FECHAR
Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).
João Vitor Santos e Leslie Chaves | Tradução Ramiro Mincato
O texto da Encíclica, não só por tratar das questões ambientais, mas principalmente por se propor a cumprir essa missão a partir de uma visão complexa sobre as diversas facetas que compõem o debate sobre o tema, amplia sua abrangência. Segundo Christian Albini, a Laudato Si’ evidencia a realidade de que as pessoas não são ilhas, elas fazem parte de um contexto maior, o qual, com frequência, é retratado de forma fragmentada, porém “as propriedades das partes só podem ser entendidas à luz da dinâmica do todo”. Conforme afirma o teólogo em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “para compreender essa abordagem, é preciso refletir, no campo da ciência e da filosofia da ciência, sobre a superação do reducionismo cartesiano e do mecanicismo newtoniano”.
Albini ressalta ainda que a Encíclica reflete o propósito do Papa Francisco de conduzir uma “Igreja em saída”. O teólogo aponta que o documento não parte de uma preocupação intraeclesial, mas sim de uma urgência histórica, se inserindo na “conversa do mundo”. Conforme o estudioso diz, o conceito que está no cerne da Laudato Si’, a Ecologia Integral, “não é uma espécie de “ecologia católica” alternativa ou concorrente, mas uma proposta de visão de fé, com sua contribuição específica às questões ecológicas, que são questões de toda a humanidade”. Nesse sentido, Albini defende que esse ponto de vista sistêmico assume uma dimensão laica, pois é “uma abordagem partilhável por aqueles que não se colocam em perspectiva religiosa”.
Christian Albini, teólogo leigo italiano, é formado em Ciências Políticas pela Università degli Studi di Milano e licenciado em Ciências Religiosas pelo Istituto di Corso Venezia. É membro da Associação Teológica Italiana, fez parte da redação da revista Aggiornamenti Sociali e é sócio-fundador da Associação Viandanti. Atualmente, na diocese de Crema, na Itália, integra a presidência do Conselho Pastoral, colabora com a Cáritas, a pastoral familiar e o Centro Diocesano de Espiritualidade. Também mantém o blog Sperare per Tutti. Entre as suas publicações mais recentes estão L'umanità di Gesù. Tra storia e fede (Seattle: eBook Kindle, 2015), La conversione del cristiano e della chiesa (Seattle: eBook Kindle, 2014), Guida Alla Lettura Dell’Evangelli Gaudium (Seattle: eBook Kindle, 2013) e Gesù: un insegnamento dentro la vita. Introduzione al Vangelo di Matteo (Letture bibliche Vol. 1) (Seattle: eBook Kindle, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o conceito central da Laudato Si’ e como é articulado?
Christian Albini - A Encíclica Laudato Si’ é de grande interesse tanto pelo conteúdo quanto pelo método. É raro que um Papa dedique um texto magisterial desta magnitude a questões não ligadas diretamente à pregação tradicional da Igreja. Alguns lembraram da Pacem in Terris de João XXIII , e penso que a observação é correta. Em ambos os casos, estes documentos não partem de uma preocupação intraeclesial, mas do confronto com uma urgência histórica, entrando na "conversa do mundo". A Encíclica é muito importante naquilo que o Papa Francisco chama de "Igreja em saída": não introversa, não voltada à comunicação autorreferencial e solipsística. Claro, os documentos sozinhos não adiantam, se não forem seguidos de compromissos e escolhas concretas. Porém, temos aqui um fundamento importante.
Do ponto de vista da metodologia, parece-me importante que a Encíclica não aborde o tema por meio do procedimento clássico na área da moral, que penso inadequado, isto é, partir de um conceito metafísico de natureza e dele deduzir as consequências e prescrições. A Laudato Si’, como veremos pouco a pouco, adota um paradigma relacional mais coerente com os dados detectados, permitindo melhor interpretação do dado histórico e da sua complexidade.
