Edição | 18 Mai 2015

Sobre o Concílio Vaticano II

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Gilles Routhier | Tradução: Vanise Dresch

Christoph THEOBALD, La Réception du Concile Vatican II: Accéder à la source. Paris: du Cerf, 2009, 944pp
Christoph THEOBALD, La Réception du Concile Vatican II: Accéder à la source. Paris: du Cerf, 2009, 944pp

“Não se trata simplesmente, de maneira encantatória, de apresentar o Vaticano II como ponto de referência ou “bússola fiável” para orientar o caminho da Igreja ao longo do século que inicia, segundo a expressão de João Paulo II, mas, sim, de nos perguntarmos o que podemos esperar, hoje, desse Concílio”, pondera Gilles Routhier, ao apresentar a obra de Christoph Theobald chamada La réception du concile Vatican II. Tome I : Accéder à la source, (Paris, Cerf, coll. « Unam Sanctam, nouvelle série », 2009).

Gilles Routhier, nascido em Quebec, no Canadá, é padre e teólogo católico. Obteve o título de doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e em História das Religiões e da Antropologia Religiosa pela Universidade Paris-Sorbonne. Especializado na recepção do Concílio Vaticano II, foi professor de Teologia Prática e Eclesiologia no Instituto Católico de Paris e atualmente ensina na Université Laval, do Canadá.

Eis a resenha.

Essa obra volumosa de Christoph Theobald é, sem dúvida alguma, uma grande contribuição – não pelo número de páginas – para o campo dos estudos sobre o Vaticano II e marca provavelmente uma etapa nas pesquisas sobre o Concílio e sua recepção, dando-lhe uma nova orientação. Tal volume não poderia ter sido escrito há dez anos, não somente por estar alicerçado na pesquisa realizada por Theobald ao longo destes anos – neste sentido, trata-se de uma obra de maturidade, que colhe os resultados de vários anos de pesquisa – mas, sobretudo, porque os últimos anos possibilitaram que as pesquisas sobre o Concílio transpusessem limites importantes.  

Não me parece exagero dizer que se trata, atualmente, da contribuição mais importante nesse campo por parte de um teólogo sistemático. Essa obra encontra facilmente seu lugar ao lado das grandes obras que são L’histoire de Vatican II, dirigida por G. Alberigo, e Herders theologischer Kommentar zum zweiten vatikanischen Konzil, dirigida por G. Hilberath e P. Hünermann. Sua importância nos estudos sobre o Vaticano II resulta do fato de que Theobald desloca a questão, voltando agora nossa atenção não mais somente para a história do Concílio ou o texto conciliar a ser comentado, mas para a questão que interessará uma nova geração: “O que podemos esperar de Vaticano II?”. De fato, não se trata simplesmente, de maneira encantatória, de apresentar o Vaticano II como ponto de referência ou “bússola fiável” para orientar o caminho da Igreja ao longo do século que inicia, segundo a expressão de João Paulo II, mas, sim, de nos perguntarmos o que podemos esperar, hoje, desse Concílio. 

Depois de ter destacado muito brevemente a importância e a originalidade dessa contribuição para o conjunto das pesquisas atuais sobre o Vaticano II, tratarei de mostrar, num primeiro momento, como essa obra se insere nas grandes correntes atuais de pesquisa sobre o Concílio, ampliando a reflexão, para, num segundo momento, propor duas observações que a leitura estimulante da obra me sugere. 

Um estudo original que está no cerne dos debates atuais

Primeiramente, destacarei três aspectos da pesquisa atual sobre o Vaticano II, indicando como o estudo de Theobald aí se insere e amplia a reflexão.

