Edição 234 | 03 Setembro 2007

Um projeto em confronto com o de integração dos Reinos

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IHU Online

Para a economista Ana Rosa Cloclet, “o projeto elaborado por José Bonifácio confrontava diretamente com o projeto de integração dos Reinos”. Questionada sobre em que consistia o programa de Bonifácio para a civilização de índios na sociedade nacional, ela explica:“É possível dizer que a partir de 1808 elas ganham prioridade no pensamento de José Bonifácio, impondo ao Estado o papel de agente ‘civilizador’”, tendo “a sagrada obrigação de instruir, emancipar, e fazer dos Índios e Brasileiros uma Nação homogênea e igualmente feliz” e, simultaneamente, eliminar a condição degradada dos negros, os quais, enquanto escravos, transformavam-se em “entes vis e corrompidos”, afogando nos brasileiros “os sentimentos nobres e liberais desde o berço” e “cercando-os desde a infância de uma atmosfera pestilenta”. As afirmações foram feitas em entrevista realizada por e-mail à IHU On-Line. Atualmente, Cloclet é docente nas Faculdades de Campinas (FACAMP).

Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Cloclet é mestre e doutora em História pela mesma instituição com a dissertação Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio: 1783-1823 e a tese Inventando a nação. Intelectuais ilustrados e reformistas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime português: 1750-1822. Cursou pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Escreveu as obras Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio: 1783-1823 (Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória, 1999) e Inventando a nação. Intelectuais ilustrados estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime Português: 1750-1822 (São Paulo: Hucitec, 2006).

IHU On-Line - Na etapa européia de sua vida, José Bonifácio teve uma formação acadêmica e ocupou diversos cargos na administração do Reino. Como essas experiências contribuíram na formulação de suas idéia de nação?
Ana Rosa Cloclet -
Compreender os fios de continuidade entre o reformismo ilustrado luso-brasileiro - empresa que visava, a partir do arejamento mental proporcionado pela absorção das “Luzes” em voga no mundo europeu no século XVIII, reforçar os próprios sustentáculos da Monarquia absolutista e os mecanismos garantidores da coesão imperial luso-brasileira – e o projeto nacional andradino, implica perquirir os motivos pelos quais o Brasil fez-se Império antes mesmo de se fazer nação. O tema tem mobilizado a reflexão de diversos estudiosos interessados em desvendar facetas inéditas deste verdadeiro enigma que constitui a formação do Estado e da Nação brasileiros, interesse mediante o qual se consolida a proficuidade de análises articuladas das questões imperial e nacional, bem como a tônica conferida à atuação de intelectuais e estadistas que, engajados no esforço conjunto pela confecção de reformas originalmente destinadas a “emendar o velho Reino” português, acabaram esboçando os próprios contornos de um projeto de Brasil independente.
Este é o enfoque que, a meu ver, justifica a relevância conferida a José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), legítimo herdeiro de idéias e práticas políticas cunhadas no âmbito do reformismo ilustrado luso-brasileiro e, desde 1821, principal mentor e viabilizador da Monarquia Constitucional, na figura de D. Pedro I. Fixando a dimensão imperial do projeto nacional andradino, é possível afirmar que, se há uma evidente perenidade da idéia de Império na tradição lusa - remontando aos cronistas dos Quinhentos e dos Seiscentos - a novidade que se instala desde o início do século XVIII é que sua inspiração parte de uma reflexão cosmopolita acerca da fragilidade de Portugal no equilíbrio de poder entre as potências européias. Especificamente, as Conquistas deixavam de ser vistas como meros “acessórios” de Portugal, passando a “seu principal e ainda garantes da sua conservação” – conforme instruía o estadista D. Luís da Cunha -, com destaque para “as do Brasil”, desde então concebido como verdadeiro esteio da Monarquia, dada a exuberância de seu potencial natural.

