Edição 232 | 20 Agosto 2007

Ingmar Bergman: relações entre o real e o imaginário

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Carlos D. Perez reexamina a obra de Bergman e a articula com seu texto autobiográfico Lanterna mágica (1987), em busca de chaves para a complexa relação entre a criação artística e a experiência pessoal do criador. O cineasta sueco Ingmar Bergman, morreu no dia 30 de julho passado, aos 89 anos. Entre seus filmes estão Fanny e Alexander, O sétimo selo e Gritos e sussurros, recentemente exibido e debatido no Ciclo Saúde Coletiva e Cinema, promovido pelo IHU. Ele foi uma das personalidades mais eminentes do panorama cinematográfico. Segue a íntegra do artigo do psicanalista Carlos D. Perez, publicado no Página/12, 13-8-2007. A tradução é do Cepat.

“Como todos os diretores, ele também representava o papel de diretor”, opinou certa vez Ingmar Bergman a propósito de um de seus mestres, Alf Sjöberg: a afirmação o incumbe. O diretor é concernido pela pesada duplicidade de ser ao mesmo tempo aquele que estabelece uma cena e também um protagonista que desempenha seu papel. A constante preocupação de Bergman com esta cisão lhe possibilitou inflexões acerca do criador e da obra, principalmente em seu livro de memória Lanterna mágica (1987), testemunho de uma vida de sucessos e fracassos, cuja referência privilegiada é o diretor máximo da cena: Deus.

Não é aplicável também a Deus a afirmação do começo deste artigo?: “Como todos os diretores, ele também representava o papel de diretor”. Por mais esquivo que resulte, Deus leva a marca do representante obrigado pela cisão, que para ser tal expulsou de si o Demônio e teve que se desdobrar nos três do catecismo para constituir família. “Obra para a glória de Deus”, disse Bergman; a glória de Deus é essa obra, humana por excelência, que retorna ameaçadora ou apaziguante ao sujeito para ocupar o lugar vazio do seu imaginário, como as sombras que se iluminam ao se projetar uma película. Bergman sabia disso; recordando o projetor de cinema que lhe presentearam quando tinha dez anos, escreveu: “Esta maquininha mal cuidada foi meu primeiro equipamento de mágico. E ainda hoje digo, com pueril emoção, que sou realmente um mago, pois o cinematógrafo se baseia sobre o engano do olho humano. Cheguei à conclusão de que, quando vejo um filme de uma hora de duração, durante vinte minutos estou sentado na mais completa escuridão: o vazio entre cada tomada”.

Quando em Quatro obras, referiu seu modo de fazer películas, afirmou: “Omitindo minhas próprias crenças e dúvidas, que carecem de importância neste sentido, opino que a arte perdeu seu impulso criador básico no instante em que foi separada do culto religioso. Cortou-se o cordão umbilical e agora vive sua própria vida estéril, procriando e prostituindo-se. Em tempos passados, o artista permanecia na sombra, desconhecido, e sua obra era para a glória de Deus. Vivia e morria sem ser mais ou menos importante que outros artesãos; “valores eternos”, “imortalidade” e “obra-prima” eram termos que não se aplicavam ao seu caso. A habilidade para criar era um dom. Num mundo semelhante floresciam a segurança invulnerável e a humildade natural.

Não obstante, a vida se emaranhava; em Lanterna mágica, as cisões seguem rumos diversos. Às vezes resultam ostensíveis, outras não é possível diferenciar, pois os planos se misturam; o ilusionista nos confunde, confundem o ilusionista, sobretudo porque – não poderia ser de outro modo – faz a obra tematizando o próprio padecer. Planos que, ao se organizarem em torno do diretor e do protagonista da cena, produzem a cisão de profundas vivências.

Num dos primeiros momentos significativos da seqüência que Bergman dispõe no livro, relata o que presenciou ao receber o anúncio da morte da sua mãe. Foi à casa dela, encontrou o corpo desfalecido e passou um longo tempo sentado ao seu lado. Impressiona o despojo com que a descreve; mais do que um filho, há ali um diretor que organiza uma tomada; “Jazia em sua cama, vestida com uma camisola de flanela branca e uma mañanita  azul. Tinha a cabeça ligeiramente voltada para um lado e os lábios entreabertos. Estava pálida, com olheiras, e o cabelo, ainda escuro, bem penteado – não, seu cabelo já não era mais preto, mas grisalho, e nos últimos anos sempre o mantinha curto, mas a imagem da lembrança me diz que seu cabelo era preto, talvez com alguns fios de cabelo branco. As mãos descansavam em seu peito. No dedo indicador da mão esquerda trazia um curativo adesivo”. Só a vacilação entre o cabelo preto e o grisalho torna visível a sua inquietude; todo o resto permanece estático, não na rigidez do morto, mas com a quietude de um latido preso.