Isso nos conduz ao conceito central da Encíclica, resumido no que o texto chama de “Ecologia Integral”, introduzido no nº 15 (LS) como “ecologia que nas suas diversas dimensões integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia”. Seu fundamento teológico é explicado no segundo capítulo, enquanto sua articulação é exposta no capítulo quatro.
Se a ecologia “estuda as relações entre organismos vivos e meio ambiente no qual se desenvolvem”, a Ecologia Integral, sem excluir este, possui um horizonte mais amplo, pois abraça o cosmos e o ambiente, a casa comum, como criação e, portanto, em sua relação com Deus. Não é uma espécie de “ecologia católica” alternativa ou concorrente, mas uma proposta de visão de fé, com sua contribuição específica às questões ecológicas, que são questões de toda a humanidade.
Chamo a atenção! A Ecologia Integral possui uma dimensão “laica”, no sentido de uma abordagem partilhável por aqueles que não se colocam em perspectiva religiosa. Pensemos, por exemplo, como as carestias e problemas alimentares tiveram consequências sobre muitos conflitos africanos e do Oriente Médio. É necessária uma visão de conjunto, poderíamos dizer "de sistema". Na Encíclica, de fato, a Ecologia Integral se articula como:
- Ecologia ambiental, econômica e social (LS, nº 138-142);
- Ecologia cultural, que lida com o histórico, artístico e cultural (LS, nº 143-146);
- Ecologia da vida cotidiana, o que afeta a qualidade de vida (LS, nº 147-155).
Os três níveis são unificados pelo princípio do bem comum, são critérios de orientação, a começar pelo respeito dos direitos humanos, e são assumidos numa perspectiva de justiça intergeracional, hoje obrigatória. No momento em que nossa capacidade de ação, enquanto seres humanos, é capaz de afetar irreversivelmente o ambiente e até mesmo destruí-lo, não podemos não levantar o problema da responsabilidade para com as gerações que virão depois da nossa!
IHU On-line - Como compreender a ideia de "Ecologia Integral" e de que forma ela se articula com os temas que vão para além do meio ambiente?
Christian Albini - Para compreender essa abordagem, é preciso refletir, no campo da ciência e da filosofia da ciência, sobre a superação do reducionismo cartesiano e do mecanicismo newtoniano. Penso, por exemplo, o que escreveu Fritjof Capra nos livros O Ponto de Mutação ou L’universo come dimora (no qual dialoga com alguns teólogos). A reflexão de Capra tem aspectos questionáveis, do ponto de vista cristão, mas, em linha de fundo, ajuda a entender o pensamento sistêmico da Encíclica. Isto expressa bem o que quero dizer.
As propriedades das partes só podem ser entendidas à luz da dinâmica do todo. Em última análise, as partes não existem. O que chamamos “parte” é apenas a configuração de uma rede inextricável de relacionamentos. É por isso que não se pode pensar ecologia como algo independente da economia, da política, da cultura e do estilo de vida cotidiano. Não somos ilhas, vivemos dentro do todo. É o que nos diz a Encíclica, de outro modo.
“Quando falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela, fazemos parte dela e compenetramo-nos. As razões pelas quais um lugar se contamina exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental procurar soluções integrais, que consideram as interações dos sistemas naturais entre e si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS, nº 139).
São pouco sensatas as críticas segundo as quais a Encíclica se ocupa de coisas marginais, no que diz respeito à Igreja e à sua doutrina. A “vida” é por acaso marginal? As ameaças à vida determinadas em nossas escolhas políticas, econômicas e de consumo são talvez marginais? Estas são ameaças à vida no planeta — recordemos que, segundo os cientistas, estamos vivendo a sexta “transição biótica”, a sexta extinção em massa, induzida e acelerada pelo comportamento humano — e são ameaças à vida humana, sobretudo dos mais pobres, dos últimos, dos indefesos.