Em outros termos, era a convicção coeva de que “sem o Brasil, Portugal é uma insignificante potência”, que inspirava as políticas reformistas no sentido de criar um novo modelo de exploração colonial, no qual o desenvolvimento da metrópole passava a ser concebido conjunta e articuladamente ao da colônia. Colocando a natureza como base e justificativa da coesão imperial e do impulso econômico, é este o momento que marca uma nova concepção do Império, pautada na percepção da singularidade do até então genérico Brasil, “(re)inventado”, portanto, no bojo de uma determinada cultura científica do final do Setecentos.

Preocupações e referenciais teóricos

É neste universo de preocupações e referenciais teóricos que José Bonifácio ingressaria desde 1789, como sócio-correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, agremiação fundada em 1779 e que mais fielmente exprimiu o pragmatismo cientificista, que dera o tom da orientação mental e política do reformismo ilustrado pós-pombalino. Tendo cursado as Faculdades de Leis e Filosofia em Coimbra – nas quais ingressara em 1783 -, inseria-se, então, na principal instância arregimentadora da intelectualidade luso-brasileira, compartilhando do propósito comum aos demais sócios sobre a premente regeneração econômica do Reino e de uma formação intelectual que primava pela indissociável articulação entre teoria e prática a serviço da Monarquia, aprimorada durante seu escalonamento para uma excursão científica por diversos países europeus, entre 1790 e 1800. O alinhavo entre a formação intelectual e sua experiência de homem público¬ – ocupando diversos cargos desde que retornara a Portugal, em 1801- fora coroado por uma insaciável sede de conhecimento sobre todos os assuntos que dissessem respeito ao Império português, o que José Bonifácio procurava suprir, em grande medida, pelos estudos de História. Assim, na linha seguida pelos demais reformistas da Academia de Lisboa – da qual tornara-se secretário, em 1812 – elaborava seu diagnóstico acerca da decadência do Reino – atribuída à “mania das Conquistas e Colônias” e ao “sistema dos descobrimentos” -, bem como uma espécie de receituário sobre a melhor “arte de governar”.

A partir dos conhecimentos colhidos nas obras de viajantes e naturalistas que percorreram as regiões ultramarinas, mas também nos escritos dos jesuítas e nas correspondências dos administradores coloniais - com especial ênfase naquelas enviadas de São Paulo, sua capitania natal - convencia-se da centralidade do Brasil no sistema imperial, esboçando planos para o desenvolvimento da indústria e dos incentivos à agricultura, tanto na metrópole quanto nas colônias, pois, segundo ele, ambas teriam “interesses iguais e recíprocos”, de forma que, “se a Colônia se empobrece sofre a Metrópole, e vice-versa. É uma Lei da Natureza”. Em suas inúmeras Notas, pensamentos e memórias descrevia fielmente a natureza brasílica, seu potencial econômico, aspectos de sua demografia e comércio, concluindo, ao fim e ao cabo, que “Portugal foi uma estrela errante que brilhou por um instante e apagou-se para sempre”, cuja prosperidade econômica e soberania política dependeriam, necessariamente, da preservação e dinamização do sistema luso-brasileiro, sustentado por uma Monarquia ilustrada, ao sabor da ensaiada no governo de D. Maria I. Este, portanto, o fio de continuidade entre o Império luso-brasileiro e o Império Constitucional Brasílico. De outra forma, este o percurso através do qual José Bonifácio transitou dos propósitos reformistas destinados a revigorar a Monarquia portuguesa, para a difícil de “criar então, como por milagre, uma Nação nova, grande e respeitável”, conforme ele próprio reconhecia.

IHU On-Line - A posição de José Bonifácio pró-independência política e sua ação como articulador da elite brasileira foi construída no curto período entre 1820 e 1822. Como se deu esse processo?
Ana Rosa Cloclet -
De fato, pode-se dizer que a articulação da independência foi forjada nesta conjuntura mais curta, de 1820-1822. Contudo, compreender o esgarçamento da unidade luso-brasileira remete, necessariamente, à inflexão política comportada pela transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, marco fundamental da crise do Antigo Regime português. Inaugurando um período de “inédita aceleração histórica no mundo luso-americano”, implodia-se, então, com o próprio conceito de metrópole - entendida como centro para o qual convergem as diferentes partes da Monarquia –, de modo que os “reinóis” de antes tornavam-se não mais “metropolitanos”, mas apenas “europeus”. Uma significativa alteração, acreditamos, para o plano das alteridades e identidades em construção.

