Edição | 03 Agosto 2015

A luta pela Ecologia Integral na Amazônia brasileira

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João Vitor Santos | Tradução: Walter O. Schlupp

Roseanne Murphy retoma o legado de Dorothy Stang, missionária e religiosa, assassinada enquanto lutava pelo direito à terra e pela preservação do meio ambiente

Pouco antes da divulgação oficial da Encíclica Laudato Si’ pelo Vaticano, o portal Crux divulgou reportagem que revelava que o Papa Francisco, na feitura do documento, não se esqueceria da “Martir da Amazônia” . A Mártir é a irmã Dorothy Stang, assassinada há dez anos por grileiros. Sua morte teve repercussão internacional por trazer à luz a verdadeira guerra por terras que ocorre no norte do Brasil. Um dos tantos efeitos nefastos dessa guerra é a destruição da Floresta Amazônica através das ações dos grandes fazendeiros. “Ela desenvolveu uma paixão por ajudar os agricultores a conhecer seus direitos humanos, os quais eles não conheciam, assim como também não sabiam que tinham dignidade de seres humanos”, destaca a irmã Roseanne Murphy, biógrafa de Dorothy, que pertence à congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ao longo da entrevista, a religiosa, que integra a mesma ordem que a irmã Dorothy, analisa a Encíclica Laudato Si’ e vê no documento muito dos preceitos da freira morta no Brasil. E, para isso, recorda as ações da missionária. “Ela ensinou os lavradores a usarem agricultura sustentável em vez do cultivo baseado na derrubada e queimada”, lembra. Para Roseanne, a Ecologia Integral do Papa Francisco conclama a todos a repensar sua relação com o planeta, com o outro. Isso, na sua opinião, reforça e torna mais viva a luta de Dorothy Stang. “Dorothy teria ficado radiante com a encíclica. Ela vinha manifestando as mesmas ideias que o Papa Francisco expressa em sua encíclica”, exalta.

Roseanne Murphy é mestre e doutora em Sociologia. Atuou durante 37 anos no Department Chair for the Sociology/Psychology Department no Notre Dame de Namur University, novo nome do antigo Colégio de Notre Dame, onde atualmente ocupa o cargo de vice-residente. Trabalhou na pesquisa sobre o trabalho apostólico de São Julie Billiart, fundadora das Irmãs de Notre Dame. Ela ficou tão entusiasmada com a vida de São Julie, que escreveu uma nova biografia da religiosa. O livro, Julie Billiart, Uma Mulher de Coragem, foi publicado em 1995. Por causa desse trabalho, ela foi convidada a escrever sobre a vida de Irmã Dorothy Stang. Seu segundo livro, Mártir da Amazônia: A vida de Irmã Dorothy Stang (São Paulo: Paulus), foi publicado em 2007.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como resumir a atitude de Dorothy Stang nas questões ambientais? Quais eram alguns dos seus lemas e qual seu embasamento teológico? Como imagina que a Irmã Dorothy receberia a Encíclica Laudato Si’?

Roseanne Murphy - A Irmã Dorothy foi para o Brasil em 1966, começando seu ministério em Coroatá, nordeste do Brasil. Ela nunca esteve num lugar onde trabalhadores eram tratados como virtuais escravos dos proprietários de terra. Ela e outras irmãs de Notre Dame  começaram a se encontrar com agricultores para iniciar "Comunidades cristãs de base", ensinando os agricultores sobre a religião católica, sobre a qual sabiam muito pouco, e sobre a Bíblia. Ela estimulou alguns agricultores a tomarem a iniciativa de encorajar outros a virem para as reuniões. 

Aos poucos, ela começou com aulas especiais para os líderes, os quais vinham para a cidade e permaneciam com as irmãs durante o fim de semana. O objetivo era crescer na fé e aprender mais sobre como ensinar outras pessoas sobre sua religião. A Irmã Dorothy e outras irmãs chamaram a atenção de alguns militares na cidade, sendo colocadas sob suspeita de serem "comunistas".

Ela desenvolveu uma paixão por ajudar os agricultores a conhecer seus direitos humanos, os quais eles não conheciam, assim como também não sabiam que tinham dignidade de seres humanos. Também contribuiu para que os agricultores construíssem escolas para seus filhos, mesmo que os donos da terra não quisessem que se construíssem escolas, ou que as crianças recebessem instrução. Ela viu a destruição da terra que estava acontecendo naquela região. 

