Edição 233 | 27 Agosto 2007

Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos da Economia

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IHU Online

Economia autônoma gera individualismo

Para o Prof. Dr. Édison Gastaldo, o pensamento de Louis Dumont (1911-1998) é uma “poderosa ferramenta teórica para pensarmos nosso estar no mundo”. Dumont realizou estudos sobre as sociedades tradicionais, as quais denominou como holistas ou hierárquicas. Essas sociedades, explica o professor, possuem uma hegemonia coletiva, e sempre foram predominantes, enquanto organização social. Ele destaca que a exceção “é a nossa própria civilização ocidental individualista, em que a preeminência pertence ao indivíduo sobre a coletividade”. Segundo o pensamento de Dumont, essas mudanças foram se definindo a partir da Revolução Moderna, no século XVI, devido a autonomização do “econômico como categoria”.

Para debater sobre o pensamento de Louis Dumont (1911-1998), o Prof. Dr. Edison Gastaldo ministrará A ideologia individualista: uma perspectiva antropológica da economia moderna - Louis Dumont (1911-1998), no Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos da Economia, que ocorre na próxima quarta-feira, 29-8-2007, na sala 1G119, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na entrevista a seguir, Gastaldo antecipa a discussão do evento. Confira:

IHU On-Line - A partir do pensamento de Louis Dumont, que aspectos você apontaria da ideologia individualista numa perspectiva antropológica da economia moderna?
Édison Gastaldo -
Louis Dumont  desenvolveu, ao longo de muitos anos, um extenso trabalho de campo na Índia, onde estudou profundamente as sociedades tradicionais, chamadas por ele de “holistas”, ou “hierárquicas”, isto é, aquelas sociedades em que a preeminência pertence ao coletivo, não ao indivíduo. Na sociedade hierárquica, os sujeitos são, por assim dizer, “vividos” pelo coletivo, as posições sociais precedem a existência física dos sujeitos: quem nasceu brâmane (assim como os nobres, na Europa medieval, ou samurais, no Japão), manterá esta posição e suas prerrogativas por toda a vida, o mesmo sucedendo com as castas intermediárias e com os párias e escravos. Na história da humanidade, esta forma de organização social sempre foi predominante: a única exceção é a nossa própria civilização ocidental individualista, em que a preeminência pertence ao indivíduo sobre a coletividade, em que cada indivíduo é tido como uma totalidade plena de sentido. Em sociedades tradicionais, questionamentos e angústias individuais sobre quem se é, sobre liberdade individual, sobre o “verdadeiro eu” simplesmente não fazem sentido. É claro que tal mudança nas mentalidades e na organização das sociedades humanas não ocorre de uma hora para outra, é um longo processo, que vem ocorrendo, segundo Dumont, desde o advento do cristianismo, ainda na Antigüidade, tendo se acentuado a partir da Revolução Moderna, em meados do séc. XVI. Em boa medida, isto foi possível, segundo ele, a partir da autonomização do “econômico” como categoria. Nas sociedades tradicionais, não é possível desvincular o “econômico” do “político, a riqueza se relaciona diretamente com o poder, manifesto em última instância pela posse da terra: um rei dispõe naturalmente dos bens de seus súditos, requisitando, no caso de uma guerra, por exemplo, não somente as posses, mas os próprios súditos, arregimentados como soldados. Em nossa sociedade individualista contemporânea, esta constituição da economia como uma esfera autônoma, em que cada indivíduo gerencia suas posses desvinculado da sociedade como um todo, ajudou e ajuda a configurar vários aspectos centrais do mundo social como o entendemos, como o modo de produção capitalista, o mercado financeiro e a cultura de consumo. 

IHU On-Line - Como essa ideologia individualista se apresenta nas relações econômicas estabelecidas entre as pessoas e, numa instância maior, entre os países em suas negociações?
Édison Gastaldo -
O igualitarismo pode justificar tanto os direitos humanos e a liberdade de pensamento e expressão quanto a livre concorrência e o (neo)liberalismo econômico. A autonomização do “econômico” tem se acentuado, constituindo toda uma esfera da “economia pela economia”, um imenso mercado financeiro transnacional, que supera, por exemplo, a idéia da empresa “multinacional”, que, em última instância, ainda tinha uma “nação” a quem remeter os lucros obtidos em outros países.

IHU On-Line - Quais são as principais contribuições desse autor para entendermos o sistema de castas da Índia?
Édison Gastaldo -
Para Dumont, a sociedade de castas indiana é um dos melhores exemplos da organização social hierárquica, uma vez que se trata, em suas palavras, de uma “civilização superior”, que influenciou e influencia diversas sociedades menores. No sistema de castas, a mobilidade social é muito restrita. Para uma família passar de uma casta a outra, são necessárias várias gerações. Apesar de existir relativo igualitarismo no interior de cada casta, a única possibilidade de individuação neste sistema é na figura do “renunciante”, do que Dumont chama de “sujeito-fora-do-mundo”, aquele que, não encontrando – ou não se satisfazendo com – o lugar social que lhe é destinado por nascimento, abandona a sociedade e vai viver em isolamento, como um eremita. Estas pessoas por vezes podem se tornar elementos importantes na dinamização daquele sistema social, como foi o caso do Buda. Originalmente um príncipe brâmane, chamado Sidarta Gautama, sua renúncia à posição e prerrogativas que lhe eram devidas levou-o a se isolar e meditar. Da iluminação resultante, originou-se uma das maiores religiões de todo o mundo, que viria a relativizar mesmo a rígida estrutura do sistema de castas hinduísta.

IHU On-Line - O que essas descobertas demonstram sobre as ideologias de hierarquia e igualdade? E sobre a emergência do individualismo na sociedade moderna, o que as obras de Dumont revelam?
Édison Gastaldo -
Hierarquia e igualitarismo são duas maneiras de organizar as sociedades humanas. Por toda parte, aspectos de uma e de outra ideologia podem ser encontrados: há relativo igualitarismo dentro de cada casta, e há hierarquia na sociedade individualista – que a estratificação por classes sociais ou o preconceito racial evidenciam claramente. É importante deixar claro que, ao se criticar alguns aspectos da sociedade individualista não se prega uma nostalgia das sociedades tradicionais: nestas sociedades, por exemplo, práticas como a escravidão, sacrifícios humanos ou o julgamento sumário, tortura e execução de criminosos em praça pública são maneiras normais de resolver problemas sociais, práticas que o Ocidente individualista busca erradicar, fundamentado em uma de suas premissas: o igualitarismo. O pensamento de Dumont pode ser, neste sentido, uma poderosa ferramenta teórica para pensarmos nosso estar no mundo.

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