Edição 234 | 03 Setembro 2007

Brasil independente: conflitos e negociações

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IHU Online

A emancipação efetiva do Brasil “não implicou em qualquer modificação na ordem econômica”, afirmou a professora Márcia Miranda, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com a pesquisadora, “há um discurso muito recorrente de que a Independência limitou-se a uma alteração no estatuto político, sem que implicasse numa mudança da posição subordinada do Brasil no quadro econômico internacional”. Mesmo que a Independência brasileira não tenha sido acompanhada de mudanças profundas na sua estrutura, o novo Estado abriu espaço para novas disputas, negócios, “ampliando as oportunidades”. Assim, complementou a professora, a Independência “deu um novo sentido e dinâmica às decisões de investimentos, à elaboração da política econômica”.

Miranda é graduada em História e em Economia e mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atualmente é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), historiógrafa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. A professora concedeu outra entrevista à IHU On-Line, em 28-5-2007, quando participou do Ciclo de Estudos Interpretações do Brasil: dos clássicos às novas abordagens. No evento, ela discorreu sobre o pensamento de Bonifácio. A entrevista José Bonifácio. Reforma, Independência e Escravidão está disponível no sito do IHU, na edição 221, cujo tema de capa foi Cem anos de solidão. Realidade, fantasia e atualidade: os 40 anos da obra de Gabriel García Márquez.
Eis a entrevista:

IHU On-Line - Em outra entrevista à IHU On-Line, a senhora afirmou que José Bonifácio foi decisivo também nos momentos que antecederam o “Grito do Ipiranga”. O que o estadista José Bonifácio representou na história marcada pelo processo de formação do estado brasileiro?
Márcia Miranda -
Apesar de haver passado vários anos de sua vida na Europa, onde ocorreu sua formação acadêmica e científica, exerceu importantes cargos na administração régia e participou da resistência lusa à invasão francesa. Em poucos anos, após seu retorno ao Brasil, José Bonifácio teve um papel impar no processo de Independência, articulando a elite paulista, mineira e fluminense em torno do projeto de emancipação em torno do Príncipe Regente, o que viabilizaria a preservação da monarquia e da Casa de Bragança, afastando os riscos de revolução. Assim, Bonifácio teve uma contribuição decisiva na definição dos traços básicos do Estado brasileiro. No entanto, é preciso ter presente que o projeto de Estado de José Bonifácio não se concretizou plenamente. Como demonstrou Ana Rosa Coclet da Silva, enquanto intelectual formado nos quadros da ilustração européia, José Bonifácio considerava que cabia ao Estado dirigir o processo de formação da nação, a qual era requisito para que fossem garantidas a integridade territorial e as condições de desenvolvimento econômico do Brasil. Assim, as reformas sociais que propunha – civilização e integração dos indígenas à sociedade, a abolição do tráfico negreiro como primeiro passo para a progressiva abolição da escravidão e a reforma da estrutura fundiária – deveriam ser implementadas pelo Estado monárquico  . Reformas que se contrapunham aos interesses das elites agrárias e mercantis do novo país, as quais consideravam ser uma das principais funções do Estado a conservação da ordem social e da estrutura econômica herdadas do passado.

IHU On-Line - José Bonifácio era adepto do projeto de constituição de um império luso-brasileiro, que reconhecia a importância do Brasil, mas cujo centro político seria Lisboa. Que benefícios esse projeto propunha para a nova nação?
Márcia Miranda -
José Bonifácio era um intelectual ilustrado que compartilhava com a elite lusa o projeto de constituição de um império que reconhecia a importância do Brasil para o sustento da posição de Portugal no concerto das nações européias. Desde a época pombalina, era claro, às autoridades portuguesas, que a colônia era o pólo mais dinâmico da economia lusa. Pombal e seus sucessores, dentre esses especialmente D. Rodrigo de Sousa Coutinho, consideravam importante preservar a colônia e reconheciam e afirmavam ser necessário mudar as relações entre a metrópole e a colônia, não apenas para obter maiores lucros dessa relação, mas também para que os laços que as ligavam fossem preservados . Mas se esse era o projeto defendido por José Bonifácio quando retornou para o Brasil em 1819, ele ganhara nova perspectiva em 1821 ao redigir os Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da província de São Paulo para seus deputados, que deveria orientar os representantes dessa província nas Cortes de Lisboa. Nessa nova versão, Bonifácio já passava a defender a constituição de dois centros políticos, os quais seriam unidos por relações de igualdade e reciprocidade, não apenas no âmbito econômico e comercial, mas na manutenção de instituições e instâncias administrativas criadas quando da transferência da Corte para o Brasil. Foram justamente os conflitos surgidos no debate em torno da conformação desse império e da delimitação das relações entre suas partes que a cisão entre os deputados das províncias brasileiras e os deputados portugueses ocorreu, preparando as bases para o encaminhamento do rompimento formal dos laços políticos. A impossibilidade de constituição de Império, que preservasse os ganhos conquistados nos anos de permanência da Corte no Rio de Janeiro, deu lugar ao discurso de recolonização e justificou o ato de Independência.