Isto não pode ser considerado marginal, quando cremos em Deus que derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes (cf. Evangelho de Lucas 1,52), Deus que envia Jesus para trazer a boa nova aos pobres e aos cativos a libertação (cf. Evangelho de Lucas 61,2; e 4,18). Economia, política, cultura, estilos de vida não são eventos profanos, estranhos ao discurso religioso. Falamos aqui de uma religiosidade que abraça toda a vida humana, consciente das relações que interligam todos os âmbitos da existência pessoal e social.
IHU On-Line - De que forma é apresentada a crítica ao antropocentrismo na Laudato Si’? E como o conceito de tecnocentrismo aparece no documento?
Christian Albini - Uma das críticas dos conservadores de certos centros de poder econômico é que o documento vai contra a modernidade e o progresso, está virado para trás, mas se trata de uma leitura não confiável, sem nenhum fundamento no texto. Isto pode ser visto na crítica ao antropocentrismo e ao tecnocentrismo no terceiro capítulo. O tema de fundo é a raiz humana da crise ecológica.
Os problemas ambientais são causados pelo comportamento do ser humano, e este possui determinada visão de si e da sua relação com o mundo. Há alguns anos, Alberto Melucci, sociólogo italiano dos processos culturais, havia refletido sobre a intensidade da transformação que vivemos e que determinamos, transformação que incide sobre a própria natureza.
O primeiro paradoxo que somos obrigados a olhar, hoje, é o da produção da reprodução. Tanto a manutenção da ordem biológica como da ordem social, na vida individual e coletiva, dependem de escolhas e decisões humanas, e não mais de leis fatalistas que as culturas do passado vinham, de tempos em tempos, atribuindo à vontade divina, à natureza ou à história.
É a sociedade, são as relações entre os homens, frágeis produtores de sentido, a decidir a manutenção e o desenvolvimento das espécies e do seu ambiente. O que podemos reproduzir de nós mesmos e do mundo, o que pretendemos manter ou mudar da natureza que nos constrói e rodeia, mas também da nossa história individual e coletiva? É esta a pergunta que a sociedade planetária não pode mais evitar, mas que, na verdade, já evitou, infelizmente, com níveis de consciência e de controle sobre as escolhas, muito mais limitados do necessário, pelo tamanho do desafio .
A própria natureza humana torna-se objeto de intervenção e manuseio, e com isso nossa liberdade tem a ver com o mundo exterior e também com nós mesmos, com possibilidades, sem precedentes na história, de pôr fim à vida humana no planeta.
Isso tudo remete à questão da técnica, da capacidade humana de transformar a realidade, em base a procedimentos racionais codificados e padronizados, que na era da tecnociência alcançou poder inimaginável. Com seu sucesso, a técnica torna-se, por assim dizer, "o ambiente" da atividade humana: de instrumento torna-se fim, e ultrapassa nossa capacidade de dar sentido ao seu operado. O único sentido que tem chance de permanecer é o da lógica do mais forte, mas com o paradoxo de que, no final, a técnica poderá destruir também aqueles que dela usufruem.
São questões levantadas no campo da filosofia, especialmente alemã, por pensadores como Heidegger e Jaspers, estimulados pela reflexão de Nietzsche sobre o niilismo. Na teologia, o primeiro a lidar diretamente com essas questões foi, de fato, o alemão Romano Guardini, em obras como Lettere dal Lago di Como (Brescia: Morcelliana, 1993) e La fine dell’epoca moderna. Il potere (Brescia: Morcelliana, 1993), esta última citada várias vezes na Encíclica.
Guardini, no coração do século XX, estava ciente de que a natureza se inseria cada vez mais no mundo do pensamento e do desejo, artificializando-a e prejudicando também a si mesmo. Para lidar com as forças irrompentes da tecnologia, exige-se uma base de inteligência nova e liberdade para obviar que este poder não se direciona unicamente à utilidade. A referência a esta posição de Guardini é explícita em Laudato Si’, nº 105.
