Edição 235 | 10 Setembro 2007

“Nunca foi tão difícil ser sindicalista como nesse momento”

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A crise que o movimento sindical vive reproduz uma crise maior, que é a do conjunto da sociedade. A opinião é de Anselmo Ruoso, presidente do Sindicato dos Petroleiros do Paraná e Santa Catarina. Para o sindicalista, a nova geração de trabalhadores é fruto de um processo construído em uma época de formação neoliberal. “Tudo o que eles aprendem e o que é reproduzido institucionalmente vem com essa visão de disputa, de individualidade, que tem que estar preparado para o mercado. Fica difícil você quebrar essa visão e criar o conceito de coletividade”, afirma Ruoso.

A entrevista com Anselmo Ruoso foi feita pelos colegas do CEPAT e faz parte de uma série que discute a crise do movimento sindical brasileiro. Na mesma perspectiva, foi publicada uma entrevista com a sindicalista Marisa Stedile.

O presidente do Sindicato dos Petroleiros afirma na entrevista que ser sindicalista hoje é “uma insanidade e uma loucura, mas uma bela insanidade e uma bela loucura”. Anselmo Ruoso é formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e está na presidência do Sindicato em seu segundo mandato. Acompanhe a entrevista publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU (www.unisinos.br/ihu), em 30-08-2007.

IHU On-Line – Por que há o desinteresse tão grande dos trabalhadores para com os sindicatos? Na década de 1980, havia disputa pela conquista das direções e hoje está difícil encontrar trabalhadores que queiram participar do sindicato. O que aconteceu?
Anselmo Ruoso - Eu concordo em grande parte com essa avaliação de que está difícil a participação no sindicato, mas todo processo de generalizações peca em algumas questões. Vivemos isso na própria diretoria, pois para fechar a última chapa foi um parto. O interesse em estar na linha de frente do próprio movimento sindical é difícil. Manter o nível de sindicalização é outra dificuldade. Exige um processo de convencimento que não é fácil. No entanto, há experiências muito boas. Recentemente, entraram na refinaria de Araucária cerca de 200 trabalhadores e construímos um processo de estar junto com eles na integração com a empresa. Isso representa uma diferença. Quando eles estão entrando principalmente na área que é o nosso braço forte, a operação que mantém a produção na refinaria, conseguimos mostrar o que é o sindicato. “Vender” a luta para eles já no começo é um outro diferencial. Hoje, esses companheiros estão muito mais participativos e fortes do que historicamente.

IHU On-Line – Mas, então, há um interesse dos trabalhadores com relação ao sindicato?
Anselmo Ruoso -
Eu creio que sim. Mas o problema é que nós vivemos numa sociedade muito mais complexa. Não é mais aquela sociedade da fábrica de linha de produção. Hoje, existe todo um forte poder de comunicação da empresa. O trabalhador na empresa não é mais um trabalhador, mas sim um colaborador. Sofre-se todo um processo de cooptação dos sujeitos e nisso se perde o conceito de operário e do saber, do entendimento de que sempre há disputa na relação capital e trabalho. É nos momentos de disputa e de crise que se tem um maior entendimento da importância do sindicato. Há também a consciência de que essa gurizada que está entrando no mercado de trabalho é fruto de um processo construído em uma época de formação neoliberal. Tudo o que ela aprende e o que é reproduzido institucionalmente vem com essa visão de disputa, de individualidade, de que é necessário estar preparado para o mercado. “É o indivíduo contra todo mundo”, e fica difícil você quebrar essa visão e criar o conceito de coletividade.

IHU On-Line – Portanto, é possível falar em uma nova subjetividade operária. Uma subjetividade na qual ganham predominância os interesses do indivíduo e não mais os da classe? Os trabalhadores ainda manifestam solidariedade a causas coletivas ou se recolheram ao seu mundo privado?
Anselmo Ruoso -
Hoje, na sociedade, eu não tenho dúvidas, a visão da externalidade é cada vez mais predominante. Há uma visão de que o trabalhador não faz diferença alguma. Tudo existe ao redor dele, mas independente dele. Aquele conceito de mudança, de que se pode mudar os problemas existentes, de que as coisas estão erradas, está se perdendo. Há um conformismo. A realidade existe porque existe. Há uma percepção da incapacidade de mudanças, de perda da esperança, do conformismo, da utopia em seu conceito negativo e, com isso, da ideologia. Essa conjuntura é um problema da sociedade em geral e se reflete no movimento sindical.

