Edição 234 | 03 Setembro 2007

Dois perfis de uma mesma trajetória

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IHU Online

A face naturalista e os interesses políticos de José Bonifácio são indissociáveis, afirma o pesquisador Alex Gonçalves Varela. Na entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail, Varela destaca que para Bonifácio o conhecimento cientifico também era capaz de gerar riquezas. O historiador ressalta que, na época, as pesquisas eram incentivadas para “promover a industrialização do Reino português”. Assim, a Academia estava “extremamente conectada ao Estado português” e Bonifácio, enquanto funcionário do Império, estava disposto a regenerá-lo. O que mais interessou Bonifácio, segundo o pesquisador, foi a potencialidade econômica dos minerais, pois com esse conhecimento, ele ajudaria “a resolver os graves problemas econômicos que Portugal enfrentava naquele momento”. 

Varela é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), mestre e doutor em Geociências pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 2001, o pesquisador concluiu o mestrado com a dissertação Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom português: filósofo natural e homem público - Uma análise das memórias científicas do ilustrado José Bonifácio de Andrada e Silva (1780-1819). Sua tese de doutorado em Geociências na Unicamp tem o título Atividades Científicas na ‘Bela e Bárbara’ Capitania de São Paulo (1796-1823). É pós-doutor pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), no Rio de Janeiro, onde atualmente é bolsista.

IHU On-Line - Por que o interesse em estudar o lado cientista de Bonifácio? Esse campo ainda é pouco abordado pela historiografia brasileira?
Alex Gonçalves Varela -
A razão de estudar o perfil de naturalista de José Bonifácio de Andrada e Silva reside no fato do personagem ter sido explorado pela historiografia a partir da sua atuação enquanto estadista e parlamentar, ou seja, por seu perfil de político. Enquanto isso, o seu perfil de naturalista foi esquecido e pouco explorado pelos estudos sobre o personagem.    
 
IHU On-Line - Qual é o perfil de José Bonifácio enquanto filósofo naturalista?
Alex Gonçalves Varela -
O perfil de José Bonifácio enquanto naturalista caracteriza-se como um típico representante da chamada República das Letras. Ele freqüentou Academias Científicas, onde apresentou diversas memórias científicas, e realizou viagens científicas pelo Reino português e pela Capitania de São Paulo. Ocupou cargos públicos importantes, como o de Intendente Geral das Minas e Metais do Reino, instituição central para o programa reformista político-científico do governo de D. Maria I  e de produção do conhecimento científico sobre as produções minerais. Foi um estudioso atualizado com as principais correntes científicas da época, sobretudo com a ciência que ele praticava, a mineralogia. 

IHU On-Line - Por que o senhor considera que o perfil naturalista e o de homem público de Bonifácio são indissociáveis na história de vida dele?
Alex Gonçalves Varela -
José Bonifácio notabilizou-se não apenas como homem público, mas também como um estudioso e pesquisador do mundo natural. Em sua trajetória histórica, a face de naturalista e os interesses políticos são indissociáveis, fato que caracteriza o homem ilustrado do século XVIII. Como exemplo, mencionamos o francês Antoine Laurent Lavoisier  (1743-1794), que atuava, ao mesmo tempo, como químico e Ferme Générale, coletor de impostos do Antigo Regime francês. Não são duas carreiras diferentes ou sucessivas, mas dois perfis de uma mesma trajetória de vida que não podem ser de forma alguma cindidos: o de estudioso das ciências naturais e o de homem público.

Um cientista vinculado ao Estado Português

No período do governo de D. Maria I, ocorreu uma forte identificação entre ciência e política, ou melhor, entre aqueles que produziam o conhecimento científico e os que eram capazes de arregimentar apoio e recursos financeiros necessários ao desenvolvimento das ciências. O Estado português arregimentou os naturalistas da Academia Real das Ciências de Lisboa, com o intuito de acumular várias tarefas, entre as quais podemos destacar o mapeamento, o diagnóstico, o conhecimento e a orientação de políticas direcionadas ao levantamento das riquezas naturais, ou melhor, das “produções naturais” do território português e de todo o seu Império ultramarino. Esse fato permite observar o quanto a Academia, por meio das suas propostas de caráter científico, estava extremamente conectada ao Estado português.