No concernente aos projetos políticos formulados pelo âmbito dos estadistas portugueses, 1808 impunha uma inflexão fundamental à idéia do “vasto Império luso-brasileiro” - dado que Portugal deixava de ser o “ponto de reunião” das partes e o “assento da Monarquia” -, implicando a necessidade de articular as novas bases sociais de sustentação da autoridade régia na sua nova sede, alterando as “tradicionais rotas de peregrinação” no espaço imperial e, no limite, impondo repensar os próprios fundamentos simbólicos da Monarquia.

Assim, guiados pelo intento de que do Brasil dependia a “regeneração” do velho e decadente Portugal, passaram a estruturar na porção americana do Império todo um aparato institucional e administrativo, reproduzindo unidades paralelas do governo e seus respectivos cargos, com vistas a estabelecer as bases políticas do novo Estado soberano. Além disso, impunha-se o forjamento de vínculos eficazes entre a pessoa real e os grupos influentes da sociedade colonial, o que se deu, em boa medida, pela prática de concessão de títulos, honrarias e mercês por parte da Coroa, em troca do suporte político. Derivava daí toda uma política de agraciamento dos negociantes de grosso trato - únicos detentores de liquidez suficiente para fazer frente às despesas do momento -, que correu paralelamente à política de integração mercantil do Centro-Sul, com especial impacto na região Sudeste de Minas Gerais, então tornada no principal núcleo produtor e abastecedor do mercado carioca. A ela correspondeu um processo mais amplo de fundamentação das bases estruturais do Estado nacional e de emergência de grupos econômicos locais, portadores de projetos políticos alternativos de tipo nacional mas, de qualquer forma, irreversíveis ao antigo estatuto colonial.

Às entusiásticas expectativas nutridas pelos habitantes do Brasil, em razão da  percepção de que a proximidade ao centro decisório do poder poderia trazer-lhes benefícios bem concretos e uma maior possibilidade de participação na “gestão da coisa pública” , contrapunha-se o inegável sentimento de “orfandade” pelo qual foram tomados os súditos peninsulares, agravado pela demora de D. João VI em regressar a Portugal, mesmo após o fim da Guerra peninsular. Esta a oposição de interesses que, progressivamente, gestaram as condições para a Revolução Constitucionalista iniciada no Porto, em agosto de 1820, rompendo com a própria Monarquia absolutista.

Desde então, generalizava-se o sentimento de que a “novação” do pacto político nacional deveria assentar-se na confecção de uma Constituição a ser elaborada pelas Cortes reunidas em Lisboa, desde 1821, formadas por deputados capazes de representarem os interesses das diferentes províncias do Império. José Bonifácio de Andrada e Silva - à época chamado para dirigir a eleição da Junta paulista - foi quem melhor sistematizou os termos que passaram a nortear esta disputa transatlântica pela hegemonia do poder.

Entendendo a “Constituição” como o “Pacto Social em que se expressavam e declaravam as condições, pelas quais uma Nação se quer constituir em Corpo Político”, sendo seu fim “o bem geral de todos os indivíduos” que nele entrassem, instruía a deputação paulista a defender os interesses gerais da Nação, sem deixar de contemplar os específicos da província. Da mesma forma, opunha-se aos decretos lisboetas de 29 de Setembro de 1821, que determinavam o regresso do Príncipe D. Pedro a Portugal, interpretados como verdadeiro projeto recolonizador das Cortes, que não teriam outro fim senão “desunir-nos, enfraquecer-nos, e até deixar-nos em mísera orfandade, arrancando do seio da grande Família Brasileira o único Pai comum, que nos restava”.