O parágrafo seguinte resume a questão da técnica em relação à situação de emergência ecológica: “Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a ‘espremê-lo’ até o limite e para além desse”.
A Encíclica não é contra o homem, nem contra a tecnologia, ao contrário, convida a alegrar-se pelo progresso que pode trazer verdadeiro desenvolvimento da qualidade de vida e da beleza do nosso mundo (cf. LS, nº 102-105). Mas para isto tem que estar integrada na lógica do bem comum e das relações que conectam todos os seres humanos entre si e com o ambiente. O bem da parte é inseparável do bem do todo. O antropocentrismo, ao contrário, isola a parte e desequilibra as relações.
IHU On-line - Em que medida o conceito de ecologia se conecta com teologia? Como esta relação é apresentada no documento? Como teses teológicas e teses científicas dialogam na Encíclica, de modo a não serem antagônicas?
Christian Albini - A perspectiva ecológica da Encíclica tem seu fundamento na teologia. Na base está a recuperação da relação de Deus com o mundo criado, e não com a pessoa humana isoladamente. Assim, a história da salvação é a história da salvação cósmica, a encarnação do Filho é a encarnação no cosmos, a Páscoa é "nova criação" também para a natureza inteira que geme e sofre em dores de parto (cf. Romanos 8,22).
Uma abordagem deste tipo foi, por muito tempo, reservada a poucas figuras isoladas e até mesmo malvistas. Penso, por exemplo, no jesuíta Pierre Teilhard de Chardin , em seu conceito de “Cristo Evoluidor”, inspirado na percepção da dinâmica impulsionadora do mundo natural, reinterpretada à luz da fé cristã, que entrelaçou visão teológica e visão cosmológica. Não por acaso Papa Francisco o lembra na nota do parágrafo 83 da Encíclica, que diz: “A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal. E assim juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente em que Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao seu Criador”.
Este olhar orienta-se para o futuro, mas parte do presente, da responsabilidade humana de colaborar na obra da criação e da redenção, dentro de uma liberdade que pode até mesmo contrastá-la. A Laudato Si’ colhe em cheio o desafio do diálogo entre teologia e ecologia: fazer voltar a resplandecer a relação da fé cristã com a terra em seu vulto luminoso, redescobrindo, em toda sua densidade, a promessa ecológica que ela traz consigo. O Deus das Escrituras é, naturalmente, o Santo, o Totalmente Outro do mundo, mas é também aquele que nunca é sem o mundo, numa relação fundante, manifestada em toda a sua densidade na Encarnação e na Páscoa .
Sempre volta o paradigma relacional, próprio desta Encíclica, onde toda a realidade é lida como rede de conexões, com Deus no centro e no cume. É um verdadeiro e próprio paradigma teológico correspondente à essência da narrativa bíblica, que deveria substituir o sistema metafísico ainda presente, de tipo essencialista, baseado numa hierarquia de entes e numa concepção fixista. Em suma, a Encíclica contém um forte apelo para repensar uma inteira abordagem teológica.
Neste contexto, a abordagem teológica da ecologia pode ser interpretada na chave da comunhão do homem com o meio ambiente e com Deus, a partir da marca trinitária que toda a realidade contém dentro de si (cf. LS, nº 239). O cosmos não é apenas o “background” da ação de Deus e da história da salvação, mas está envolvido completamente.
As Pessoas divinas são relações subsistentes, e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma teia de relações. As criaturas tendem em direção a Deus, e, por sua vez, é próprio de todo ser vivo tender para outra coisa, de tal modo que, dentro do universo, podemos ver inúmeras relações contínuas tecendo-se secretamente. Isto não só nos convida a admirar as muitas ligações existentes entre criaturas, mas também nos leva a descobrir a chave para nossa própria realização. Na verdade, a pessoa humana tanto mais cresce, amadurece e se santifica, quanto mais entra em relação, quando sai de si mesma para viver a comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas (LS, nº 140).