Devastação na Amazônia

Irmã Dorothy tinha se mudado para a floresta amazônica quando esta foi liberada para os pobres, os quais receberam 250 hectares cada para construir um lar e trabalhar 20% da sua terra, deixando 80% em seu estado natural. Viu a devastação da terra pelos madeireiros, os quais escondiam suas ações da polícia. 

No Pará, 99% da derrubada era ilegal, mas o governo não dispunha de efetivos de segurança para monitorar o que estava acontecendo. Além disso, muitos deles estavam sendo subornados. Quando os madeireiros quiseram aumentar suas terras para derrubar árvores visando ao lucro, muitas vezes contratavam pistoleiros para matar os pobres que tinham colonizado a terra recebida do governo e que tentavam proteger seus lares.

Ao longo dos primeiros cinco anos do seu tempo no Brasil a estação chuvosa encolheu de nove para cinco meses por ano. Os mananciais e rios baixaram, e quando os pecuaristas adubaram a terra que eles tinham desmatado para plantar uma forma resistente de capim que eliminava todos os outros tipos de planta, os produtos químicos foram levados para os rios, onde os pobres pescavam para se alimentar. 

A floresta amazônica perdia milhares de hectares todos os anos, e quando o solo não conseguia mais produzir qualquer vegetação, transformava-se em deserto irrecuperável. A Irmã Dorothy usava uma camiseta com as palavras "A morte da floresta é a morte de nós todos".

Amazônia de Dorothy

A região amazônica é uma das maiores fontes de oxigênio do mundo, possuindo vegetação utilizada em 30% dos produtos farmacêuticos em todo o mundo. Ela ensinou os lavradores a usarem agricultura sustentável em vez do cultivo baseado na derrubada e queimada, como tinham aprendido dos seus ancestrais indígenas, os quais não tinham as ferramentas para cortar árvores e arbustos o suficiente para limpar uma área para o plantio. Quando se esgotavam os nutrientes do solo, faziam queimada em outro lugar a fim de limpar a terra para o cultivo. Ela mostrou aos agricultores como enriquecer o solo a fim de reutilizar a terra para sua alimentação.

Irmã Dorothy era uma mulher de grande fé e católica devota. Ela levava sua Bíblia onde quer que fosse. Desde o início da Bíblia, no livro de Gênesis, quando Deus criou o mundo, Ele viu que este era "bom". Dorothy amava a floresta e os animais na floresta. Ela chorava ao ver as árvores sendo destruídas e os animais, dizimados. Ela sabia que o consumismo a dominar o mundo, e a ganância daqueles que gostariam de usar indiscriminadamente os produtos da natureza, eram responsáveis por destruir a terra e a floresta, sem ter em conta as futuras gerações e, especialmente, sem levar em consideração os pobres.

O cristianismo se baseia na crença de que Deus criou o mundo, e que nós, seres humanos, seríamos capazes de cuidar dele, ou, como no caso da Amazônia, capazes de destruí-lo. Ela viu a destruição desenfreada da natureza e o desrespeito às pessoas pobres que estavam tentando sobreviver ali e que eram consideradas "dispensáveis".

Laudato Si’

Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco exorta todas as pessoas de boa vontade a trabalharem para salvar o planeta da destruição irreparável e levarem em consideração a próxima geração. Do contrário, ignorando isso, as próximas gerações acabarão por herdar terras destruídas e águas contaminadas. Dorothy teria ficado radiante com a encíclica. Ela vinha manifestando as mesmas ideias que o Papa Francisco expressa em sua encíclica, porque ele via a mesma coisa acontecendo em seu país natal, Argentina.

 

IHU On-Line - Que é o conceito de "ecologia integral" na Encíclica e como se relaciona com pontos de vista da Irmã Dorothy?

Roseanne Murphy - Na Encíclica, o Papa Francisco explica detalhadamente as razões pelas quais o clima está mudando tão drasticamente, e como os ecossistemas estão sendo arrasados. Ele destaca a delicada relação entre o meio ambiente e atitudes humanas perante a natureza. Condena o fato de que a criação seja vista pela maioria das sociedades como algo a ser "usado" para os seus fins, sem levar em conta os danos infligidos à flora e fauna de cada continente. Ele afirma: "A saúde das instituições de uma sociedade tem consequências para o ambiente e para a qualidade de vida humana." Por exemplo, ele destaca que a demanda por drogas ilegais nas sociedades mais ricas tem impacto sobre os países pobres, custando-lhes vidas e a destruição de suas terras.

