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João Vitor Santos | Tradução Luis Sander
A publicação da Encíclica Laudato Si’ foi cheia de expectativa por ser a primeira gestada integralmente no pontificado de Bergoglio. A curiosidade se dava em torno do que o Papa, tido por alguns como reformador, traria de novo acerca do meio ambiente. Para Christiana Peppard, professora de Teologia, Ciência e Ética, Francisco não propõe quebras. Segue apoiado na tradição social da Igreja Católica, mas vai além, estende e atualiza a abordagem de temas já tratados por outros papas. “O que é novo é que Francisco está dando sustentação e propondo um contexto de atenção unificador para a equidade e a ecologia e identificando causas fundamentais desses problemas, que, em sua perspectiva, são tanto estruturais quanto morais”, destaca em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Com esse movimento, na perspectiva da professora, Francisco aproxima ciência e religião. Assim, busca um entendimento dos problemas da degradação da Terra a partir da realidade contemporânea de forma ampla e interdisciplinar, analisando desde as causas fundamentais desses problemas. “Para o Papa — assim como para muitos especialistas em ética ambiental e social do presente —, os problemas da pobreza e da degradação ambiental estão ligados e remetem a estruturas mais amplas de economias que não estão orientadas para objetivos verdadeiramente morais, que sustentem a vida”, explica.
Ao longo da entrevista, Christiana recupera o conceito de Ecologia Integral. Entende que “tem a ver, fundamentalmente, com relações. O que Francisco quer propor é uma visão de ‘ecologia integral’ que atente para o bem-estar de todos os seres humanos, agora e no futuro, bem como do planeta do qual toda a vida depende”. O que culmina na ideia de conversão integral, que para professora é a revelação de “que está na hora de reconhecermos e assumirmos responsabilidade por proteger as relações e os aspectos do mundo e da sociedade dos quais dependem a dignidade da vida humana e toda a vida na terra”.
Christiana Peppard é professora de Teologia, Ciência e Ética na Fordham University, universidade jesuíta de Nova Iorque. Seus projetos incluem a análise ética dos modos de valorizar fontes naturais de água em uma era de globalização econômica e construções dos conceitos da natureza e da natureza humana. Isto tendo como base as representações científicas, teológicas e filosóficas da materialidade. Entre suas publicações, estão Just Water: Theology, Ethics, and the Global Water Crisis (Maryknoll: Orbis Books, 2014) e “Fresh Water and Catholic Social Teaching: A Vital Nexus” (Journal of Pensamento Social Católico, vol. 9, iss. 2 (Verão 2012): 325-352). O artigo foi vencedor do Prêmio 2013 Catherine Mowry LaCugna da Sociedade Teológica Católica da América.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como Bergoglio articula a ideia de Crise Ecológica com a complexidade dos desafios contemporâneos? Como isso se evidencia na Laudato Si’?
Christiana Peppard - Laudato Si’ é claramente moldada por uma abordagem do tipo “ver-julgar-agir”, ou pelo que os jesuítas chamam de “ação-reflexão-ação”. Tomando como seu ponto de partida os problemas da degradação de “nossa casa comum”, a Encíclica descreve a realidade contemporânea e depois passa a analisar as causas fundamentais desses problemas. Para o Papa — assim como para muitos especialistas em ética ambiental e social do presente —, os problemas da pobreza e da degradação ambiental estão ligados e remetem a estruturas mais amplas de economias que não estão orientadas para objetivos verdadeiramente morais, que sustentem a vida. Na Laudato Si’, essas ideias se tornam claras através da análise que o Papa faz do problema.
Assim, ele apresenta sua interpretação bíblica da história de Caim e Abel e do que significa ser “guarda do irmão”, o que estende ao planeta, dizendo que as interpretações cristãs que justificaram a pilhagem do mundo natural são simplesmente incorretas e precisam ser corrigidas. Em capítulos subsequentes, o Papa trata da economia e da tecnologia e dos problemas de um “antropocentrismo moderno” que ignora nossa dependência fundamental do mundo natural. O capítulo quatro expõe sua visão positiva, moral da “ecologia integral” para o florescimento de todas as pessoas e da vida. Os dois últimos capítulos conclamam à colaboração internacional e — o que é o mais importante — a uma contínua educação e conversão espiritual e ecológica.
IHU On-Line - Qual abordagem a Encíclica oferece sobre a relação entre Ciência e Religião? Em que medida essa articulação se apresenta como alternativa ao tecnocentrismo e à compartimentação do conhecimento no meio científico?
Christiana Peppard - Laudato Si’ é um documento fascinante no tocante à religião e à ciência. Ela recorre aos ensinamentos consagrados da Igreja segundo os quais a ciência e a fé não estão em contradição e diz duas coisas. Em primeiro lugar, a fé não deveria contradizer o que a ciência identifica como verdadeiro. Isso implica que as interpretações da Escritura podem mudar — uma ideia que o próprio Francisco exige em relação ao “antropocentrismo moderno”! — e isso é muito importante. Mas, em segundo lugar, Francisco destaca, com razão, que a ciência, em e por si mesma, não tem uma bússola moral suficiente. É preciso haver fontes de sabedoria e princípios naturais reunidos a partir de culturas e tradições religiosas para ajudar a dar suporte às compreensões humanas da finalidade da ciência, de como ela deveria ser praticada e do que significa para o comportamento humano.