Confronto com o projeto de integração dos Reinos

Tratava-se, em suma, de apoiar a unidade imperial não mais numa suposta natural reciprocidade de interesses, mas numa paridade de direitos, o que justificava não apenas sua reivindicação pelo igual número dos deputados dos três Reinos enviados às Cortes Gerais, como a necessidade de o Brasil contar com uma sede do Executivo, vislumbrada como condição de sua integridade interna. Por fim, atentando para a “diversidade do clima e estado da Povoação, composta no Brasil de classes de diversas cores, e pessoas umas livres e outras escravas”, reivindicava uma “Legislação Civil particular” para este Reino.

Nos termos expostos, o projeto elaborado por José Bonifácio confrontava diretamente com o projeto de integração dos Reinos, defendido pela deputação portuguesa. Neste clima, acirravam-se as tradicionais rivalidades entre os habitantes dos dois hemisférios - excitando o “descontentamento de todo o Brasil” com a atitude das Cortes - e, do ponto de vista da atuação andradina, deslocando sua ênfase das condições da unidade entre os Reinos para aquelas que deveriam garantir a integridade do Brasil, como corpo político autônomo. Este foi o clima que determinou a aceleração dos fatos, os quais acabaram fugindo ao encaminhamento político das discussões em Cortes.
Apesar de o texto final da Constituição acabar aprovando a existência de uma delegação do Executivo no Brasil, encarregada a uma regência, e a autonomia das províncias para dela ficarem independentes, unindo-se diretamente a Portugal, já por esta altura D. Pedro, decidira convocar uma Assembléia Constituinte e Legislativa no Brasil (03 de Junho de 1822), reconhecendo, pouco tempo depois, que este caminhava a passos largos e inexoráveis no caminho da completa autonomia política, confirmada pelo 7 de Setembro.

IHU On-Line - Em que consistia o programa para civilização de índios na sociedade nacional?
Ana Rosa Cloclet -
É possível dizer que, embora tais idéias viessem sendo amadurecidas desde sua fase de Coimbra (1783-1789) - quando, já então, ocupava-se de medidas destinadas a “remediar a sorte infeliz destas duas extensas classes de indivíduos do Brasil” -, a partir de 1808 elas ganham prioridade no pensamento de José Bonifácio, impondo ao Estado o papel de agente “civilizador”, tendo “a sagrada obrigação de instruir, emancipar, e fazer dos Índios e Brasileiros uma Nação homogênea e igualmente feliz” e, simultaneamente, eliminar a condição degradada dos negros, os quais, enquanto escravos, transformavam-se em “entes vis e corrompidos”, afogando nos brasileiros “os sentimentos nobres e liberais desde o berço” e “cercando-os desde a infância de uma atmosfera pestilenta”.

Sob este enfoque, portanto, apontava como os “dois objetos capitais para o Brasil”, “Legislar e moldar de novo Índios e Escravos de raça Africana”. No primeiro caso, recomendava o “casamento de Portugueses e mulatos com Índios, cuidando principalmente em que estes se vão estabelecer nas novas aldeias, a fim de se não despovoarem com a emigração dos Índios”; a atribuição de um “prêmio pecuniário a todo Cidadão Brasileiro ou branco, ou de cor, que se casar com Índia-gentia”; bem como o estímulo ao comércio interno que, assumindo esta função social, acabaria estimulado pela própria domesticação dos índios bravos do Brasil, dando novo fôlego às reformas em prol da almejada solidez política do Império. 

Em todos estes casos, a política civilizatória projetada pelo Andrada desvendava a intenção de integrar o índio à sociedade brasileira enquanto ente econômico - fosse como “caçador”, “pastor” ou “lavrador” - o que, se por um lado esclarecia o sentido conferido ao termo “civilização”, por outro revelava as interfaces entre as questões do índio e do negro. Especificamente, o fato de a escravidão conferir uma conotação degradante ao trabalho, incompatível com o intento de fazer com que os “índios trabalhem com a enxada como os negros” e que “sejam tão estimados como os brancos, que julgam por vileza o romper o seio da terra, ainda mesmo os que a pouco deixaram de conduzir o arado, de cuidar das cabras e porcos”.