Compreende-se, sob esta mesma luz, a relação da Encíclica com a ciência, estruturada segundo uma clara distinção epistemológica, porque a teologia se ocupa com questões de sentido e não com a leitura do “livro da natureza”. A ciência não se subordina a uma visão metafísica preexistente, por isso não há necessidade de questionar sua autonomia. O discurso teológico encontra-se em outro plano, aquele do sentido, e não o do conhecimento dos fenômenos e das leis que os regem. A Laudato Si’ está livre das preocupações culturais, econômicas e políticas que instrumentalizam o dado científico em prol de determinados interesses.
Penso na questão do aquecimento global, um dos temas que suscitaram a “crítica preventiva” ao texto, também de alguns políticos republicanos nos Estados Unidos (cf. LS, nº 25-26). O fato de que vários deles se apresentem como fervorosos e cristãos e também católicos, diz muito sobre como certa mentalidade, que reflete um sistema sociopolítico com sua ideologia, tenha se infiltrado em parte da cultura cristã, identificando-se equivocadamente com ela.
Há uma ideologia capitalista que nega qualquer evidência de aquecimento global, porque perturba seus dogmas econômicos e os que dele se beneficiam. A abordagem teológica da Encíclica está, ao contrário, livre dessas restrições.
IHU On-line - De que forma a experiência mística de São Francisco de Assis é apropriada pela Laudato Si’? O que esse movimento de inspiração no “Cântico do Irmão Sol”, ou “O Cântico das criaturas”, diz sobre a relação do homem com o planeta?
Christian Albini - Laudato Si’ observa que “Jesus viveu em harmonia com a criação, para o espanto dos outros: ‘Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem’ (Evangelho de Mateus 8,27)”. Como Jesus articula essa concepção de pertencer ao planeta, e não colocar-se em seu confronto como dominador?
É a primeira Encíclica que traz um título em italiano e não em latim, tomado exatamente do início do cântico de São Francisco. A presença do Santo é constante em toda a Encíclica. A mística de Francisco expressa comunhão com Deus e com a criação, o lado teológico e espiritual da ecologia integral, apresentada pelo Papa.
No nº 11 há uma citação da Legenda Maior de São Boaventura , discípulo e biógrafo de São Francisco, que ajuda a compreender como o sentido de comunhão vivido por ele se expressa na relação com todas as criaturas.
Francisco, considerando que todas as coisas têm origem comum, sentia-se cheio de uma piedade ainda maior, e chamava as criaturas, por menores que fossem, pelo nome de irmão e irmã.
O Cântico do Sol , em síntese, é uma espécie de compêndio poético e espiritual da visão trinitária da Encíclica e de sua perspectiva ecológica integral. Claro, não podemos identificar Francisco de Assis com tudo o que está escrito na Laudato Si’, mas há uma continuidade básica que ajuda a entender como os pensamentos e temas realmente não são estranhos à tradição cristã. Apesar da teologia e do Magistério tê-los subestimado, estão ligados por meio de um fio condutor invisível aos diferentes períodos da história da Igreja.
Francisco de Assis é exemplar em sua proximidade a Jesus, em querer viver o Evangelho sine glossa, e, sendo uma espécie de “homem universal”, realiza as instâncias antropológicas que atravessam as fronteiras culturais: simplicidade, pobreza, fraternidade com os outros e com o cosmos, humildade, liberdade, espiritualidade simples...
Também antes de Francisco a comunhão entre Deus, homem e mundo estava presente na visão cristã. Sobretudo, na liturgia. Penso na “liturgia cósmica” de Máximo, o Confessor, retomada recentemente pelo eminente teólogo ortodoxo Ioannis Zizioulas (cf. Il creato come Eucaristia [Biella: Qiqajon,1994]), que não por acaso interveio na apresentação da Encíclica. Deve-se lembrar também “A Missa sobre o Mundo”, de Teilhard de Chardin, em que toda a criação é consagrada. Todas estas referências, que exigiriam um grande desenvolvimento, reenviam ao fato de que nos sinais e gestos litúrgicos reconhece-se a integração entre Deus, homem e mundo, que precede a conceitualização teológica. Isso porque a liturgia, em suas múltiplas linguagens, é uma verdadeira “teologia em ato”, uma suma “prática” da fé cristã.