Como exemplo, temos o caso de arregimentação do naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva pelo ministro da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho , para ocupar uma série de cargos públicos no âmbito da administração das minas e do ensino da Metalurgia e da Docimástica. D. Rodrigo não pouparia esforços em financiar uma instituição voltada para a administração das minas, matas e bosques.

Essa cooptação dos naturalistas pelo Estado, sobretudo no final do século XVIII, permite observar a valorização daqueles que detinham o conhecimento científico e técnico, sobretudo para dar o seu parecer sobre os mais variados assuntos econômicos/administrativos. Em síntese, isso demonstra o reconhecimento do poder da ciência pelo Estado.  
 
IHU On-Line - O senhor caracteriza Bonifácio como um funcionário fiel do império português. Seus estudos e conhecimento estavam apenas à disposição do império? Em que medida suas pesquisas contribuíram para a constituição de redes de informações sobre o reino português?
Alex Gonçalves Varela -
Sim, na medida em que ele era um funcionário do Império e estava disposto a regenerar esse mesmo Império. Acreditava no potencial da ciência como elemento fundamental para essa regeneração.

No âmbito da Intendência Geral das Minas e Metais do Reino, Bonifácio elaborou diversas memórias científicas e relatou em cartas a D. Rodrigo todas as atividades que vinha executando na instituição. Por meio dessas memórias e cartas, José Bonifácio ajudou a criar e a sustentar uma rede de informação que permitiu ao Estado do período da “Viradeira” conhecer, de forma mais aprofundada e precisa, todo o território português, ou seja, reconhecer os limites físicos dessa soberania, bem como as potencialidades econômicas do território administrado. Todas as informações fornecidas pelo naturalista e recebidas pelos dirigentes do Estado deveriam contribuir para o conhecimento global do espaço luso.

Memórias científicas 

Os naturalistas luso-americanos que realizaram investigações em História Natural no reino e na colônia, e aí incluído José Bonifácio de Andrada e Silva, trocaram intensa correspondência, tanto com as autoridades de Lisboa como com as autoridades locais. Havia, portanto, no período de final do século XVIII e início do XIX, uma conexão entre os atores que participaram do processo de construção de uma História Natural do Reino e das Colônias, mediada pelas autoridades governamentais coloniais, da Coroa e pelas instituições de investigação portuguesas coordenadas pelo naturalista Domenico Vandelli . De uma forma geral, eram as autoridades metropolitanas que enviavam cartas e avisos para os governantes locais solicitando o trabalho dos naturalistas. Esses, por sua vez, comunicavam os resultados de seus trabalhos aos governadores e, muitas vezes, diretamente às autoridades portuguesas. Suas memórias científicas, desenhos e amostras eram enviadas para Lisboa e levadas para as diversas instituições do Reino.

Na Intendência Geral das Minas e Metais do Reino, José Bonifácio construiu uma extensa rede de papel a partir de suas memórias e correspondências com D. Rodrigo. A atividade do Intendente foi de fundamental importância para o mapeamento geológico do território português, levantando os recursos minerais e indicando a localização dos mesmos por cada região que passava. Além disso, informava o estado em que se encontravam as minas, o estágio em que se encontravam as pesquisas mineiras, a análise da importância dos minerais para as atividades econômicas do Reino, entre outras. Registra-se que a maior parte das pesquisas dos veios se deu em busca de ferro e de carvão, dois elementos que adquiriram extrema importância com o advento da Revolução Industrial.
 
IHU On-Line - No estudo Memória sobre a pesca das baleias e extração do seu azeite, percebe-se as pesquisas de Bonifácio tinham o objetivo de gerar riquezas para Portugal?
Alex Gonçalves Varela -
Para Bonifácio, a natureza é fonte de conhecimento científico, mas também capaz de gerar riquezas que poderiam promover a industrialização do Reino português e, assim, promover a sua recuperação no contexto europeu. 