Mas a escravidão fundava um problema político ainda mais amplo, representando, naquele momento, uma ameaça à própria preservação da porção americana do Império. Referenciado nas leituras do publicista francês Dominique De Pradt - segundo o qual as “Colônias que precisam de Pretos perdem-se pelo aumento desta povoação estranha que recebem em seu seio” - e na então recente experiência do Haiti, temia que o elevado número de escravos do Brasil seguisse este último exemplo, fato que acreditava plausível mediante a peculiar situação do Rio de Janeiro, referido como a “Nova Guiné”, que tinha na escravatura o “inimigo político e moral mais cruel” do Império. Desse modo, propunha Leis “regulativas” da escravidão, destinadas a abrandar o tratamento dos negros, aprimorar seus usos e costumes e, através da promoção dos casamentos entre brancos, índios e negros, promover sua lenta assimilação ao corpo social. Aqui, o Estado assumiria um papel interventivo na esfera privada do poder, suavizando as relações entre senhores e escravos e distribuindo a estes últimos terras para o cultivo, bem como educação física e moral, de forma a torná-los aptos à liberdade.

Miscigenação como civilização

Estas idéias surpreendem por vislumbrarem a miscigenação como um dos principais métodos a ser empregado no caminho da civilização. Neste sentido, ao avaliar os obstáculos que a escravidão representava ao desenvolvimento da Nação, José Bonifácio não recorria a uma argumentação racial, denunciadora da inferioridade do negro e tão em voga no século XIX. Visava os efeitos maléficos da instituição e não da raça, muito embora reconhecesse que a diferença de cor representasse uma barreira a mais na assimilação da população heterogênea, pois, segundo ele, “Não só o escravo aqui é inferior ao amo, mas o negro o é também ao branco”.

Acreditava na vitalidade social promovida pela “mistura de sangue” – pois “tem-se notado que a população mestiça é muito mais ativa” - e era com tal propósito que defendia as iniciativas de colonização do país com imigrantes estrangeiros e, principalmente, os europeus, pois assim a raça se “branquearia”, facilitando a assimilação social do liberto. Recomendava, ainda, uma especial atenção aos “Mulatos”, que, apesar de “soberbos e revoltosos”, “são muito habilidosos”.

A questão da escravidão remetia também ao problema da estrutura fundiária do país, pois permitia a existência de grande extensões de terras incultas e a baixa produtividade da lavoura, ao barrar a introdução de novas técnicas. Assim, encarava a civilização dos índios como condição essencial para o fim da escravatura, e esta como necessária medida a ser acompanhada pela redistribuição das terras em pequenas e médias propriedades. Em seus Apontamentos sobre as sesmarias do Brasil, condicionava suas doações a que “os donos sigam novo método de cultura à européia”, prevendo ainda a incorporação das terras incultas aos bens da Coroa, que deveria vendê-las e aplicar a renda nas “despesas de estradas, canais e estabelecimentos de colonização de Europeus, Índios e negros forros”.

Sob esta ampla perspectiva, portanto, o problema social no Brasil aparecia como requisito essencial à garantia da coesão política do Império luso-brasileiro, pois acreditava que “Quando o governo se estreita sobre poucas cabeças, perde forças, e o corpo político a sua solidez: à proporção que ele se estende sobre um maior número, o todo prospera e faz-se inabalável na sua unidade”.