A concepção de Francisco — e eu concordo com ela — parece ser de que sem parâmetros morais tanto os mercados quanto a capacidade tecnológica se tornarão “fins em si mesmos”. No entanto, devem, em vez disso, ser considerados meios para fins que estejam orientados para o florescimento de todas as pessoas e da vida no planeta.
IHU On-Line - Como compreender os conceitos de natureza e natureza humana desde as perspectivas teológicas, filosóficas e científicas? Como a Laudato Si’ articula esses conceitos?
Christiana Peppard - Essa é uma pergunta muitíssimo ampla, mas importante. Enquanto está claro que, na visão do Papa, a humanidade criou uma autocompreensão caracterizada pela hybris (“natureza humana” como maximizadores racionais do lucro, etc.) que implica uma determinada abordagem da “natureza” (como um recurso a ser explorado) nos últimos 300 anos, ele pensa que ambas são interpretações excessivas. Sim, a natureza humana inclui os poderes da criatividade e da inovação, e a tecnologia é um resultado disso. Sim, existem justificativas bíblicas para o “domínio” sobre a terra e suas criaturas.
O que o Papa quer salientar é que as formas como elas foram interpretadas não são necessariamente acuradas — não conduzem ao bem-estar da maioria das pessoas nem do planeta — e que de fato há outros modelos de como entender a natureza e de como ser humano. Precisamos resgatá-los e reintroduzi-los em nossa educação espiritual e ecológica, sugere Francisco. Para esse fim, seu principal exemplo é São Francisco , naturalmente.
A questão é fascinante também porque, embora ele esteja disposto a reafirmar uma ordem natural do mundo, esse texto também está repleto de evidências de que o Papa aceita a mudança — mudança ambiental, mudança social, mudança econômica, mudança cultural, mudança política. Como esses conceitos de ordem natural e mudança endêmica combinam, essa é de fato uma questão muito fascinante que os pesquisadores vão explorar durante muito tempo. Com efeito, ela é um dos mais interessantes tópicos de discussão na filosofia, na teologia e na ciência atualmente, em minha opinião.
IHU On-Line - Que caminhos a religião, e a teologia em específico, podem trazer para enfrentarmos a crise mundial da água?
Christiana Peppard - A maioria das pessoas não sabe que a Igreja Católica vem defendendo um direito humano à água desde 2003, e que o Compêndio da Doutrina Social da Igreja aborda o tema de um direito humano fundamental à água (cf. capítulo 10). Esse tema também aflora no primeiro capítulo da Encíclica, quando Francisco avalia qual é o estado de nossa casa comum. Nos parágrafos 28 a 30, ele salienta que a escassez de água limpa e potável está aumentando e que o acesso à água é um direito vital, fundamental que é essencial para a realização de todos os outros direitos.
A Encíclica é muito crítica em relação à privatização e mercantilização da água especialmente na medida em que afetam os pobres e beneficiam primordialmente empresas multinacionais. A Igreja Católica é um aliado muito importante para muitas organizações no mundo todo em termos da defesa de um direito à água (que foi reafirmado pela ONU em 2010), e aguardo com expectativa para ver como a Igreja integrará essa obrigação social em suas missões de caridade e de justiça nas próximas décadas. Creio que as organizações religiosas e as que lutam pela justiça ambiental são claramente líderes em temas como o direito à água.
IHU On-Line - A encíclica apresenta a perspectiva de que, enquanto os poderes econômico e tecnológico têm melhorado as condições de vida de milhões de pessoas, outros são alijados dessa possibilidade. De onde vem essa dinâmica? Quais são os limites e possibilidades?
Christiana Peppard - Como muitos economistas ecológicos, o Papa Francisco percebe que uma “maré montante” não eleva necessariamente todos os barcos. Ele não é contra o desenvolvimento, mas é contra o desenvolvimento que coloca os pobres e o planeta em perigo a fim de beneficiar uma pequena proporção da humanidade. Sim, milhões de pessoas foram tiradas da pobreza, e nós deveríamos comemorar isso. Mas essas comemorações não deveriam obscurecer o fato de que muitas, muitas pessoas tiveram negado o acesso a esses benefícios ou foram impactadas negativamente, que sua economia ou seus meios de vida ou suas terras foram destruídas pela dinâmica econômica global.
Assim, o Papa chama a atenção para uma métrica econômica desequilibrada, para que o desenvolvimento possa ser verdadeiramente “integral” e “autêntico”. Na verdade, a proeminência dessas ideias no pensamento social católico remonta ao Papa Paulo VI em Populorum Progressio , e elas foram tratadas constantemente até mesmo por Bento XVI e João Paulo II .
