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Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Eis o depoimento.
Inicio esta avaliação lembrando que o sujeito jurídico da Igreja católica romana é a Santa Sé, isto é, o Papa e a Corte de eclesiásticos sediada em Roma. Se “eu sou eu e minhas circunstâncias”, como ensina Ortega y Gasset, com mais certeza é Francisco ele mesmo e suas circunstâncias — no caso, a Cúria romana. O regime monárquico confere ao Papa grande autonomia em suas decisões, mas elas só se efetivam pela mediação do aparato curial. Uma coisa são as iniciativas pessoais de Francisco como as homilias, as entrevistas e os gestos de efeito midiático; outra coisa são os atos oficiais como a nomeação de bispos e as decisões normativas tomadas em nome do Papa. E são evidentes as tensões entre Jorge Bergoglio — padre cuja trajetória de vida é marcada pela teologia do Concílio Ecumênico do Vaticano II e pelo cuidado com os pobres e pessoas fragilizadas — e o aparato eclesiástico romano regido pelo Código de Direito Canônico. É preciso ter em conta essas relações entre Francisco e a Cúria para avaliar os dois anos que passaram e vislumbrar os dois outros que provavelmente faltam para o final deste pontificado.
No contexto de forte crise da Santa Sé, Francisco foi eleito com a missão de reformar a Cúria. Ao criar o conselho consultivo de cardeais e tomar medidas drásticas para o controle das finanças, o Papa cumpriu aquele compromisso e assim conquistou a confiança da comunidade católica. Ocorre, porém, que Francisco não tem se limitado a sanar malfeitos do aparato eclesiástico como a corrupção e a ocultação de crimes de abuso sexual. Ao propor uma Igreja em saída, ele demonstra ter assumido de fato — e não apenas retoricamente — as diretrizes teológicas e pastorais do Concílio Vaticano II. Diferentemente dos dois últimos pontificados, que evitaram se contrapor ao sistema estabelecido pelo concílio de Trento, Francisco parece querer descartar aquela forma de catolicismo e seu inseparável clericalismo. Contra esse risco de mudança estrutural levantam-se agora não poucos cardeais, arcebispos e bispos, padres e diáconos, seminaristas maiores e menores cuja reação é em geral silenciosa: trazer de volta práticas tridentinas em desuso como a comunhão na boca. Desarticuladas durante o primeiro ano de pontificado, essas forças eclesiásticas estão se recompondo e, com o apoio mais ou menos velado da Cúria romana, poderão travar o processo de mudanças deslanchado pela eleição de Francisco.
Nesse contexto, três iniciativas foram estratégicas e podem resultar em mudanças estruturais:
• a intervenção no “Banco do Vaticano”, para supervisionar o movimento financeiro;
• as nomeações de novos cardeais, que aumentam a representação da periferia eclesiástica; e
• a exortação apostólica “Alegria do Evangelho”, que retoma o espírito do concílio Vaticano II.
Desafios
A dificuldade de seguir em frente no processo de reforma reside justamente naquilo que poderia parecer o ponto forte do Papado: o regime monárquico só funciona com o apoio de uma corte para implementar as decisões. Francisco mostra vontade de descentralizar os processos decisórios na Igreja e isso supõe a redução do poder da Cúria. Os curiais sabem bem disso, e tudo farão para manter seu poder de colocar empecilhos às iniciativas Papais contrárias a seus interesses. Enquanto isso, apostando numa reversão do processo no próximo conclave, nomearão bispos e instruirão as dioceses no sentido de interpretar as diretrizes do Concílio Vaticano II conforme a hermenêutica ratzingeriana.
O futuro do pontificado
Bergoglio tem uma personalidade forte, é carismático e ganhou enorme prestígio dentro e fora da comunidade católica. Já seus opositores têm força no aparato eclesiástico, mas sua proposta de restaurar o catolicismo tridentino dando-lhe novo verniz só é levada a sério por um número cada vez menor de fiéis — embora muitos sejam pessoas socialmente influentes e economicamente poderosas. Para levar adiante sua proposta de Igreja em saída Francisco precisa de apoio das bases eclesiais, hoje desarticuladas depois de dois pontificados restauradores. Ele tem dois anos para favorecer a rearticulação e mobilização dessas bases. Se ele bancar a nomeação de bispos em dioceses chaves, reforçar a legitimidade das formas eclesiais oriundas do Vaticano II (CEBs, Pastorais sociais, conselhos pastorais e outros organismos de participação leiga) e reconhecer a autonomia das conferências episcopais, ele poderá efetivamente descentralizar o poder eclesiástico e favorecer o desenvolvimento do projeto de Igreja Povo de Deus em diálogo com o mundo. Que assim seja! ■