IHU On-Line - Nos projetos apresentados por Jose Bonifácio à Assembléia Constituinte e nas suas propostas de constituição de nação, é possível perceber a influência dos pensadores iluministas europeus?
Ana Rosa Cloclet -
O ambiente reformado da Universidade de Coimbra, bem como o percurso por alguns dos principais centros científicos do país e da Europa Setecentista, seguramente constituíram referência fundamental à formação do pensamento andradino. Contudo, compreender a “filtragem” que as “Luzes” receberam pelos ilustrados e reformistas luso-brasileiros da época exige atenção não só às necessidades específicas do Reino – e do Império, como um todo – mas àquilo que pode ser considerado “o primeiro padrão de referência na filosofia portuguesa dos setecentos”: seu marcado ecletismo. Isto porque, conforme interpretação de Francisco Contente Domingues, se por um lado as “vozes da renovação levantaram-se contra o notório imobilismo da escolástica perante os novos caminhos da ciência e da filosofia, tal como a consideravam”, por outro, “não era fácil, ou sequer única, a via alternativa”.

Daí, nos textos dos reformistas e intelectuais da época – especialmente nas Memórias econômicas elaboradas no âmbito da Academia real das Ciências de Lisboa –, tal ecletismo fundamentar uma atitude pragmática em relação ao conhecimento, própria à filosofia do século. Além do evidente acento conferido ao cientificismo das Luzes e à crença na razão transformadora, os intelectuais da Academia de Lisboa revelaram um articulado de princípios e teorias os quais, longe de indicarem uma tendência definida, obedeceram à própria necessidade de se dar respostas específicas a problemas variados, atestadores da genérica noção de decadência do Reino. Era nas palavras de um dos mais ilustres sócios da Academia – o naturalista italiano Domingos Vandelli - que este sincretismo de idéias e princípios, lastreado pelo pragmatismo cientificista seria claramente definido, ao recomendar que “todos os ramos da Economia Civil, para que seja útil ao Reino, devem ser regulados por princípios de uma boa Aritmética Política; assim não se devem seguir sistemas, sem antes examiná-los e confrontá-los com as atuais circunstâncias da nação”.

Ao reclamar a importância da Estatística para o “conhecimento perfeito de um País que gradualmente descobre recursos, que os Políticos desconhecem”, Manuel de Almeida - o Visconde da Lapa - deixou registrada uma das poucas reflexões essencialmente teóricas da Academia, delimitando as fronteiras do pensamento econômico daqueles intelectuais, através dos três sistemas básicos por eles instrumentalizados: o “Crítico, Mercantil e Fisocrático”, o primeiro associando-se à economia política liberal inglesa, o segundo ao “mercantilismo clássico” e o terceiro à fisocracia. Segundo ele, os mesmos concordariam por entenderem, respectivamente, “a Agricultura, a Manufatura e o Comércio” como as bases da “riqueza de uma Nação” e por defenderem a adequação da Indústria à “natureza do país”. Variariam quanto à “predileção por cada um destes objetos”, bem como em relação ao ponto ideal da intervenção do Governo na direção das liberdades individuais.

Reformas para o reino português

A partir deste misto de dominantes teóricas, José Bonifácio, a exemplo de seus pares, projetaria as reformas para o Reino português e Ultramar. Definindo-se como “filósofo, isto é, constante indagador da verdadeira e útil sabedoria”, tomava a “Filosofia’ como a “mestra da vida, a educadora dos Povos e dos Príncipes; a guia da Legislação; a protetora da Agricultura e abundância interna do Estado; a sentinela alerta, que vigia acordada sobre os vícios e crimes, que nascem do erro e falta de amor e do belo moral”.

Esta é a concepção que justificava o papel central conferido à reforma do ensino, bem como à criação de estabelecimentos científicos, no Reino e seus domínios. Já em 1797, advogava a necessidade de uma Sociedade de Filósofos Lisbonenses; da mesma forma, projetava a criação de Sociedades Econômicas e a Reforma das Primeiras Escolas, a ser seguida em diversas províncias do Reino - “Coimbra, Porto, Braga, Bragança, Leiria, Setubal (...) Évora, Beja, Aveiro, Viana” - e do Ultramar - “Rio, Vila Rica, Mato Grosso, Vila Boa, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Maranhão, Santa Catarina, Rio Grande de São Pedro, Angola, Moçambique, Goa.