Quanto à solidariedade, ela existe até determinado momento. Nós estamos vivendo isso, uma experiência atual, de pequena dimensão, que revela que quando se mexe com o imediato, com o dinheiro, o interesse se reduz. O indivíduo pensa em se dar bem num determinado momento e não pensa nas conseqüências à frente e na coletividade como um todo. Então, falar de um conceito de subjetividade amplo, coletivo, não é um trabalho fácil. É fruto de uma crise sindical, mas qual? A gente só escuta que o movimento sindical está em crise.

Na verdade, é a sociedade que está em crise com este modelo, e o movimento sindical é apenas um reflexo dessa sociedade. Há um problema na sociedade. A classe está segmentada, como por exemplo, o nosso setor, o petroleiro. Petroleiro deveria ser todo mundo que entra na instalação da Petrobras, mas não é isso o que ocorre. Existem os próprios e os contratados, os temporários. Há uma segmentação que divide o próprio conceito de coletivo. Petroleiro é todo mundo que está lá dentro, não importa qual é a cor do crachá. Não se consegue nem vencer uma isonomia mínima entre todos os trabalhadores no próprio local e, para piorar, temos os gerentes e todos os processos de cooptação dos indivíduos e dos “colaboradores”. Cria-se essa individualidade difícil de ser revertida. Não é uma luta fácil.

IHU On-Line – Considerando a sua avaliação anterior, você acha que o discurso do capital que fala em um trabalhador participativo, criativo, plurifuncional, que saiba trabalhar em equipe, foi assimilado pelos trabalhadores ou eles manifestam resistências?
Anselmo Ruoso -
Tentam resistir! Os trabalhadores tentam resistir dentro do possível. Esse conceito de multifuncionalidade, por exemplo, dizendo que o trabalhador tem que ser especialista e, ao mesmo tempo, genérico, que ele “tem que bater o escanteio e cabecear” e que isso vai ser o diferencial dele em relação a outro que realiza apenas uma atividade, acaba por ser a garantia de emprego. São coisas que vão se reproduzindo na consciência coletiva e se tornam realidade. A empresa trabalha muito bem com isso, pois, ao invés de contratar três, ela contrata um, dá um computador e um celular para ele trabalhar, inclusive, em casa. Essa pessoa se sente com um grande status.

O grande risco que nós estamos correndo agora é de que se a pessoa se tornar jurídica terá que emitir uma nota fiscal do serviço. Assim, acaba-se com o contrato por tempo indeterminado e com os direitos trabalhistas. Chega-se ao ponto em que o trabalhador que tem uma carteira de trabalho assinada torna-se um privilegiado na sociedade em que a maioria já vive da informalidade. O trabalhador que tem uma carteira assinada precisa se adaptar ao sistema de gestão do momento, que é o de se explorar ao máximo que pode. Isso é histórico, mas o fato é que essa possibilidade de exploração se ampliou com a própria tecnologia, com os avanços da informação, com a capacidade de se assimilar novas tarefas, novos trabalhos. Tudo ficou muito amplo e o capital faz isso. A lógica é de explorar o máximo possível.

IHU On-Line – Mas, pelo que você está dizendo, então as resistências praticamente inexistem?
Anselmo Ruoso -
Elas existem quando há uma organicidade melhor. A dificuldade é vencer o conceito da individualidade que se sobrepõe ao da coletividade. Na sociedade, o que importa é o sujeito. E o sujeito agora não é mais nem o “operário”: é o colaborador da empresa. Eu não tenho dúvidas de que o trabalhador assimila esse discurso, porque a comunicação é poderosa. Não se vive mais naquela sociedade do Manifesto Comunista, na qual era fácil identificar o conceito de classe e de trabalhador. Nós vivemos uma complexidade que está mais para a teoria sistêmica do Luhmann  do que para o período da Revolução Industrial, de fácil visualização da relação capital e trabalho. Hoje, quando você fala da relação capital e trabalho, já acham um absurdo porque não existe mais esse conflito, porque até ele já foi flexibilizado. Acham que as coisas não são bem assim, porque existem colaboradores, normas de responsabilidade social, ouvidoria... não há mais conflitos.