- A originalidade do Concílio definida a partir da pastoralidade ou de seu estilo

Não é a primeira pesquisa que privilegia o caráter pastoral do Vaticano II. Poderíamos dizer que esta é uma convicção compartilhada tanto pelos primeiros comentários do Concílio quanto pela imponente Histoire du Concile, dirigida por G. Alberigo . Para o historiador de Bolonha, o caráter pastoral do Concílio, “muito rapidamente percebido como sintoma claro de um concílio novo”,   é o que melhor caracteriza sua identidade: “Enquanto a identidade dos primeiros concílios da Antiguidade foi marcada pelas definições cristológicas, e, no caso do Concílio de Trento, estiveram no cerne do debate a controvérsia anti-protestante e o restabelecimento da disciplina eclesiástica, o Vaticano II caracteriza-se pela pastoralidade e pelo aggiornamento.”  Para Alberigo, a designação “pastoral” do Concílio é o que melhor caracteriza o Vaticano II em relação aos concílios anteriores , o critério hermenêutico por excelência para compreender o próprio evento conciliar, e não somente seus textos.  Essa natureza pastoral do Concílio lhe teria sido dada por João XXIII, em seu discurso inaugural,  mas o próprio Concílio retomou e fez sua essa orientação, especialmente no debate sobre o De Fontibus, durante a primeira sessão.  Segundo Alberigo, a indicação de João XXIII é acolhida pelo Concílio, “a referência à sua natureza pastoral, que sugere uma chave hermenêutica para as escolhas feitas gradativamente por ele no que se refere aos argumentos a serem discutidos (por exemplo, a prioridade reconhecida à liturgia ou a importância da condição da Igreja no mundo contemporâneo) ou à maneira de dirigir-se à Igreja em termos de abertura e de exortação, em vez de imperativos.”  A pastoralidade não somente se enraíza na vontade do Papa João, como também é retomada pelo próprio Concílio.

A tese de Theobald, mesmo não sendo substancialmente diferente daquela de G. Alberigo, situando a originalidade do Vaticano II em sua pastoralidade e enraizando esta no discurso inaugural de João XXIII, distingue-se da segunda pela definição da pastoralidade, que pressupõe uma abordagem hermenêutica da doutrina e da tradição. Esta é, a meu ver, a principal contribuição do teólogo fundamental que Theobald é. Ademais, a análise minuciosa que ele faz para embasar essa tese no conjunto do corpus do Vaticano II é inigualável. Além de mostrar que a escolha pela forma pastoral da doutrina constitui o traço distintivo do Vaticano II, representando, assim, uma ruptura em relação aos concílios anteriores e ao clima dentro do qual evoluía o catolicismo no momento do Concílio, Theobald também se destaca de seus predecessores pelo fato de documentar pacientemente a origem e o desenvolvimento dessa intuição (segunda parte), de retraçar a recepção desse princípio durante o Concílio e a marca que ele imprimiu em todo o seu corpus (terceira parte) e de acompanhar o destino que tomou durante o período de recepção do Concílio (quarta parte). Assim, a pastoralidade torna-se o fio condutor da obra: o autor retraça a emergência dela durante a preparação do Concílio, mostra a adesão dos Padres conciliares a essa orientação de João XXIII ao longo dele e mostra a dificuldade da Igreja católica em obter a mesma adesão a esse princípio durante a recepção do Vaticano II.

Essa tese foi inicialmente apresentada por Theobald em 1996, em um importante artigo ao qual ele nos remete com frequência: “Le concile et la ‘forme pastorale’ de la doctrine ”. Este texto, em que Theobald procura compreender como emergiu na Igreja católica uma nova maneira de se relacionar com o seu patrimônio dogmático no último século, é propriamente fundador. Pode-se dizer que a essência da tese já está bem determinada ali, e seus estudos posteriores levam Theobald a desenvolvê-la mais. Por isso, desde então, ele não parou de retomá-la, aprofundá-la e refiná-la,  até em seu estudo recente, “Enjeux herméneutiques des débats sur l’histoire du concile Vatican II”,  em que se pergunta se o dito princípio de “pastoralidade”, atribuído por João XXIII ao Concílio em seu discurso de abertura, marcou efetivamente todo o corpus textual.  O autor considera que a mudança de pontificado, no verão de 1963, teria levado a modificar a primeira orientação do Concílio, fazendo então da Igreja “o principal argumento” dele.  Para o autor, essa interpretação aclara os meandros da história da recepção do Vaticano II até os dias de hoje.  São teses subsidiárias ligadas à primeira, e às quais teremos de voltar. Concentremo-nos, por enquanto, na tese principal, e nela vou me demorar um pouco, pois é o que me parece constituir o cerne da obra: a definição da pastoralidade.  