IHU On-Line - Para muitos, o Papa Francisco assume um papel político no debate das questões climáticas de forma única, como nenhum outro chefe de estado. Como isso deve repercutir em termos de políticas internacionais? Quais devem ser os impactos nos acordos e encontros como a COP 21 ?
Christiana Peppard - Mesmo antes do encontro da COP em Paris, em dezembro, ficará claro como Francisco pretende usar a Encíclica por sua alocução ao Congresso americano e à ONU . Como líder que é chefe de um Estado muito pequeno, mas também de uma Igreja muito grande, o Papa oferece uma voz moral que não tem paralelo em termos de alcance. Creio que veremos o Papa explicar que o moral é social, e que o social é político: nós temos uma responsabilidade para com nossos vizinhos globais de agir em relação a questões como a mudança climática, e de fazer isso agora. Ele não vai oferecer plataformas ou propostas específicas em termos de políticas, mas acho que vai falar com franqueza. Ele quer ver as pessoas cooperarem em prol do bem comum, agora e no futuro.
IHU On-Line - Como a Encíclica tem repercutido nos ambientes político, acadêmico e religioso nos Estados Unidos? De que forma a carta impactará na visita do Papa Francisco ao país?
Christiana Peppard - Muitos políticos nos Estados Unidos têm ignorado convenientemente a ideia da responsabilidade moral global nos âmbitos econômico e ambiental. O Papa Francisco está questionando essa suposição, e isso é muito importante. Estou interessada em ver como sua visita aos EUA vai recorrer à Laudato Si’ e, em particular, que mensagem ele vai transmitir ao Congresso.
Muitas pessoas — não apenas católicas — nos EUA estão interessadas no documento, o que é muito animador. A Encíclica está motivando muitas boas conversas. Isso se deve, em parte, ao fato de estar alinhado com desenvolvimentos importantes que estão ocorrendo na economia ecológica, na justiça ambiental e no ativismo. E, em parte, deve-se ao fato de esse Papa ser uma figura respeitada até mesmo nos EUA.
IHU On-Line - Encíclicas de pontífices anteriores já trataram de temas sociais e econômicos e são, inclusive, recuperados por Francisco na Laudato Si’. Qual a diferença de Francisco com relação aos seus antecessores no tratamento desses temas?
Christiana Peppard - Francisco está dizendo algo novo e, ao mesmo tempo, não está. Em questões profundamente arraigadas na tradição social católica — como, por exemplo, o direito à água, a noção de hipoteca social sobre a propriedade privada, a realidade da mudança climática e a obrigação internacional, os limites do mercado —, Francisco está ampliando e atualizando o trabalho importante feito por seus predecessores desde 1967. Então, em certo sentido, isso é “velho”. Mas o que é novo é que Francisco está dando sustentação a isso e propondo um contexto de atenção unificador para a equidade e a ecologia e identificando causas fundamentais desses problemas, que, em sua perspectiva, são tanto estruturais quanto morais. E, é claro, Francisco tem seu estilo retórico próprio e sua linguagem poético-pastoral. Isto, até mesmo em uma encíclica, lhe possibilita associar, de modo singular, críticas estruturais ou filosóficas com realidades do cotidiano em uma linguagem acessível. Isso é novo para uma encíclica.
IHU On-Line - Do que se trata a conversão ecológica proposta por Francisco? Como podemos compreendê-la?
Christiana Peppard - Ecologia tem a ver, fundamentalmente, com relações. O que Francisco quer propor é uma visão de “ecologia integral” que atente para o bem-estar de todos os seres humanos, agora e no futuro, bem como do planeta do qual toda a vida depende. Na medida em que os seres humanos deixaram de manter esse marco moral como orientação para nossas ações, nós falhamos. Recorrendo às palavras do Patriarca Bartolomeu — a quem Francisco cita nas primeiras páginas da encíclica —, ignorar essas relações e responsabilidades fundamentais para com Deus, nossos próximos e o planeta é cometer uma espécie de pecado ecológico.
Ecologia, aqui, é um termo mais amplo do que “meio ambiente” (embora o inclua). Esse termo se refere às relações fundamentais das quais nossa vida depende. Conversão ecológica significa, portanto, que está na hora de reconhecermos e assumirmos responsabilidade por proteger as relações e os aspectos do mundo e da sociedade dos quais dependem a dignidade da vida humana e toda a vida na terra. Isso não é parecido com atos simples como reciclar (embora isto também seja importante). Significa uma reorientação de nossas prioridades para reconhecer que o que significa ser humano é, em última análise, uma questão moral, teológica e corporificada, e que tudo — e todos e todas — está conectado. ■
Leia mais...
- “A cosmologia sem ecologia é vazia. Nosso futuro está em jogo. Existe algo mais importante?”. Reportagem publicada no sítio National Catholic Reporter, de 21-11-2014, reproduzida em Notícias do Dia, no sítio do IHU, de 25-11-2014;
- Visita do Papa aos EUA deve atiçar a batalha do clima. Reportagem publicada pelo The Hill, em 25-01-2015, reproduzida em Notícias do Dia, no sítio do IHU, de 27-01-2015.