A empresa minimiza os eventuais conflitos. Esse processo de cooptação apropria-se do discurso dos trabalhadores. Perde-se o papel da resistência operária. Nós estamos envolvidos num debate de uma norma certificadora SA-8000 , sobre responsabilidade social. Essa norma prevê a eleição pela empresa de um representante dos trabalhadores. O que é isso? Nós fomos o único sindicato nacional petroleiro que não deixou a empresa fazer um processo de eleição do representante dos trabalhadores. Um absurdo que desvia o sindicato e apropria-se da própria luta operária. Nele, a empresa, além de comandar, de subordinar, controla todo o sistema de oposição com o nome de representante dos trabalhadores. É como se o sindicato não fosse o legítimo representante dos trabalhadores.

IHU On-Line – Vocês foram o único sindicato contrário?
Anselmo Ruoso
- Sim, o único. Todos os demais sindicatos deixaram correr, participaram do processo ou se afastaram. Nós dissemos: aqui não! Indicamos o representante sem processo eleitoral - um diretor nosso. Contudo, foi sugerido um processo eleitoral tocado pelos trabalhadores e não pela empresa. No entanto, esta deveria reconhecer a Organização por Local de Trabalho – OLT, com o reconhecimento não de um, mas de vários trabalhadores. Nesse momento, a empresa deixou de querer brincar e acatou nossa visão. Assim, o diretor sindical é o representante aqui. Mas esse é o processo, é o sistema de gestão, o de fragmentar, desestruturar o próprio conceito de disputa. Eles se apropriam, minimizam e se antecipam à própria disputa da relação capital e trabalho pelo domínio da comunicação.

IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações dos trabalhadores hoje? É verdade que a PLR suscita maior interesse do que a reposição salarial?
Anselmo Ruoso -
A principal reivindicação continua sendo a de cunho econômico. De melhorar o padrão de vida. As cláusulas sociais de saúde do trabalhador, de condições de trabalho, ficam sempre em segundo plano. Tanto que a nossa estratégia de negociação é tratar primeiro das cláusulas sociais para tentar exaurir, conquistar o máximo de cláusulas sociais, para, depois, tratar do reajuste, porque quando esse processo termina é porque acabou a discussão. Deixar uma questão, por exemplo, da saúde do trabalhador como condicionante numa assinatura de acordo coletivo é insustentável. Não existe. A principal reivindicação continua sendo a questão econômica, direta ou indiretamente.

Que a PLR continua despertando um interesse maior do que a reposição salarial, eu não tenho dúvidas, principalmente dentro da nossa realidade. A PLR dos petroleiros, fechada recentemente, referente ao lucro do ano passado, foi de R$ 16.015,00 de piso. A construção neoliberal desse processo de cooptação do trabalhador é a de dar um quinhãozinho da lucratividade, para gerar uma monstruosidade de lucro. É esse o processo de cooptação que domina o trabalhador. É toda uma lógica sistemática, um processo muito harmonioso que a empresa faz. A empresa declara que quanto mais produzirem, quanto maior for a produção que conquistarem para a empresa, os trabalhadores sairão ganhando. “Vocês também são a empresa!”. Esse é o discurso.

E, hoje, o valor de PRL que atingimos se deve também em função da história que construímos. Depois da greve de 1995, quando houve grande embate contra toda a égide neoliberal, a categoria ficou ‘baqueada’, o próprio sindicato ficou praticamente quebrado e em que ponto nós íamos atacar? Poder de mobilização não existia mais. Nós ficamos anos sem conseguir fazer uma greve porque a categoria ficou acabada, e o pessoal terminava o mês para pagar cartão vencido do mês anterior. Qual foi a saída? A PRL foi o caminho para conseguir recuperar a categoria em um determinado momento nos meados de 1997, 98, quando ainda não se tinha a lei da PLR, mas já se regulava por medida provisória.