Para Theobald, no discurso de abertura do Concílio, João XXIII inicia “a transformação do ‘dogmatismo’ ”, dando um novo marco à doutrina cristã, marco este que, posteriormente, o Concílio será chamado a receber. Ele faz, primeiramente, uma leitura “sapiencial” (e não apocalíptica) da história humana (rompendo com Dei Filius), confiando na capacidade de aprendizagem dos humanos e determinando com mais modéstia o papel da Igreja na história, cuja autonomia é respeitada. Em seguida, ele expõe o objetivo do Concílio (promover a doutrina), e o faz em várias etapas: 1- uma doutrina que envolve o homem em sua totalidade e humanização (antropologia); 2 – uma doutrina que se insere no presente da história (história); 3 – uma doutrina transmitida para a felicidade do homem na situação atual da história (passa-se do conteúdo da doutrina à sua recepção baseada em sua força de transformação espiritual); 4 – uma função pastoral do magistério eclesial (o magistério extraordinário da Igreja, que não se opõe a uma ou outra heresia, mas oferece à humanidade um bem, o evangelho). 

Manter a doutrina em sua integridade não poderia confundir-se, para João XXIII, com um imobilismo voltado para o passado ou um desenvolvimento doutrinal de modo repetitivo. Há, então, uma nova maneira de relacionar-se com a tradição doutrinal da Igreja, que também é histórica e precisa, em vez de repetida, ser reinterpretada, uma vez que constitui uma maneira, em situações culturais diferentes, de propor o depósito da fé. A tradição doutrinal (paradosis) é, assim, um ato de traditio-receptio em diversos contextos e diversas épocas. A relação entre doutrina e história – que estava no cerne da crise modernista – é dessa maneira repensada, até mesmo redefinida.

Há, além disso, a atenção à situação cultural dos destinatários do evangelho. Para Theobald, a pastoralidade remete à consideração do destinatário ou receptor no momento da elaboração do discurso, pois não há anúncio do evangelho sem levar em conta o destinatário e sem acreditar que já está ativo nele aquilo que o anúncio traz, de modo que ele pode aderir a este com toda a liberdade.  A pastoralidade do Vaticano II, sem se reduzir a isso, caracteriza-se, então, pela consideração dos destinatários e do contexto histórico e cultural destes, o que remete à figura cultural da “verdade revelada”.  Isso o leva a repensar o doutrinal, pois a pastoralidade introduz o traditum em lugares e espaços próprios daqueles que recebem o evangelho, o que obriga a pensar a relação entre a Igreja e o mundo. 

A pastoralidade, portanto, descentra a Igreja de duas maneiras complementares que se expressam através de duas escutas: a escuta do evangelho (e da tradição doutrinal) para reinterpretá-lo e transmiti-lo em um novo contexto cultural.

De acordo com Theobald, isso gera uma mudança de ordem ou de paradigma. Passa-se, então, do conteúdo da doutrina à sua recepção, baseada em nova atenção às condições espirituais em que a humanidade evolui, e à sua interpretação com vistas a uma re-expressão.

- Um concílio que se insere no longo tempo

Definir a originalidade do Concílio Vaticano II obriga a inseri-lo no longo tempo. Trata-se de mostrar em que sentido esse Concílio se diferencia dos outros. É possível fazê-lo relacionando o Vaticano II com a história bimilenar dos concílios ecumênicos ou gerais. Trabalhos que seguem esse caminho levaram os historiadores a elaborar diversas tipologias dos concílios. 