O que a liturgia celebra não é, porém, arbitrário, remonta ao próprio Jesus, ao seu ser homem novo e princípio da nova criação. Lembra-nos do Catecismo da Igreja Católica (LS, nº 281): “É por isso que as leituras da Vigília Pascal, celebração da criação nova em Cristo, começam pelo relato da criação; da mesma forma, na liturgia bizantina, o relato da criação constitui sempre a primeira leitura das vigílias das grandes festas do Senhor. Segundo o testemunho dos antigos, a instrução dos catecúmenos para o batismo segue o mesmo caminho”.
Se pensamos na experiência humana de Jesus, vemos como estava atento às realidades do mundo natural: os lírios do campo e as aves do céu, mas também o dourar dos campos de trigo, fruto do trabalho humano. Exatamente, pão e vinho são consagrados na Última Ceia, frutos da terra e do trabalho, sinais de pessoas vivendo em harmonia com a natureza, transformando-a com seu trabalho, sem feri-la ou desvirtuá-la. Tudo é dom de Deus, tudo para dar graças a Deus, isto é, “fazer Eucaristia”. Sim, estava já presente em germe no estilo de vida de Jesus, o quanto encontramos em Francisco de Assis e na Encíclica.
IHU On-Line - Que conceitos centrais na “teologia do Papa Francisco” o senhor percebe presentes na Laudato Si’? Como o senhor avalia o tratamento dado às questões de gênero na Encíclica (especificamente em 155, dentro do subtítulo “Ecologia da vida Cotidiana”)?
Christian Albini - No texto há certamente expressões e conceitos típicos da linguagem do Papa: penso na “cultura do descartável” e na “globalização da indiferença”. No geral, porém, todo o documento pode ser considerado uma extensão, em escala planetária e ambiental, da centralidade da misericórdia, característica do seu Magistério.
Com a Laudato Si’ temos em mãos elementos suficientes para uma primeira reconstrução da perspectiva deste pontificado. A pedra angular é a fé em Deus e em seu amor misericordioso, como evidenciado na Encíclica Lumen Fidei e, especialmente, na Bula de Proclamação do Jubileu Misericordiae Vultus (visto que o primeiro texto é principalmente obra de Bento XVI). A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium representa o aspecto eclesiológico, ad intra: a boa notícia da misericórdia desperta a alegria que é impulso missionário, na perspectiva de uma “igreja em saída”, colocada em estado de renovação e reforma. Com a Encíclica Laudato Si’ e na sua proposta de ecologia integrada, vemos o aspecto mais político e social numa projeção ad extra.
No que diz respeito às questões de gênero, faço notar que o Papa está preocupado em indicar a positividade da diferença sexual, mas não aborda explicitamente a chamada “teoria do gênero”, que ele mencionou em apenas duas ou três ocasiões, eu acho. O furor polêmico e a frequência martelante com a qual na Itália certos círculos católicos abordam a questão não parecem pertencer-lhe. Além disso, porque há muitas abordagens diferentes para o gênero e seria útil fazer um esclarecimento sobre o assunto, uma vez que, parece-me, fala-se muitas vezes de forma inadequada. O fato de se distanciar das teorias mais radicais, obedientemente, não nos deve isentar, como católicos, de outro dever igualmente forte: aquele de refletir sobre como uma certa cultura, inclusive religiosa, tenha favorecido a subordinação das mulheres aos homens, em certas representações que alteram a realidade.