Irmã Dorothy viu que a demanda por carne bovina, por exemplo, provocava a destruição da Floresta Amazônica. Os países ricos exigiam mais e mais carne. Assim, os ricos proprietários de terras viram como oportunidade para aumentar os lucros ainda mais, mesmo sabendo que os agricultores pobres seriam mortos para que se assumisse o controle de sua propriedade, com a finalidade de criar mais gado.

Dorothy teve uma experiência de primeira mão ao ver os agricultores sendo expulsos de suas terras legítimas ou sendo mortos, caso se recusassem a sair para que os proprietários de terra ricos pudessem criar mais gado. Os responsáveis pelos assassinatos eram as pessoas ricas, cujo objetivo era conseguir ainda mais dinheiro para aumentar a riqueza. A ganância dos ricos motivava a expansão de seus negócios. 

O Papa assinalou que a avareza leva muitas pessoas a desrespeitar a terra e os pobres que nela vivem. Irmã Dorothy sabia muito bem que as pessoas pobres, que viviam literalmente da terra pela pesca, pelo cultivo de arroz, feijão, etc., estavam sendo privadas de seus alimentos e meios de subsistência.

Devastação cultural do pobre

Além da destruição da terra, o Papa destaca na sua Encíclica que estão sendo destruídas a cultura e a dignidade das pessoas submetidas à exploração pelos ricos. Irmã Dorothy trabalhou duro para convencer as pessoas que ela conhecia. Queria deixar claro que elas tinham direito a uma vida digna, e que seus filhos mereciam receber instrução. Assim, ajudou os agricultores a formar um sindicato e incentivou as mulheres a iniciar um "movimento das mulheres" para ajudá-las a adquirir um senso de valor.

O Papa escreve que todas as pessoas almejam um "lar" digno, asseado, um lugar onde se possam sentir aceitas na comunidade. Ele também menciona que todo mundo deve ter acesso a serviços essenciais, como assistência médica, serviços jurídicos, etc., precisam sentir que são protegidos pelo sistema jurídico.

Irmã Dorothy negociava, ia para rua, sentava por horas a fio com membros da organização que distribuía a terra para os pobres quando estavam sendo grilados. Ela foi a Brasília conversar com órgãos federais sobre os abusos contra os pobres no Pará. Repetidas vezes lhe recusaram ajuda. Na verdade, ela tinha recebido promessa de proteção no dia em que foi assassinada, quando de fato a deixaram sem qualquer segurança.

Inspiração apostólica

A missionária conhecia os escritos dos papas que, no passado, tinham lançado encíclicas sobre o direito dos povos a ter casa, trabalho e vida digna. Papa Leão XIII escreveu Rerum Novarum, sobre o direito dos trabalhadores, sobre o direito de todas as pessoas a uma vida digna. O Papa João XXIII, em Pacem in Terris, de 1971, escreveu: "Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação " Ele falou da catástrofe ecológica devida à efetiva expansão da civilização industrial.

São João Paulo II, em sua primeira encíclica, alertou contra a destruição do meio ambiente natural e conclamou para a conversão ecológica global, mudando nosso estilo de vida. Mais recentemente, o Papa Bento XVI conclamou para a conversão da vida e alertou que os seres humanos não podem presumir que o meio ambiente está aí apenas para o seu próprio consumo. Ele acrescentou que destruir o meio ambiente faz com que os seres humanos fiquem incapazes de salvá-lo da destruição. O Papa Francisco segue o pleito de muitos papas do passado no sentido de que as pessoas pensem em partilhar os bens da terra, preservando a criação, a qual se destina a melhorar a vida de todas as pessoas. 

Dorothy em Francisco

Irmã Dorothy concordaria plenamente com o Papa Francisco. Ela disse muitas vezes que o "povo do norte", referindo-se aos Estados Unidos e Canadá, estava consumindo muito mais do que seu quinhão dos bens da terra. Ela incluía o meio ambiente, em contraste com os outros povos. Pediu que adquirissem apenas o que precisassem, e não tudo que quisessem. Papa Francisco frequentemente falou da nossa cultura do excesso, onde as pessoas continuam adquirindo coisas que elas entendem como sinal de sua importância.