Se vários trabalhos propuseram tipologias, raros foram aqueles que se empenharam tanto em seguir em seus meandros a evolução da instituição conciliar, horizonte indispensável para quem quiser perceber a originalidade do Vaticano II e chegar a compreendê-lo corretamente. Por certo, Theobald beneficiou-se muito com os trabalhos eruditos de seu confrade H. J. Sieben sobre a ideia do concílio através da história, trabalhos esses que, embora o autor dominasse perfeitamente o francês, infelizmente nunca foram traduzidos para essa língua. Alegra-me muito que as conclusões dessas pesquisas estejam finalmente disponíveis para o público francófono, através dessa publicação de Theobald.

Devo dizer que o longo percurso de história conciliar proposto na primeira parte, que visa a aclarar a originalidade do Vaticano II no horizonte da tradição conciliar, é mais elaborado e desenvolvido do que aquele encontrado até mesmo entre os historiadores contemporâneos do Concílio Vaticano II, notadamente G. Alberigo e J. O’Malley, para citar apenas estes, que, embora também tenham insistido na originalidade do Vaticano II, ao querer destacar o seu “estilo” próprio – nas palavras de O’Malley –, não ofereceram tal panorama. Acerca disso – e abro aqui um parêntese –, a exploração dos gêneros literários na obra de Theobald (p. 446-476) também me parece mais sutil e mais completa que aquela encontrada em O’Malley, embora este autor se interesse, precisamente, pela retórica do texto e pelos gêneros literários. 

- Uma abordagem dos textos conciliares como corpus

Antes de passarmos a abordar a ideia de corpus, preciso destacar a primeira parte da frase que compõe este título: Uma abordagem dos textos conciliares. Eis um elemento característico do trabalho de Theobald: um apego ao texto (e aos seus gêneros literários), uma leitura aprofundada dele, sem dúvida, um convívio assíduo com ele. Não me refiro ao comentário do texto, nem a uma história do texto, o que é diferente, mas a uma leitura do texto. É nítida a diferença em relação à Histoire de Vatican II, que recorre a muitas fontes. Por certo, Theobald recorre, às vezes, a elementos extratextuais, tirados dos Acta et documenta ou dos Acta synodalia, mas aproveita pouco, se não ocasionalmente, os debates conciliares. No referido capítulo, esse trabalho se distingue daqueles realizados pelos historiadores. Seria redutor, contudo, afirmar que, para Theobald, Vaticano II é somente um texto – enquanto, para Alberigo, é acima de tudo um evento. Todavia, na presente obra de Theobald, o Vaticano II é certamente um texto em primeiro lugar. Nisso, ele concorda com seus colegas teólogos H. Legrand e P. Hürnemann, cujas posições respectivas são discutidas brevemente (p. 435-445). Embora tão agarrado quanto estes teólogos ao texto do Concílio, Theobald não adota a ideia de H. Legrand de construir uma história doutrinal do Vaticano II que passaria por uma história da redação de seus textos, além de também não assumir a proposta de caracterizar esse texto como “texto constitucional”, privilegiada por seu compatriota de Tübingen. Em relação aos seus antecessores, Theobald desloca o debate de duas formas: da fixação no evento (Aberigo), ele desvia nossa atenção para o texto e, do comentário do texto (Hünermann), ele nos faz passar à gênese e à estrutura do corpus (terceira parte), um corpus caracterizado por sua estrutura duplamente aberta.