IHU On-Line - Qual é a origem da compreensão de que o cristianismo tem uma visão de homem somente antropocêntrico e dominador? Como, na Encíclica, o Papa sugere uma revisão dessa visão? A Encíclica desenvolve um dado de fé de que Deus criou todas as criaturas. Como entender essa ideia de Deus, o Criador? Ele só domina a criação, ou faz parte dela?
Christian Albini - A acusação contra o cristianismo de ter tendência antropocêntrica e dominadora remonta aos anos sessenta e setenta do século passado. Por um lado, a ascensão da tecnociência e o seu impacto sobre o meio ambiente fugiram do debate teológico daquele tempo. A teologia de matriz tomista, de estrutura metafísica, era estranha a estes temas, e as novas teologias estavam focadas mais no homem. Não por acaso, falava-se de "virada antropológica". O "esquecimento" da teologia em relação à questão ecológica foi favorecido também pelos estudos bíblicos da época, orientados a enfatizar a demitização do mundo das Escrituras, mais do que sublinhar a marca divina nele.
A este dado, mais propriamente teológico, adicionaria a assimilação da cultura capitalista, focada na técnica, pelo catolicismo sobretudo anglo-saxão, como denunciado pela voz profética, e fora do coro, do monge Thomas Merton . No momento histórico do pleno desenvolvimento da cultura ecológica, o silêncio das Igrejas cristãs sobre estes temas, e até mesmo de parte dos teólogos considerados "progressistas", favoreceu a acusação dirigida ao cristianismo. Penso em Harvey Cox , para quem o mundo estava totalmente entregue à criatividade humana. Em algumas posturas eclesiais daqueles anos se falava tranquilamente da vocação do homem para controlar e subjugar o mundo. A referência bíblica mais ou menos explícita era da ordem divina de dominar a terra (cf. Gênesis 1,28; 2,20).
Somente alguns poucos discordavam desta colocação. O ponto de viragem ocorreu, entre os anos oitenta e noventa, com a teologia da libertação e, especialmente, a uma série de obras de Leonardo Boff, que entretecia o grito dos pobres ao grito da Terra violentada pela ganância humana. Entretecia a visão da Trindade com a mística de Francisco de Assis e sua atenção aos "laços que unem todos os seres naturais e culturais" (BOFF, Leonardo. Ecologia, mondialità e mística. L'emergenza di un nuovo paradigma [Assis: Cittadella Editrice, 1993, p. 17-18]).
A Encíclica, na verdade, vai reverberar muitos ecos do pensamento ecológico de Boff, cujos escritos parecem ter sido amplamente consultados pelo Papa Francisco e por seus assessores na redação. Se pensarmos na perspectiva da ecologia integral e sua relação com a teologia, não podemos deixar de reconhecer o quanto o teólogo brasileiro escreveu em seu Ecologia: Grito da terra, o grito dos pobres (São Paulo: Ática, 1996): o cosmos apresenta-se como um jogo de relações, porque foi criado à semelhança e imagem do Deus-Trindade, Ele mesmo relacional, em comunidade e não em solidão.
Nas últimas duas décadas do magistério papal, a atenção à questão ecológica foi crescendo, mas a atual Encíclica representa um verdadeiro salto de qualidade. Subjaz nela uma renovada consideração não só da relação do homem com o mundo, mas ainda mais radicalmente do relacionamento de Deus com o mundo. O cosmos não é somente “matéria” descansando passivamente nas mãos de Deus.
A demitização e desdivinização do universo, que a Encíclica recorda (cf. LS, nº 78), não significa sua desvalorização. O cosmos é matéria e energia dentro de um sistema de relacionamentos abertos à transcendência, que no caminho do homem manifesta-se como vindo de Deus e voltado para Ele. Deus não é separável do caminho, faz parte dele. A história, enquanto história da salvação, é um processo, assim como os fenômenos naturais são processos: são eventos que não se desenvolvem caoticamente, mas contêm uma racionalidade e uma possibilidade de sentido.