Sob este mesmo enfoque, sugeria ao Conde de Funchal, em 1813, a necessidade de que “a razão e as ciências ganhem pés diariamente” no Brasil, tendo em vista a falta de “educação física e científica” que afetava seu povo - mas também o de Portugal, comparado ao próprio “Inferno de Dante, onde quem entra deixa toda a esperança à porta” -, contrastante com sua centralidade no conjunto do Império. A preocupação ganhava contornos mais específicos no seu Esboço de uma Universidade no Brasil, projetada para ter “assento em São Paulo, pelo bom clima e salubridade do ar, barateza de comestíveis e alojamento e pela fácil comunicação com as capitanias do Centro e da Costa”.
Além da preferência pela sua terra natal, manifestava aqui uma clara influência do naturalismo sob o qual formara-se intelectualmente, prevendo “uma base científica com elementos das ciências físicas e naturais” e, na classe de Jurisprudência ¬- a terceira era a de Medicina - o destaque para as cadeiras de Direito Natural e Pátrio. Em outros termos, o projeto conformava uma estrutura pedagógica na linha dos Estatutos pombalinos para a Universidade de Coimbra, sob cuja orientação formara-se o próprio José Bonifácio, sintonizados, por sua vez, com a Filosofia do século.

A crença na razão transformadora justificava ainda o papel conferido ao “homem de Letras”, o qual acreditava “pelo exercício habitual da razão e do gosto fortifica ambas as coisas, e cria para si prazeres continuamente renovados”, sendo assim “o mais feliz dos homens”. Aí, embutia-se o mesmo sentimento dos demais membros da Academia de Lisboa, os quais, associando saber e poder, viam-se como portadores da missão de orientar a política nacional, executar as reformas prementes e capacitados a julgarem “méritos”e “virtudes”. Todas estas concepções afinadas ao papel que os filósofos das Luzes se auto-imputavam.

Com base nesta opinião - que se referia à sua própria condição - e na constatação de que o “quase nenhum melhoramento de Portugal são falta de probidade e zelo em grande parte dos empregados públicos, e ignorância não confessada em quase todos” -, relegava ao “homem de letras” o papel de Conselheiro dos Tronos e principal encarregado da administração do Império. Idéia fecunda pois, a meu ver, iluminaria sua proposta endereçada às Cortes de 1822, de um Executivo local, com legislação contemplativa das particularidades provinciais, bem como sua idéia acerca dos homens adequados para assessorar D. Pedro.

Os projetos andradinos não se restringiram ao plano da educação moral e científica da sociedade. Revelando-se um homem de seu tempo, preocupava-se com o desenvolvimento das ciências e da indústria – elaborando um plano para o estabelecimento de Sociedades Econômicas em Portugal, destinadas a “promover a indústria popular”; para a criação de uma Administração das Minas e Escolas práticas de Metalurgia - posteriormente concebidas como uma Escola Prática de Minas, “para fazer florescer as minas do Brasil e Portugal” -; além de refletir amplamente sobre os objetos da agricultura. Revelando forte influência da fisiocracia, referia-se a este  último ramo de atividade econômica como tendo sempre atraído sua “atenção e amor”, tornando-o temática privilegiada de suas inúmeras Notas e apontamentos.

Além da agricultura, mencionava novos objetos econômicos, como o aperfeiçoamento e aumento das salinas da Costa e nitrerias naturais do Centro da Bahia, a promoção das pescarias - “principalmente as da minha capitania” -, o melhoramento dos métodos da pecuária e, especialmente, a indústria de “lãs, seda e cânhamos”. Neste último caso, a reflexão de José Bonifácio era inspirada na idéia compartilhada pelos intelectuais da Academia de Lisboa, segundo a qual “sem fábricas e manufaturas nenhum Estado é rico e independente.