Na verdade, Theobald nos remete ao texto do Vaticano II, focando nossa atenção na gênese do corpus e em sua unidade, o que o conduz a explorar sua intra- e intertextualidade. A ideia de que os textos do Vaticano II formam um verdadeiro corpus, e não se apresentam simplesmente como um conjunto de textos esparsos e dispersos reunidos apenas pela encadernação, não é nova. Outros autores afirmaram isso antes dele. Todavia, nunca se levou tão longe a empreitada de reconstruir uma sistemática de conjunto tão sólida. Mais uma vez, o trabalho de Theobald, mesmo se situando na corrente atual dos trabalhos sobre o Vaticano II, dá um passo adiante.

Theobald segue nesse esforço de construção de um corpus coerente há vários anos, aprimorando constantemente os ensaios que apresentou neste sentido em seus trabalhos anteriores, e correndo o risco, talvez, de torná-la muito sistemática. De fato, se o leitor é seduzido por essa apresentação sistemática, que encontra muitos pontos de apoio nos textos e na história do Vaticano II (é nela que as referências históricas são mais numerosas, não se tratando, portanto, de uma construção gratuita) e que dá à obra conciliar uma inteligência em seu todo, ele acaba por se perguntar se, de tanto querer sistematizar, não se perde de vista um aspecto do Concílio Vaticano II que também faz parte de sua história, a saber, que esse corpus, embora apresentando uma verdadeira unidade, também tem um caráter heteróclito insuperável que resiste a qualquer sistematização. 

Vemos, então, mais uma vez, como são originais os trabalhos de Theoblad, situando-se, ao mesmo tempo, na linha dos trabalhos atuais sobre o Vaticano II, que tentam abordar os textos deste como um verdadeiro corpus. Diferentemente de J. O’Malley, para Theobald, o que confere unidade ao conjunto não é um estilo particular, mas uma coerência de ordem sistemática. Ele a apresenta sob a forma de esquema ternário (p. 411), constituído por um eixo vertical e um eixo horizontal que se encontram num terceiro termo, a Igreja. Essa apresentação esquemática tão sugestiva e atrativa, que renova a inteligência desse corpus e que recebe minha adesão, é, no entanto, a meu ver, uma construção a posteriori, e a empreitada que consiste em querer muito fundamentá-la historicamente (p. 365-409), como se ela se impusesse a partir do desenrolar do Concílio, de onde se poderia tirar a gênese e a estrutura do corpus, é ainda muito frágil. Percebemos aqui a indispensável contribuição e o aporte original da teologia sistemática para a compreensão do Vaticano II, mas também seu limite.

Além disso, essa construção sistemática representada em um esquema comporta os efeitos perversos inerentes a qualquer esquematização. De fato, esta corre o risco de dar novamente à Revelação uma verticalidade que provavelmente vai além da intenção de seu promotor, que sempre lembra, a partir de Dei Verbum, que a Revelação está inexoravelmente ligada à história e à cultura, mas nunca acima dessa história e das culturas. Deste modo, a conversa entre Deus e a humanidade (DV 2) é um diálogo que se estabelece entre dois parceiros, o primeiro situado numa posição elevada em relação ao segundo, que aparece numa situação de inferioridade.

Certa ideia da Igreja

Passo agora ao meu segundo ponto, e o diálogo que estabeleço aqui com Theobald depende, provavelmente, do nosso posicionamento diferente nas disciplinas teológicas. Theobald, como sabemos, interessa-se pela teologia fundamental e dedicou vários trabalhos à teologia da Revelação, enquanto eu me situo na eclesiologia. 

Essa obra em seu todo – principalmente a segunda e a terceira parte dela – repousa na afirmação da separação entre a orientação dada por João XXIII, em seu discurso inaugural, e a programação eclesiológica do Concílio, determinada pelo plano Suenens-Montini e retomada posteriormente por Paulo VI em seu discurso de abertura da segunda sessão (reequilibrada em seu discurso de encerramento). Esse eclesiocentrismo teria levado a um desvio do curso das águas do Concílio, e essa concentração no debate eclesiológico estaria, em parte, na origem das dificuldades encontradas no período pós-conciliar. 