IHU On-Line – Quais são as mudanças socioeconômicas ocorridas no Brasil pós-independência?
Márcia Miranda -
Essa é uma questão interessante e controversa. Como já demonstrou Wilma Peres Costa, a questão da continuidade ou ruptura associada à Independência na historiografia brasileira é um debate antigo . Há um discurso muito recorrente de que a Independência limitou-se a uma alteração no estatuto político, sem que implicasse numa mudança da posição subordinada do Brasil no quadro econômico internacional, ou seja, que a emancipação efetivamente não implicou em qualquer modificação na ordem econômica. Ao mesmo tempo, associa-se a Independência a um projeto de preservação da ordem social defendido pela elite brasileira, como se essa fosse uma. Esse tipo de interpretação ganhou, ainda que às avessas, mais destaque por uma nova corrente da historiografia econômica que busca demonstrar a existência de capacidade endógena de acumulação de capital no âmbito da colônia, a qual estaria a serviço de um projeto arcaico. Essa perspectiva leva esses historiadores a reavaliar as idéias de sistema colonial e a minimizar as transformações sociais e econômicas decorrentes da transmigração da Família Real (1808) e da própria independência , criticando interpretações clássicas como as de Caio Prado Júnior , Fernando Novais  e Celso Furtado.

No entanto, apesar da Independência não ter sido acompanhada por uma nova ordem social e por mudanças na estrutura fundiária ou na inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, não acredito que seja possível desprezar as suas implicações econômicas e sociais. A construção do Estado brasileiro abriu espaço para novas disputas, redimensionando as possibilidades de participação das elites brasileiras na administração, na política e nos novos negócios que surgiam, ampliando as oportunidades que haviam sido introduzidas quando da instalação da Corte no Rio de Janeiro em 1808. Por outro lado, aquela mudança e a abertura dos portos, como apontou Celso Furtado, haviam implementado um novo sentido no fluxo de capitais, assim como a Independência deu novo sentido e dinâmica às decisões de investimentos, à elaboração da política econômica etc. Considerar essas mudanças é condição para que possamos pensar os debates e conflitos que surgiram nos anos seguintes à Independência e perceber a construção do Estado brasileiro como um processo que envolveu conflitos e negociações.

IHU On-Line - Bonifácio defendia o fim da escravidão e propunha que as relações entre senhores e escravas fossem medidas através do Estado. Essa atitude o conduziu para o esquecimento, já que a maioria dos proprietários de terras era contrária a essa idéia?
Márcia Miranda -
Não acredito que José Bonifácio tenha sido esquecido, no entanto, a imagem preservada foi a do “Patrono da Independência”, ou seja, do político que esteve presente nos momentos decisivos, orientando e apoiando o Príncipe Regente. Já as suas propostas de reforma social e econômica, foram pouco divulgadas ou estudadas. É possível que parte da oposição feita a José Bonifácio nos primeiros anos depois da Independência e quando do seu retorno como tutor de D. Pedro II, tenha tido relação com suas propostas de reforma. No entanto, não podemos esquecer que seu afastamento do poder decorreu em grande parte pelas medidas autoritárias que tomou quando esteve no ministério entre os anos de 1822 e 1823, perseguindo implacável e violentamente os liberais que discordavam do seu projeto de Estado.

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