Deus é aquele que chama e acompanha os processos, mas em liberdade. Poderemos ver a relação entre Deus e o cosmos de modo semelhante à que existe entre Deus e o homem. Deus oferece seu impulso e sua chamada, mas não determina o resultado mecanicamente. Estamos dentro de uma criação contínua, em permanente devir.
“De certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo necessitado de desenvolvimento, onde muitas coisas que nós consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade, fazem parte das dores de parto que nos encorajam a colaborar com o Criador. Ele está presente no mais íntimo de cada coisa, sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá lugar também à legítima autonomia das realidades terrenas. Esta presença divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, ‘é a continuação da ação criadora’. O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo novo: ‘A natureza nada mais é do que a razão de certa arte — concretamente a arte divina — inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de mover-se a si mesma, para tomar a forma de nave’.” (LS, nº 80).
A transcendência de Deus não significa, portanto, estranheza de Deus em relação ao cosmos; Deus é distinto do cosmos, mas sua presença nele é constante.
IHU On-line - Que perspectivas de leituras de textos bíblicos, em específico os relativos à criação, são abertas a partir da Laudato Si’? Quais são as principais passagens bíblicas que apoiam a Encíclica?
Christian Albini - A Encíclica dá ênfase particular aos relatos da criação do Gênesis, mas não se detém em versículos isolados. Faz uma leitura abrangente que se integra com o resto do Pentateuco, os profetas, os Salmos e a literatura sapiencial. Exatamente, o olhar sapiencial parece ser o mais marcadamente presente.
Assinalo como particularmente significativas duas passagens, ligadas ao que foi dito acima.
“As narrações da criação no livro do Gênesis contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos profundos sobre a existência humana e sua realidade histórica. Estas narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este fato distorceu a natureza do mandato de ‘dominar’ a terra (cf. Gênesis 1,28) e de a ‘cultivar e guardar’ (cf. Gênesis 2,15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gênesis 3,17-19).” (LS, nº 66).
“Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do Gênesis, que convida a ‘dominar’ a terra (cf. Gênesis 1,28), favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de sermos criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a ‘cultivar e guardar’ o jardim do mundo (cf. Gênesis 2,15). Enquanto ‘cultivar’ quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, ‘guardar’ significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza.” (LS, nº 67).
Deus, em síntese, nega qualquer pretensão de propriedade absoluta e de exploração. O homem é hóspede, e a terra é para todos. Há um texto bastante útil para aprofundar a leitura bíblica da criação, onde se encontram antecipadamente muitos temas da Encíclica. É uma das maiores obras do monge e biblista Enzo Bianchi, Adamo, dove sei? (Biella: Qiqajon, 1994). Este livro conecta o relato criacional com o resto da narrativa bíblica, mostrando forte unidade e fazendo compreender como o ato de criação é substancialmente um ato salvífico em união com Cristo.
A existência do Filho, do Cristo entre os homens, supõe um projeto criador. Máximo, o Confessor, escreve: “Aquele que é iniciado no mistério da ressurreição conhece a finalidade para a qual Deus criou todas as coisas no início”; e Rupert de Deutz: “é por causa do Filho do Homem, que devia ser repleto de glória, que Deus criou todas as coisas. Deus não podia, em seu amor, criar o homem sem oferecer- lhe a divinização” (p. 338-339).
Ainda que o ambiente pareça, muitas vezes, à beira da catástrofe, esta confiança dá-nos esperança para enfrentar a questão ecológica como família humana: não estamos sozinhos, não estamos abandonados!■
Leia mais...
- O novo léxico católico do Papa Francisco. Artigo de Christian Albini publicado nas Notícias do Dia, de 26-06-2013, no sítio do IHU;
- O conflito de interpretações sobre o Papa Francisco. Artigo de Christian Albini publicado nas Notícias do Dia, de 27-11-2013, no sítio do IHU;
- O papa, os valores e o respeito. Artigo de Christian Albini publicado nas Notícias do Dia, de 18-11-2014, no sítio do IHU.