Como consequência da destruição do meio ambiente, o Papa Francisco relaciona os efeitos sobre a criação. Ele diz que estamos enfrentando uma poluição em nível sem precedentes (ele cita a China como um exemplo), acidificação do solo, resíduos não biodegradáveis e industriais, além dos resíduos nucleares. Ele expressa seu alarme ao dizer que a Terra, nosso lar, está começando a parecer uma montanha de sujeira. Mas o pior é que, para ele, parece haver uma perda generalizada de um senso de responsabilidade para com os nossos concidadãos, homens e mulheres das quais toda a sociedade civil depende. Todas essas situações, precisamente, a Irmã Dorothy percebeu na floresta amazônica.

 

IHU On-Line – Assim, considera irmã Dorothy a “Padroeira da Laudato Si’”?

Roseanne Murphy – Irmã Dorothy é certamente uma pessoa que poderia ser usada como exemplo de quem personifica tudo que o Papa Francisco descreve: como alguém que honra e ama o meio ambiente, que trabalhava em prol da justiça social. A tal ponto que, dez anos antes de seu assassinato, em 12 de fevereiro de 2005, ela já constava na "lista negra" de muitos proprietários de terra.

Ela sempre levava a Bíblia, mapas da terra concedida aos agricultores pobres, seu breviário e as leis fundiárias brasileiras. Acreditava que as leis seriam cumpridas. No ano anterior a seu assassinato, a Ordem dos Advogados do Brasil concedeu-lhe o "Prêmio de Direitos Humanos" por sua atuação em prol da justiça para os agricultores. Sua fé religiosa era muito forte, diariamente ela rezava por conseguir melhorar a vida das pessoas para quem ela trabalhava.

As obras de Dorothy Stang

Ela iniciou 23 escolas, criou programas de formação de professores, ajudou a fundar um sindicato de lavradores, um movimento de mulheres e foi capaz de resolver muitas disputas fundiárias em favor dos agricultores que tinham sido despojados pelos latifundiários. Dorothy começou a ensinar os agricultores a cultivar a terra sem destruir o solo e os encorajou a replantar as árvores que haviam sido derrubadas. Isso e muito mais pode ser enumerado como razão para designar a Irmã Dorothy Stang como Padroeira da Encíclica.

No entanto, o Papa Francisco já designou seu xará como Patrono da Encíclica, já que São Francisco igualmente se preocupou com "Irmão Sol e Irmã Lua" e encarava todas as criaturas como dádivas de Deus. Seja lá quem tenha sido ou seja designado padroeiro ou padroeira, a mensagem da encíclica é muito poderosa. Todas as pessoas fariam bem em lê-la com atenção e levá-la a sério. É um alerta para todos nós, e se nós a ignorarmos, fá-lo-emos sob risco próprio.

 

IHU On-Line - Depois da morte da irmã Dorothy, como a congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur vem trabalhando as questões ambientais? E como tem sido a atuação no norte do Brasil?

Roseanne Murphy – As Irmãs de Notre Dame de Namur têm um grupo internacional de Irmãs cujo ministério é manter todas as Irmãs (cerca de 2000) informadas sobre questões de justiça social. Para responder a esta questão, recorri à irmã Jane Dwyer , que está em Anapu, no Pará. É apenas um exemplo do que nossas irmãs estão fazendo. Nossa missão é educar os "pobres nos lugares mais abandonados." Embora existam muitas irmãs que trabalham nos EUA em escolas modernas, a nossa missão é informar e motivar os alunos sobre os pobres no nosso próprio país e no exterior.

Irmãs de Notre Dame atuam em sete dos nove continentes. Queremos que as pessoas saibam que "Deus é bom" e que tenham direitos humanos em função da justiça e da nossa esperança de paz. Além de nossas escolas, também temos clínicas na África e trabalhamos em áreas de pobreza, ajudando as pessoas a encontrar a ajuda de que necessitam.■

 

Leia mais...

- O grande levante social e religioso de Irmã Dorothy. Entrevista com Margarida Pantoja, publicada nas Notícias do Dia, de 12-02-2009, do sítio do IHU.

- Irmã Dorothy: mártir, profeta, mística e santa proclamada pelo povo. Entrevista com David Stang, publicada nas Notícias do Dia, de 01-03-2009, do sítio do IHU.

- Dorothy Stang. Os assassinos em liberdade no faroeste verde. Reportagem da Revista Época, reproduzida em Notícias do Dia, de 18-11-2011, no sítio do IHU.

- Irmã Dorothy, Anapu e Belo Monte. Entrevista com Felício Pontes Júnior, publicada em Notícias do Dia, de 09-02-2011, no sítio do IHU.

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