairro Jardim América, que é onde ela reside atualmente. “Me arrependo até hoje de ter vindo morar aqui em São Leopoldo. Novo Hamburgo é muito melhor para morar, em todas as áreas. Apenas a saúde em São Leopoldo é melhor.” Sair do interior e passar a morar em cidades grandes tem reflexo positivo para Ilse. “Quando vim para a cidade, eu era uma pessoa muito fechada. Hoje, consegui formar um círculo de amizades muito grande.”

Mudanças – Pareci Novo, Iraí, Rio Grande e Porto Alegre. Ilse já morou em todos estes municípios e faz uma avaliação positiva de tantas mudanças.  “Foi muito bom ter passado por todas essas cidades. Se eu tivesse dinheiro, iria comprar um ônibus velho, que tivesse banheiro, e ia só viajar.”

Voluntariado – Com espírito solidário, Ilse afirma que sempre achou um tempinho para ajudar aos outros. Com a enchente de 1965, ela iniciou na prática do voluntariado. Ela já trabalhou na Associação dos Moradores do seu bairro, e, com muito trabalho, conseguiu um posto medido para a comunidade. “Há nove anos, sou voluntária na Pastoral Social da Paróquia Rio Branco, em São Leopoldo. Sou encarregada pelo setor das roupas e também ajudo na cozinha. Não escolho serviço. Se tiver que lavar chão, a gente lava.” Ilse comenta que a rotina na Pastoral consiste em encontros semanais, para selecionar os donativos arrecadados, e na organização mensal de feiras de roupas usadas, para arrecadar fundos a fim de se fazer sacolas econômicas para a comunidade carente. Ao todo, são 25 voluntários, entre homens e mulheres, trabalhando na Pastoral. “O voluntariado é uma complementação da minha vida. Não saberia viver sem esse trabalho. As pessoas chegam e querem as coisas prontas. Eu gostaria que elas aprendessem a fazer, porque, assim, ajudaria a situação financeira delas.”

Grupo de mulheres na Unisinos - Durante 13 anos, Ilse freqüentou um grupo de mulheres que se reunia na antiga sede da Unisinos. “Ali, aprendi muita coisa. Inclusive, tivemos um curso de Promotoras Legais Populares para dar assistência às mulheres. Só não consegui carregar mais pessoas para que escutassem as palestras e aprendessem também.” O grupo se desfez no final do ano passado, para decepção de Ilse. “Fiquei muito chateada. Ainda bem que tenho muitas fotos para recordar.”

Casamento e filhos – “Faz 45 anos que me casei. Depois do meu marido, que morreu atropelado em 1985, tive um companheiro, e, depois, achei que não valia a pena viver com alguém”, confessa. Ilse tem um casal de filhos: a Cátia, de 44 anos, e o Gilnei, de 42, que é solteiro e mora ela. Sua filha é vigilante, e seu filho, atualmente, está desempregado. “Eles não puxaram por mim. Não são persistentes, de ir trabalhar nem que seja de arrasto.” Ilse conta que nenhum dos dois quis estudar, e seu maior sonho era dar a eles aquilo que o seu pai não deu. “Se fosse para eu ter filhos hoje, não teria. Se eu previsse que teria toda essa onda de desemprego, não iria botar filhos no mundo para passarem trabalho.”

Sonho – “Quem não tem um grande sonho?” Ilse reconhece que deveria ter voltado a estudar. “Hoje, não penso mais nisso porque até me formar vai levar muito tempo.” Se tivesse tido a oportunidade de estudar, ela faria algo na área jurídica ou assistência social. “Atualmente, meu sonho é voltar a morar no interior, em um lugar não muito longe, mas que tivesse ônibus, água e luz.”

Professora por acaso – Embora não tenha estudado para ser professora, Ilse não deixa de ensinar. “Com o trabalho de voluntária, ensino a fazer trabalhos manuais, a costurar e a cozinhar”, revela.

Visita ao mar – Ilse costuma ir muito à praia de Mariluz, no litoral gaúcho, onde sua filha tem casa. Neste ano, tomou banho de mar pela primeira vez. “Caí um tombo na água. Minha filha achou que eu não fosse mais querer chegar perto do mar, mas a queda não me assustou.”

Fé – Católica, mas sem fanatismos. É assim que Ilse define a sua relação com a Igreja. “Entendo que ter fé é ter uma esperança”, afirma. Na próxima semana, em Porto Alegre, vai acontecer um debate para unificar as religiões e “eu irei representar a Pastoral”, comenta Ilse, orgulhosa.

Momentos marcantes – O nascimento de sua filha Cátia foi um momento de grande emoção na vida de Ilse, o qual ela recorda com orgulho.  “Quando colocaram a minha filha no meu colo, pensei: que compromisso. Porque eu era mãe solteira, só fui me casar um tempo depois.” Há uma tristeza que cerca a vida de Ilse desde que seu filho era criança. “Quem olha não diz, porque ele é um moço alto e forte, mas ele sofre de depressão. Vivo triste por causa disso. Gostaria de poder fazer alguma coisa ou que tivesse uma solução para isso”, desabafa.

Fonte de renda – “Vivo com um salário mínimo, e não é nada fácil.” Esta é a realidade financeira de Ilse. “O que a gente ganha é uma miséria”, destaca. O trabalho na Pastoral não é remunerado, apenas reconhecido com certa quantidade de alimentos.

Política brasileira – Na visão de Ilse, não apenas os ricos roubam os pobres. “Agora  vejo que os governantes e os juízes, que deveriam dar exemplo, também estão roubando.” Os escândalos que envolvem a política do país causam em Ilse tristeza e revolta. “Queria que todos os ladrões fossem executados.”

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