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Castor M.M. Bartolomé Ruiz
Eis o depoimento.
A eleição do Papa Francisco, primeiramente, foi uma surpresa política que posteriormente se transformou numa espécie de assombro contínuo, pelas suas atitudes pouco acordes com a tradição da diplomacia estatal vaticana e por seus gestos de extrema liberdade evangélica. Essa atitude evangélica “franciscana” reflete de modo muito paradoxal nestes dois anos do Papa Francisco. Por um lado, há uma admiração generalizada, exceto de grupos católicos reacionários, por esse vento fresco de Espírito evangélico que se introduziu nas pesadas estruturas seculares da burocracia vaticana, já que seus protocolos normatizadores de condutas estão mais próximos dos aparatos estatais de controle social que dos princípios evangélicos das Bem-aventuranças. Por outro lado, não deixa de ser paradoxal que o óbvio, ser evangélico, resulte raro nas estruturas de gestão central da Igreja Católica.
Max Weber já indicou que qualquer movimento social tem uma fase carismática, à qual sucede, se sobreviver, outra fase organizativa que facilmente advém numa forma burocrática. A Igreja Católica, por ser também social e histórica, não pode fugir às determinações do social e histórico. O que se comprovou ao longo da história da Igreja é que, além das dinâmicas de poder que atravessam qualquer instituição social, sempre reaparecem pessoas, movimentos, grupos e carismas que revitalizam os modos de vida e as convicções originárias do Evangelho como “formas de vida” da estrutura. Normalmente, quase que por óbvio, esses ventos renovadores sopram das periferias do poder. O surpreendente do Papa Francisco é que, sendo o representante e símbolo do poder institucional da Igreja, assume para si a missão de renovar evangelicamente as estruturas de poder que o elegeram.
Essa atitude geral do Papa Francisco provocou admiração e entusiasmo por parte de uma grande maioria de católicos do mundo que sentiam que a Igreja tinha se transformado numa estrutura endógena, sem a vitalidade para anunciar uma Boa Nova de Esperança, que está na sua origem histórica. Por parte de não católicos há um certo reconhecimento da honestidade, coragem e transparência do Papa Francisco nas questões mais polêmicas. Lembremos recentemente que ele teve a coragem de denominar o massacre armênio de genocídio, atraindo sobre si as retaliações do governo turco, enquanto Obama, por motivos políticos, omitiu o termo.
Sua “forma de vida” não deixa de surpreender por gestos simbólicos e proféticos muito distantes dos protocolos Papais do poder e dos disciplinamentos comuns ao poder burocrático vaticano. Sem dúvida, como em toda gestão ou vida humana, há aspectos críticos que poderiam ser pontuados, mas dada a novidade histórica do estilo de vida e governo do Papa Francisco, destacaria três grandes linhas inovadoras:
- Primeiramente, destaca-se uma atitude evangélica de assumir para si uma “forma de vida” simples, refletida no modo de viver cotidiano, nas formas de relacionar-se com os outros, no estilo de linguagem, na liberdade da verdade com que se expressa. Essa forma de vida é também uma espécie de contrapoder em cima do poder, exigindo que aqueles que optarem por uma vida sacerdotal e religiosa não poderão fazê-lo por poder ou glória, mas por serviço aos outros. Essa “forma de vida” que é o núcleo da “forma de vida de Jesus” está muito distante das estruturas burocratizadas do poder vaticano e de outras instâncias clericais. O Papa Francisco, com essa “forma de vida”, assume para si ser um “estranho no ninho do poder”. Por outro lado, esta atitude corresponde a mais genuína tradição profética.
- Em segundo lugar, destacaria a obsessão por transparência na gestão a todos os níveis. Como exemplo, a decisão de “cortar na própria carne” da Igreja ao não tolerar encobrir qualquer indício de pederastia, essa terrível lacra de alguns sacerdotes e religiosos que suja o testemunho de vida exemplar de muitos outros. Outros exemplos são a transparência na gestão das finanças vaticanas, a mudança pretendida nas nomeações de cargos da cúria vaticana, visando transparência para estimular a honestidade e não a luta pelo poder interno, entre outros.
- Um terceiro aspecto que chama muito atenção do Papa Francisco é sua assumida opção pelos pobres em todos os níveis. Primeiramente, na sua forma de vida, ao se propor viver livre e pobre na simplicidade chocando contra os muros dos luxuosos aposentos vaticanos. Em segundo lugar, sua insistente opção pela solidariedade com os pobres, assumindo posturas pessoais, por exemplo, com as centenas de milhares de migrantes clandestinos que chegam à Europa, com os moradores de rua de Roma, com os presidiários, com os desempregados da Europa. Num terceiro aspecto, a opção pelos pobres é apresentada, com palavras e gestos pessoais, como opção pela justiça sempre e a qualquer preço. Num quarto aspecto, o Papa Francisco insiste na exigência de que toda a Igreja deve ser pobre e assumir para si a “forma de vida” da pobreza como caminho da liberdade para melhor cumprir o principal objetivo de sua missão: anunciar e testemunhar a Boa Nova do Evangelho.
Esta insistência na opção pelos pobres e pela justiça tinha sido a marca da teologia latino-americana e do terceiro mundo durante as décadas de 1960 a 1990, depois foi paulatinamente silenciada em todos os níveis e agora é, surpreendentemente, recolocada como eixo central da forma de vida e da mensagem do Papa Francisco. Essa insistência parte de uma convicção profunda de que a opção pelos pobres, para os cristãos, não é uma moda que passa, nem uma ideologia progressista ou alternativa entre outras, mas uma exigência central para aqueles que pretendem seguir o evangelho de Jesus como forma de vida. Disso se deriva que a Igreja instituição tem a obrigação moral e constitutiva de ser testemunha exemplar deste modo de vida.
A brevidade de qualquer gestão pessoal à frente de uma instituição milenar como a Igreja deixa algumas marcas, mas elas só serão efetivas se uma maioria do coletivo cristão se decide a implementá-las como forma de vida. Na temporalidade histórica, ficam valendo as mudanças da cultura coletiva. Este é um dos maiores desafios da Igreja no terceiro milênio, ser muito mais que uma instituição de poder, um coletivo que desenvolve um estilo de vida diferenciado e alternativo à lógica capitalista da produção, o lucro ilimitado e o consumo desenfreado.
O pontificado do Papa Francisco é um tempo de gestão de uma instituição extremamente complexa como a Igreja Católica, por isso o aprofundamento ao longo de seu pontificado nas três grandes linhas de ação anteriormente citadas poderia contribuir significativamente para impulsionar a renovação da Igreja na direção de fidelidade aos “modos de vida” propostos no evangelho de Jesus e alternativos à lógica capitalista e consumista que afoga nosso mundo contemporâneo. Essa seria uma grande herança para recolocar a credibilidade da Igreja neste terceiro milênio como um coletivo histórico que testemunha a possibilidade de uma liberdade esperançosa além da mercantilização da vida, e com ela anuncia a Esperança de uma Nova Vida, que para os cristãos é Jesus Ressuscitado. ■