No que se refere a Paulo VI, que representa um pouco a figura de “mal-amado”, pergunto-me se não devemos falar, sobretudo, do cristocentrismo de seu discurso de abertura da segunda sessão e, neste sentido, do déficit pneumatológico de sua perspectiva, quando comparamos sua visão àquela de seu predecessor. Na origem e no fundamento de sua diferença na retomada material da programação anunciada por João XXIII, há, ao que me parece, essa diferença fundamental.

Todavia, não é essa questão que quero destacar. Tenho a impressão de que o esforço que consiste em querer centrar o debate sobre o acolhimento da Palavra de Deus, no contexto atual e na reinterpretação da tradição em nosso tempo – o que seria diferente dos debates eclesiológicos que caracterizaram o pós-concílio –, pode levar a agir com uma ideia empobrecida da Igreja. De fato, isso corre o risco de reduzir a Igreja ao espaço em que se estrutura o jogo relacional entre os tradentes, e a eclesiologia a um de personnis, como encontrávamos outrora nos tratados de direito canônico. A eclesiologia se reduziria à boa ordem e ao funcionamento dentro de uma sociedade que persegue fins religiosos. Ela discutiria o exercício da autoridade, a colegialidade episcopal, o modo de exercício do primado etc. 

Ora, o que é a Igreja se não for mais aquela assembleia, expressão concreta da resposta dada por uma parte concreta da humanidade à pregação do evangelho. Além disso, o que é a Igreja e para o que ela serve se lhe for subtraída sua dimensão missionária constitutiva? Os dois elementos são claramente afirmados pelo Vaticano II quando trata da Igreja (já em Lumen gentium), de modo que não se pode nem reduzir a Igreja aos tradentes, nem reduzir a eclesiologia à consideração da atividade destes (concebida pelo esquema de tria munera) e à reflexão sobre as relações que eles mantêm entre si e com as figuras institucionais dentro das quais se desenvolvem essas relações. Por certo, é bem levado em consideração o caráter missionário constitutivo da Igreja, tão claramente afirmado em Ad gentes, talvez a eclesiologia mais afinada do Vaticano II, como lembramos aqui. Ademais, afirma-se, felizmente, que o eixo vertical e o eixo horizontal a que nos referíamos há pouco se encontram na Igreja. Se me permitem ir mais longe, eu diria ainda que a Igreja existe somente em razão (em função) da humanidade em cujo meio ela exerce o ministério da Palavra ou para o mundo com o qual ela é solidária, e somente em razão (por causa) dessa convocação pela Palavra. Se quisermos marcar a unidade do Vaticano II, não poderemos dissociar Dei Verbum e Gaudium et Spes de Lumen gentium e Ad gentes.

Sem dúvida, concordo que pode ter sucedido certo eclesiocentrismo com uma ideia deficiente e redutora da Igreja, apegando-se principalmente ao jogo relacional entre os tradentes. Isso existiu de fato durante o Concílio e sua recepção, mas a eclesiologia do Vaticano II sintoniza bem com uma concepção da Igreja como creatura Verbi, que, em lugar e contexto determinados (consideração do receptor), anuncia e interpreta o evangelho, na força do Espírito. Eu defenderia, então, uma eclesiologia bem ancorada na teologia fundamental e na missiologia, e uma teologia fundamental que assumisse a eclesiologia, em vez de uma separação marcada entre essas duas disciplinas, distintas, por certo, mas interdependentes. Aliás, é o que sugerem os trabalhos dos periti que transmitiram esses grandes textos do Concílio. Penso especialmente em Y. Congar, mas também em G. Philips, que presidiu os trabalhos de redação das três grandes constituições: aquela sobre a Revelação, a outra sobre a Igreja e Gaudium et spes. Não havia entre eles – nem entre vários outros Padres e especialistas – essa divisão das tarefas ou repartição das matérias e das tarefas entre eclesiologia e teologia fundamental. De resto, a importância atribuída ao anúncio e à recepção da Palavra (em contexto) no conjunto do corpus conciliar é testemunho disso, até o projeto – concebido já na primeira sessão (nas discussões de novembro de 1962) e retomado em 1963 e 1964 – de incluir, em De Ecclesia, o tratamento da questão da Revelação divina. Tinha-se a nítida impressão de que não eram duas questões isoladas, separadas uma da outra, e sim dois aspectos da mesma questão, como demonstram, aliás, os preâmbulos trinitários das diversas constituições (e do decreto Ad gentes).