Todas estas idéias e preocupações fazem de José Bonifácio um autêntico herdeiro das Luzes, delinenando sua atuação política no contexto mais imediato da independência quando então impunha-se lidar com os principais vieses de nossa formação colonial e escravista. No plano político, criando uma identificação entre Estado e sociedade - fazendo esta última reconhecer-se como representada no primeiro -, mediante a projeção da figura de D. Pedro, para a qual concorreram, simultaneamente, práticas e mecanismos típicos do Antigo Regime e uma noção de pacto bebida no cerne do liberalismo político das Luzes. No plano social, criando ideologicamente uma identidade nacional em contraposição ao inimigo externo e encampando um projeto que, embora de longo prazo, visava a integração de partes heterogêneas, num “corpo sólido e político”, o que implicava a superação da ordem escravista. No plano econômico, tratando de uma série de reformas - dentre as quais a própria abolição do tráfico africano -, destinadas à completa internalização do processo de acumulação de capital, já iniciado com a quebra do pacto colonial, em 1808.

IHU On-Line - Como intelectual formado nos quadros da ilustração européia, José Bonifácio acreditava que poderia convencer a elite brasileira a importância dessas reformas? Como buscou fazer isso?
Ana Rosa Cloclet -
Ele concebia a dificuldade de tal empresa. Sabia que era preciso interessar homens ignorantes e fincados no desejo de distinção social. Assim, na conjuntura mais imediata da independência, se por um lado alimentava o temor das elites brasileiras acerca dos riscos trazidos pelo republicanismo – que ameaçavam a integridade brasílica e acenava com a ampla difusão do princípio da igualdade de todos perante a Lei – por outro, tratava de promover a coesão de seus amplos setores em torno da Monarquia Constitucional, na figura de D. Pedro. Anos depois, já no seu exílio, em Bordéus, justificava tal atitude da seguinte forma: “Acusam-me alguns, que plantei a Monarquia. Sim, porque vi que não podia ser de outro modo então; porque observava que os costumes e o caráter do povo eram eminentemente aristocráticos; porque era preciso interessar as antigas famílias e os homens ricos, que detestavam ou temiam os demagogos; porque Portugal era Monárquico, e os brasileiros eram macacos imitadores. Sem a Monarquia, não haveria centro de força e união, e sem esta não se poderia resistir às cortes de Portugal, e adquirir a Independência Nacional”.

IHU On-Line - Em 1823, Bonifácio apresentou uma Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura no Brasil, na qual defendia a extinção gradual da escravidão e a emancipação dos escravos. O que ele pretendia com essa atitude?
Ana Rosa Cloclet -
Seu objetivo era, sem dúvida, colocar em prática as reformas sociais, desde antes projetadas, tratando de formar um povo brasileiro, o cidadão pleno em direitos e deveres, nos moldes de uma nação liberal. Neste sentido, a idéia de uma abolição gradual vinha em sintonia não só com sua formação intelectual – a concepção cunhada no cerne do próprio Iluminismo, de que, assim como na natureza, as transformações políticas e sociais devem se dar por etapas, e não aos saltos -, mas com as necessidades do momento. Primeiramente, é preciso considerar que José Bonifácio estava depondo contra a escravidão do seio de uma sociedade escravista, o que impunha limitações ao seu projeto, principalmente se atentarmos para a grande proporção de escravos em relação à minoria branca e, conseqüentemente, os riscos de se divulgar um discurso antiescravista. Mas, além disso, a necessidade de interessar as elites brasileiras, para viabilizar seu projeto de Monarquia Constitucional, impunha um tom moderado à questão. Por fim, é preciso considerar que a sociedade brasileira, estruturada em bases tipicamente coloniais, tinha no escravismo o fundamento da economia nacional. Dessa forma, a emancipação dos escravos deveria ser gradual, a fim de evitar que esta última se desestruturasse.

IHU On-Line - A criação de uma cultura comum, objetivo de Bonifácio na época, pode ser vista como uma atitude preconceituosa e dominadora?
Ana Rosa Cloclet -
Seria um anacronismo pensar nestes termos. José Bonifácio é um homem de seu tempo e, do ponto de vista das camadas dominantes, não caberia outra forma de se pensar senão a partir da projeção de valores e princípios coesivos formulados pela ótica de homens brancos e proprietários de escravos que, até então, se reconheciam como “portugueses”.

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