Hoje, chegamos a um absurdo, porque existem trabalhadores que ganham numa PRL mais do que ganhariam o ano inteiro de salário; é a remuneração variável dominando. Como é que se controla isso? Fica complicado, ainda quando a inflação está beirando 4% ao ano. Entre os trabalhadores, qual é a escolha? Receber um montante - que são doze meses de salário dele - ou ficar fazendo greve por 2% ou 3% de aumento? Hoje, é muito mais fácil fazer uma greve pela PRL do que uma greve por um reajuste salarial. Chegou-se a esse absurdo.

IHU On-Line – Os sindicatos estão mais corporativistas do que já foram?
Anselmo Ruoso -
No nosso caso, depois da greve de 1995, o sindicato se tornou extremamente corporativista, porque era uma questão de sobrevivência. A capacidade de estar vendo além não existia porque mal se conseguia gerir as questões internas. Claro que, com o passar do tempo, conseguimos sair um pouco daquele atropelo e começamos a nos envolver com outras questões. Reconheço que ainda é insuficiente esse processo de olhar a realidade externa. Quando se está num patamar bom, é o melhor momento de puxar todo mundo junto. E, quando se está em baixa, fica difícil pensar as questões externas. Hoje, como conseguimos nos recuperar e sobreviver, está mais fácil fazer um processo de formação junto com a categoria, do conceito classista, daquilo que amplia para além das questões de interesse apenas dos petroleiros.

IHU On-Line – Para muitos, o movimento sindical brasileiro está atrelado demais ao Governo Lula. Um dos exemplos é a posição da CUT em condicionar a sua participação no plebiscito sobre a Vale desde que não se aborde os temas do pagamento dos juros da dívida e da reforma previdenciária. O que lhe parece?
Anselmo Ruoso -
Nós fizemos recentemente uma reunião da nossa corrente dentro da CUT, e esse foi um dos grandes e polêmicos temas. Há uma incapacidade das próprias direções dos sindicatos de entenderem esse processo. Antigamente, era muito mais fácil identificar o opositor. Eu não tenho dúvidas de que há uma esquizofrenia dentro do movimento sindical. Num momento, você luta por questões do interesse dos trabalhadores, enquanto em outro essa luta não pode ir contra o governo que representa o interesse dos trabalhadores.

Esse processo de percepção do movimento sindical, principalmente ligado à CUT, cuja linha histórica de ligação com o governo é inquestionável, tem dificultado o próprio entendimento de separar as coisas. É princípio cutista a autonomia e independência sindical, mas, infelizmente, as pessoas não estão respeitando. Evidentemente, também não existe resposta fácil. Há uma responsabilidade grande, um governo mais popular que o anterior, um governo em constante disputa, mas que não poderia estar prejudicando a luta, apesar de entender que a disputa política existe e que irá refletir nos trabalhadores.

Fragilizar um governo hipoteticamente nosso, dos trabalhadores, em disputa, não é uma coisa fácil de entender e encontrar limites. Dar coro para um ‘Fora Lula’ hoje nós jamais faríamos, porque sabemos o que vem ao lado disso. A política liberalizante é um eterno risco para os trabalhadores.

Mas, ao mesmo tempo, não podemos ser levianos e fazer uma leitura simplista. A “Campanha da Vale” é um exemplo. Eu tenho uma leitura particular que seria um grande momento estarmos todos na rua, fazendo a discussão sobre a Vale. Porém, há o interesse também de outros movimentos de tentarem colocar uma cunha política. A questão do superávit primário, por exemplo. Eu concordo que deve ser discutida, mas estrategicamente para a questão da Vale prejudica uma boa possibilidade de reverter a “privataria” imposta pela direita. Só a questão da Vale não é fácil de ser esclarecida para a categoria e para a sociedade. Ela é complexa; precisa explicar como ela foi comprada, a barbaridade que foi o leilão, e não é com um panfletinho que se conscientiza a população.

Naturalmente, não é com três linhas que o pessoal irá entender o processo. A elite sabe o que é o superávit primário, mas a grande maioria da população não. Eu acho que nesse caso do plebiscito foi equivocado misturar os assuntos. De qualquer modo, isso também é fruto de que poucas vezes nós utilizamos esses instrumentos de consulta e quando utilizamos queremos colocar tudo lá. Nós temos pouco tempo de regime democrático no país e não sabemos utilizar ainda os meios democráticos. A participação democrática exigiria muito mais processos de plebiscito e referendos.