Na figura da assembleia conciliar, nos é dada, afinal, a essência da figura da Igreja: trata-se de uma assembleia concreta que, na invocação do Espírito, escuta o evangelho entronizado todas as manhãs, que governa esta assembleia para transmiti-lo aos homens dos dias de hoje; assembleia ao mesmo tempo descentrada e aberta.  Não temo muito um eclesiocentrismo que trabalhe a partir de tal compreensão da Igreja. Temo apenas a redução da ideia de Igreja.

Tudo começa com João XXIII?

Passo agora ao meu último ponto: o papel fundamental atribuído a João XXIII, que figura como “o discípulo bem-amado”, na valorização e na proposição do princípio de pastoralidade – muito rapidamente associado ao princípio de ecumenicidade. 

Depois de examinar o desenvolvimento da “consciência hermenêutica de João XXIII” (p. 233-257), destacando e analisando apuradamente seu discurso de abertura Gaudet mater Ecclesia como momento decisivo que anuncia a transposição de um limiar, toda a terceira parte examina “a recepção conciliar do princípio de ‘pastoralidade’” (especialmente o primeiro capítulo dessa terceira parte, p. 281-364). Com grande rigor e atenção, Theobald retraça então o percurso de recepção intraconciliar do princípio de pastoralidade. Por fim, na quarta parte, cujo subtítulo anuncia o conteúdo, “A manifestação pós-conciliar do princípio de ‘pastoralidade’” (p. 495-700), Theobald nos conduz por outro percurso, retraçando desta vez, num voo panorâmico, a recepção do princípio de pastoralidade no período dos quarenta anos que nos separam do Vaticano II. Tudo isso anuncia a quinta parte, em que ele nos fala da urgência de realizar, durante a recepção, o mesmo aprendizado que tiveram de fazer os Padres conciliares durante o Concílio, ou seja, a conversão ao princípio de pastoralidade: recepção, interpretação criativa do evangelho para os dias de hoje.

Essa construção complexa, portanto, é perfeitamente coerente, e o fio condutor de toda essa abordagem nos é dado com o princípio de pastoralidade definido por João XXIII, em seu discurso de abertura do Concílio. Ao longo de muitos capítulos, tem-se a história do fluxo e do refluxo do princípio de pastoralidade durante o Concílio e sua recepção, visto que essa história, que vive momentos de “adesão ao princípio” – o que leva a novos aprendizados – é também comandada por outro programa, o qual leva a uma bifurcação em relação ao programa inicial e ao destacamento do princípio de pastoralidade. O relato, então, vai de João XXIII ao leitor atual e à Igreja, aos quais se dirige essa obra em última instância, leitor e Igreja, que podem ser considerados seus leitores implícitos ou seus destinatários e que, hoje, seriam chamados a aderir ao princípio de pastoralidade e a realizar os aprendizados ligados a ele.  