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação das memórias científicas de Bonifácio?
Alex Gonçalves Varela -
Nas Memórias, ganha destaque a tentativa do autor de inventariar o “estado da arte” da mineração em Portugal. Nelas, ele mapeou os problemas existentes na atividade mineradora e apresenta propostas para superar os entraves existentes ao seu desenvolvimento. O filósofo tentou fazer um levantamento extenso e pormenorizado das riquezas minerais presentes no solo português e destacou as potencialidades das mesmas para a nação. A mineração, ao lado da agricultura, constituir-se-ia na base fundamental das riquezas permanentes do Estado luso.
O conjunto de informações presentes nas memórias do naturalista José Bonifácio não se destinava a fins meramente administrativos nem alimentariam uma ciência especulativa ou teórica. O saber científico tinha um caráter eminentemente prático, pois a ciência que ele praticava tinha como fim ser útil. As descrições e amostras de produtos, sobretudo os minerais, que foram recolhidos durante as suas viagens de campo por diversos pontos do território português, destinavam-se não só à inventariação, catalogação e classificação das espécies, ou ao reconhecimento das potencialidades naturais, mas também deveriam contribuir para o desenvolvimento econômico do Reino, para o incremento das indústrias, manufaturas e do comércio, entre outros fatores.

Nas dissertações de Bonifácio, o conjunto de informações científicas estava todo ele baseado na observação e na experimentação. O conhecimento científico, para ele, tinha que ser prático e experimental. A ciência que o entusiasmava era aquela de matriz baconiana, que tinha como função resolver problemas práticos. A essa característica, juntava-se o fato de sempre fazer análises prospectivas em seus estudos e propor a necessidade de utilizar os recursos naturais de forma planejada e racional, pois eles continham grandes potencialidades econômicas para o Estado português. Dessa forma, pode-se afirmar que o conhecimento científico estava integrado a um programa que, desenvolvido na Intendência das Minas e Metais do Reino e publicado em Memórias na Academia Real das Ciências, tinha repercussões na ciência, na economia e na política.

Memórias mineralógicas

As Memórias elaboradas pelo autor se referiam aos trabalhos práticos concretos, descritos nos menores detalhes. Elas explicitavam como essa política portuguesa de aproveitamento racional dos recursos naturais, sobretudo os minerais, foi efetivada e posta em prática pela Intendência das Minas, órgão estatal dirigido por José Bonifácio, locus de produção de científica. As memórias mineralógicas constituíram-se em verdadeiros estudos analíticos das potencialidades minerais do país, através de exames cuidadosos de detalhes, de trabalhos de campo, de mapeamentos acoplados às informações históricas, obtidas tanto de documentos de arquivos como de ruínas arqueológicas – que, muitas vezes, datavam da ocupação romana do território português ou dos antigos reinados –, outras do conhecimento empírico acumulado pelos lavradores, “rústicos” do local, ou seja, a política da Intendência parecia priorizar as regiões de algum modo já conhecidas sob possibilidades de potencialidades  minerais a serem checadas, confirmadas, e mais uma vez exploradas racionalmente e cientificamente.

A quantidade de minerais identificados por José Bonifácio, em seu trabalho na Intendência, vinha ao encontro de uma política estatal que tinha como objetivo a produção mineral. Em função disso, ele examinou as ocorrências de diversos minerais, como o ouro, o chumbo, o ferro, a prata, entre outros.

Quanto à prática científica de José Bonifácio, observamos que ele seguiu o conjunto das práticas científicas mineralógicas no período do final do século XVIII e início do século XIX, inserindo-se em suas correntes principais, tanto pelos termos que empregava como pela sua metodologia de trabalho. Ele preocupava-se em descrever, identificar e classificar os materiais minerais em seu local de ocorrência, dando ao seu trabalho um caráter geográfico, no qual o trabalho de campo adquiria papel essencial.