Em cada processo eleitoral, deveria haver consultas populares sobre questões polêmicas, pois diminuiria o custo, não precisaríamos fazer só um plebiscito exclusivo. Em resumo é isso: eu acho que há uma esquizofrenia, natural de certa forma, porque há uma ligação histórica com o próprio presidente, com o ministro da Previdência, que há pouco tempo era o ministro do Trabalho e antes presidente da CUT. Nesse processo incestuoso, infelizmente, as pessoas naturalmente não souberam separar as coisas e feriram princípios da Central, que são a autonomia e a independência.

IHU On-Line – O sociólogo Francisco de Oliveira afirma que com a entrada do Brasil no processo de globalização assistiu-se a emergência de uma nova classe social – resultante de uma “aliança” entre os setores financistas e o mundo do trabalho. De um lado, os tucanos promoveram as privatizações e ganharam prestígio e poder nas empresas privatizadas e passaram a ocupar altos postos nessas empresas. Do outro lado, os ex-sindicalistas ligados a Lula passaram a ter funções importantes nos fundos de pensão, que são grandes investidores nessas empresas. Para ele, esse processo fez com o movimento sindical perdesse a noção de quem é o adversário e explicaria a postura vacilante, por exemplo, da CUT. Você concorda?
Anselmo Ruoso -
Eu concordo em parte e até iria bem mais fundo. Eu diria que não foram apenas os tucanos que ocuparam grandes cargos nas grandes empresas. Os ex-sindicalistas não estão apenas nos fundos de pensão. Por exemplo, no caso das estatais, existem ex-sindicalistas em altos cargos na empresa. Eu não sou contra esse processo em princípio, e nem a favor também. Ocupar espaços dentro de um processo de disputa constante, mantendo todo o processo ideológico em prol dos trabalhadores, é legítimo. Qual é o problema de um trabalhador ocupar um grande posto em uma empresa? Eu não vejo mal.

Entretanto, isso tem feito mal, porque, na medida em que esse pessoal têm ido para dentro, e num quadro de esquizofrenia sindical, acaba entendendo que precisa cuidar da empresa e que seu papel é outro. Pelo menos, a visão histórica deles implicaria o desempenho de um outro papel. E o movimento que está por trás disso é o mercado. É essa a dificuldade do mundo do trabalho hoje. Antigamente, você conhecia quem era o empregador e estava mais clara a disputa da relação capital e trabalho. Hoje, na relação capital-trabalho, existem as normas certificadoras, a bolsa de valores, o mercado...

É abstrato e difuso o oponente. E é ele que domina, controla, imprime conceitos. Mas quem é “ele”? O próprio fundo de pensão faz parte da lógica do mercado. O fundo de pensão está marcado por incoerências. Ele se coloca na perspectiva de favorecer os trabalhadores, mas o primeiro prejudicado pelo não pagamento de dívida ou de moratória seriam ele próprio. Os trabalhadores, através dos fundos, que têm ações e títulos do governo, receberiam um calote. Quer dizer, não dá para não dizer que não existe uma complexidade, principalmente no mundo do trabalho, que não é de fácil solução e nem de fácil análise.

E quem é o mercado? São as grandes corporações que dominam o mundo. Fábricas “Playmobil” hoje estão aqui, depois desmontam e vão para outro lugar. Vão para qualquer lugar ou país, onde haja diminuição de custo. Há, com isso, o sucateamento das resistências e a exploração do trabalhador, que vai para onde a lucratividade estiver indo. Nem que seja um processo autofágico, que daqui a pouco não tenha mais sustentabilidade, pela precarização e exploração humana, a lógica é do lucro imediato e maior possível. Quem irá comprar a produção num mundo desumanizador? O sistema implode, mas isso não importa, pois o que interessa é a lucratividade do momento. Perdeu-se o conceito do mínimo razoável.