No longo tempo, esse relato situa o princípio de pastoralidade no horizonte dos dois primeiros milênios cristãos e dos vinte primeiros concílios ecumênicos ou gerais (primeira parte), enquanto que, no curto tempo, o horizonte é antes a época moderna, com dois momentos cruciais, o Concílio Vaticano I, com sua constituição Dei Filius, e a crise da modernidade. É, sobretudo, neste horizonte que se destaca ainda mais nitidamente a pastoralidade, como desenvolve o capítulo 3 da segunda parte, “A fase preparatória do Vaticano II” (p. 207-258), em que são identificadas três linhas de desenvolvimento: o projeto doutrinal conduzido pela Comissão Teológica; os ensaios hermenêuticos que se manifestam aqui e ali, durante a fase preparatória, e que são tantos contrapontos em relação a esse projeto doutrinal, ou reações a ele, o que teria levado a privilegiar a ideia de um simples aggiornamento doutrinal e eclesiológico, que se expressa no plano de Suenens; e, por fim, a consciência hermenêutica de João XXIII. Deparamo-nos, portanto, com um triângulo, no qual o bom Papa João, sozinho, ocupa uma posição distinta.

Essa apresentação é sedutora e merece nossa atenção. Ao nos mostrar um sistema tripolar, seu mérito está, sobretudo, em nos permitir interpretar o desenrolar do Concílio e do pós-Concílio de um modo diferente que não seja o recurso a simples esquemas binários em que teríamos, de um lado, conservadores e, de outro, progressistas, uma maioria e uma minoria, etc. Teríamos, em vez disso, primeiramente, adeptos de um programa doutrinal cujo objetivo é completar o Vaticano I; em segundo lugar, adeptos de um aggiornamento das instituições e da doutrina que, contudo, não teriam programa a priori, exceto aquele que lhes será fornecido em 1962 e em que o eixo eclesiológico se torna central; e, em terceiro lugar, o bom Papa João, em sua posição solitária, defendendo o princípio de pastoralidade. Simetricamente, no momento da recepção, teríamos os adeptos de uma normatização doutrinal do Concílio, os partidários de um aggiornamento ocupados com a reforma das instituições ou absorvidos por questões eclesiológicas (uma eclesiologia concebida de maneira redutora) e a terceira posição – esta mais esperada que efetiva – da retomada do princípio de pastoralidade, com todos os aprendizados que isso supõe.

Não recuso essa sistematização que, ao menos, nos mostra a complexidade do jogo entre os atores ou os tradentes, mas, por um lado, hesito em deixar João XXIII em sua posição solitária olimpiana e apartado da Igreja, da qual ele é o pastor, e, por outro lado, lamento que o horizonte no qual essa preparação se destaca não reserve mais espaço para os movimentos de renovação pré-conciliares (ao contrário de O’Malley, que volta muito sua atenção para o século XIX, ao qual dedica um terço de sua obra). Por certo, encontramos na obra de Theobald algumas páginas (p. 198-203) sobre esses esforços de “reinterpretação global da paradosis cristã” que agem na Igreja desde o fim do século XIX, com destaque para o trabalho de Blondel, mas essas páginas constituem apenas um preâmbulo (capítulo 2 da segunda parte) à abordagem do trabalho preparatório para o Concílio (capítulo 3 da segunda parte).

Ora, parece-me que o Concílio não foi somente recebido, ele mesmo recebe os fermentos que trabalham o corpo eclesial.  Assim, esse relato não começa com João XXIII, e precisamos remontar no tempo para encontrar sua origem. Além disso, o Papa não me parece ocupar uma posição solitária, ao elaborar, graças ao seu próprio conselho, uma consciência hermenêutica original. Paralelamente às interações entre o Papa e os movimentos de renovação, as interações entre o Papa e os outros atores são também um elemento que o autoriza a desenvolver essa consciência hermenêutica. Penso que João XXIII também hesita e que sua posição só se afirma quando ele sente que, atrás dele, principalmente no colégio dos cardeais, há apoio suficiente para tornar seu projeto recebível e viável.

Eu teria muito a dizer ainda a respeito dessa volumosa obra repleta de intuições, mas estas poucas reflexões já indicam quanto ela me fez pensar e alimentou minha reflexão. Sou muito grato a Theobald por esse trabalho colossal, que impulsiona os estudos sobre o Vaticano II, e aguardo impacientemente a continuação, no segundo volume anunciado.  ■

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