Uma outra característica da sua prática científica foi a ênfase do naturalista na observação das regularidades permanentes. A prática científica de José Bonifácio, analisada através das suas Memórias, insere-se em uma tradição de pesquisa que buscava relatar as chamadas “regularidades permanentes”. O estudo de tais regularidades, também denominadas de “condições gerais ou constantes” ou “regularidades de disposição”, era uma prática dominante nos estudos geológicos do século XVIII, estando presente nos trabalhos de Buffon , Louis Bourguet , Nicolas Desmarest , Horace Benedict de Saussure , Jean-André Deluc , entre outros. O interesse em identificar e estudar as regularidades refletia o empirismo habitual da época, assim como o desejo de fazer generalizações, de se criar leis no domínio da geologia. Os autores supracitados estavam preocupados em estudar os grandes traços dos continentes e dos mares, a altura, localização, orientação e a espessura das montanhas, o movimento das águas dos mares e dos rios, a disposição das camadas estratigráficas, os minerais presentes em tais camadas, entre outras regularidades. Cabe ressaltar ainda que nos trabalhos daqueles autores imperava o estudo das regularidades estáticas entendidas como conseqüência de processo e não com as causas, ou seja, a explicação de como um determinado fenômeno ocorreu.         

José Bonifácio enfatizou em suas Memórias as regularidades estáticas, buscando sempre apontar o local das minas, fazer a descrição do terreno, quais os materiais que o formavam, a quantidade de minerais, como estavam contidos nas camadas estratigráficas, a sua cor, forma, tamanho, peso e dureza, se estavam em profundidade ou superfície. Essas são as principais regularidades observadas pelo filósofo em suas dissertações.

Estudos X potencialidades econômicas

O estudioso não se dedicou enfaticamente às reflexões teóricas sobre a formação da crosta terrestre em suas Memórias. O que mais lhe interessava era saber a potencialidade econômica dos minerais, para assim ajudar a resolver os graves problemas econômicos que Portugal enfrentava naquele momento.

Por meio da análise das memórias, José Bonifácio foi um naturalista que se caracterizava por ser eclético e pragmático. O ecletismo e o pragmatismo eram características do pensamento Ilustrado do século XVIII, uma vez que o próprio Voltaire  afirmava “meu amigo, sempre fui eclético”. E, assim também agia Bonifácio, que bebia em todas as fontes e tirava delas sempre o melhor, deixando de lado aquilo que não considerava de utilidade imediata. Um exemplo claro desse ecletismo era a utilização pelo autor de diferentes sistemas de classificação dos minerais, como o de Carl von Liné (Linneu) , o de Wallerius  e o de Abraham Gottlob Werner , que lhe permitiu classificar inclusive quatro novos minerais, como já comentamos. A recorrência a diversos sistemas era necessária para que ele pudesse conhecer e identificar os produtos minerais úteis aos interesses da Coroa portuguesa.

IHU On-Line - No campo das ciências e da química, quais são os estudos mais consistentes e relevantes produzidos por Bonifácio?
Alex Gonçalves Varela -
Seus estudos mais relevantes foram as memórias científicas (como eram chamados os textos de História Natural no século XVIII), apresentadas à Academia Real das Ciências de Lisboa, sobretudo aquelas no campo da mineralogia. Bastante interessante foi um parecer que ficou manuscrito até os dias contemporâneos, e recentemente publicado na Revista Manguinhos, no campo da química intitulado Parecer sobre o método de desinfectar as cartas vindas de países estrangeiros. 
 
IHU On-Line - Depois da Independência, de que maneira os estudos de Bonifácio contribuíram para o crescimento cientifico/econômico da nova nação?
Alex Gonçalves Varela - Infelizmente, após 1823, os seus projetos políticos e científicos para o Brasil foram por água abaixo, sobretudo após a demissão do gabinete dos Andradas e a dissolução da Assembléia Nacional Constituinte pelo Imperador. Eles se tornaram letra morta, não sendo concretizados.

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