Antigamente, conseguia-se perceber o que o trabalhador conquistava. Mas isso está acabando, porque existem elementos externos que simplesmente não podem ser controlados. A grande questão é que a comunicação que domina reproduz esse sistema afirma diariamente isso e nós precisamos sobreviver dessa maneira. Dizem-nos que não há outro caminho, que é o fim da história e que nós não temos como reverter esse processo. Isso é o sistema, pois mexe com tudo, com a subjetividade, com a individualidade. Diante do fim da história, a idéia é que cada um cuide de si e o resto se dane.
A ida desses sindicalistas, já com essa percepção da fragilidade da Central frente ao governo, causou ainda um processo de fragilização dos sindicatos porque os quadros históricos, que fizeram grandes lutas naquela fase em que era fácil identificar o inimigo, largaram o barco. Claro que a situação não era fácil, e as lutas foram pesadas. No entanto, era fácil fazer a luta, a ideologia efervescia. No momento, nesse processo de alienação, de fragilidade do movimento sindical, os grandes quadros deixaram órfãos grande parte dos sindicatos, e, nessa leitura, essa nova geração, já fruto do próprio processo de formação neoliberal, perdeu o histórico da própria construção da luta e tem que se virar por conta e dar conta de tudo, o que não é possível! E, ainda, esses ex-sindicalistas podem ser vistos em cargos na empresa. Nós temos no RH da empresa um ex-sindicalista, um absurdo porque nós temos que bater contra esse ex-sindicalista.

IHU On-Line – Na sua definição, ser dirigente sindical hoje é...
Anselmo Ruoso -
É insanidade, é loucura! O sujeito não é muito normal e não tem como ser, porque tudo o que é externo a você diz que é a individualidade que deve ser privilegiada, que você deve abandonar tudo e cuidar da sua vida e, ao mesmo tempo, precisa vencer todo um processo de exploração coletiva, trabalhar a pluralidade individual num pensamento coletivo.
Ao mesmo tempo em que é uma insanidade e uma loucura, é também uma bela insanidade e uma bela loucura. Não é qualquer loucura. Acho que nunca foi tão difícil ser sindicalista, como nesse momento. A relação está muito complicada: não existe um processo de formação sobre a classe. Existe uma incapacidade de se sensibilizar para o conceito de coletividade. Para trabalhar o conceito de classe, você tem que ser corporativo em um determinado momento para tentar junto a isso um processo de formação. É tudo complicado. Antigamente, você tinha o regime militar e todo mundo era contra a ditadura. Hoje, vivemos num pseudo processo democrático em que todo mundo “pode” se dar bem.

A leitura é de um mundo de consumismo absurdo, mas, para consumir, precisa estar empregado. Toda a sociedade está engendrada em Adam Smith , para quem o trabalho está no centro do fomento de crescimento do Estado e da sociedade. Só que o próprio conceito de trabalho já não existe mais, pois está flexibilizado. E o que é o trabalho hoje?

No movimento sindical você vê de tudo. Há sindicatos em que tudo é tranqüilidade, calmaria... Existe um chavão que estar liberado no sindicato é não trabalhar e até com isso nós precisamos lidar. Eu, desde que entrei no sindicato, não tenho um avanço de nível na carreira. E eu escuto do pessoal que por causa do Governo Lula estou crescendo de nível todo ano. Cheguei mesmo a ganhar em nível gerencial e, o pior, veio do gerente da refinaria, pelas boas relações sindicais com a empresa. Fiz um documento devolvendo. Eu trabalho e acho que mereço como os demais trabalhadores, mas como ignorar a forma como veio? Princípios não se flexibilizam. Você precisa mostrar que não está vendido e, por estar numa condição de boa relação sindical, às vezes parece que se foi cooptado.

Ser dirigente sindical hoje também é reproduzir o sistema. É manter uma instituição reprodutora do sistema capitalista. É para isso que serve o movimento sindical de certa forma. É um apaziguador do processo todo. Quando estou fazendo um processo de luta, não posso me enganar que também estou reproduzindo a lógica do capital. Por isso, é um sistema de loucura e ter uma visão disso e uma percepção desse processo não é fácil. Porque ser dirigente sindical é, também, sinônimo de reprodutor de todo o sistema capitalista.

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