A vacilação é inquietude diante de algo que escapa à precisão do dado; o negro, o preto, e o grisalho produzem em claro-escuro o contraste de vida e morte. O resto são minúcias para o diretor. Expressa-o mediante a negação de uma certeza: “Passei sentado ali várias horas. Os sinos da igreja de Hedvig Eleonora (a igreja onde oficiava o pai, pastor) tocavam a missa maior, a luz vagava pela casa, ouvia-se música em alguma parte. Não creio que sentisse dor, tampouco que pensasse, nem sequer creio que me tenha acompanhado sem piedade toda a vida e que tantas vezes tenha roubado ou cindido minhas mais profundas vivências”. É lamentável para ele que assim tenha acontecido, mas de valor inapreciável para a sua condição de artista, já que o impulsionou a gerar uma obra magna da cinematografia.

Em O rosto, quatro viajantes, de carro – a trupe de Vogler e um mago ilusionista –, encontram em um bosque fechado um ator moribundo. Levam-no. Estendido no carro, dialoga com eles acerca da verdade, da mentira, da ilusão, até que sua morte parece próxima. Vogler se inclina sobre o ator, que, mantendo-se impassível (logo se saberá que sua agonia era fingida) disse: “Se deseja registrar o momento exato, olhe com atenção, senhor. Terei meu rosto aberto à sua curiosidade. O que sinto? Medo e bem-estar. Agora a morte chegou às minhas mãos, meus braços, meus pés, minhas entranhas. Sobe, entra. Observe-me detidamente. Agora se detém o coração, agora se apaga a minha consciência. Não vejo nem Deus nem anjos. Agora já não consigo ver vocês. Estou morto. Vocês se perguntam. Eu vou dizê-lo. A morte é...”.

Quando, na metade da película, este ator reaparece, dirá de si: “Me tornei convincente. Nunca o fui como ator”. Enquanto Vogler, ao dispor os elementos para a sua próxima atuação, manipula uma lanterna mágica (um projetor), o ator estende uma mão e intercepta o feixe de luz; ao se projetar a silhueta na tela, diz: “A sombra de uma sombra”. Se Deus é um diretor, há nele um ilusionista que pretende fazer entrar a morte no claro-escuro de uma cena. Bergman explicita esta metáfora em O sétimo selo.

Não entrarei na discussão, tão gratuita quanto de mau gosto, sobre se Bergman teria sido Bergman se não sofresse “essa deformação profissional que me acompanhou sem piedade toda a vida e que tantas vezes roubou ou cindiu minhas vivências mais profundas”. Mas é possível reparar que, ao enunciá-lo deste modo, o próprio Bergman fica desdobrado na pessoa – estranha para os espectadores de sua obra – e o criador. Devemos distinguir ao menos uma tríade: por um lado, o autor, em relação com a obra, e por outro, a pessoa, cuja vida está assinalada por certo padecimento. O sétimo selo, para mencionar uma das obras mais importantes, não é o sintoma de um neurótico, mas a obra de um gênio. Que o senhor Bergman tenha sofrido isto ou aquilo não quer dizer que aconteça o mesmo com a obra, ainda que o padecer a empape. Se o criador o fosse só por seu transtorno, os labirintos borgeanos  seriam produções obsessivas, Os irmãos Karamazov seria devido à epilepsia de Dostoiévski  e Édipo Rei teria resultado da excitação de Sófocles pela mãe e da rivalidade com o pai. E não porque os criadores careçam de tais sofrimentos, pelo contrário; a questão radica em reconhecer aquilo que rotulamos de obsessivo, epiléptico ou edípico, lançando mão de uma nosografia de bolso, como algo inerente à condição humana.

Já que começamos com a descrição que Bergman faz da mãe, transcreverei um fragmento em que ela aparece em uma de suas películas. É conhecido o conflito de Bergman com seu pai, um clérigo severo, autoritário, de quem tanto deriva sua reverência como sua rebelião frente a Deus. Se teve algo impedido na sua infância – para dizê-lo de modo mais simples –, foi o contato emotivo com seus pais. Mas quando o autor se expressa, há uma transformação. Leiamos o final do roteiro de Quando o dia foge: “Um pouco mais distante na beira se havia sentado a minha mãe. Luzia um chamativo vestido de verão e um chapéu de asas enormes que fazia sombra ao seu rosto. Estava lendo um livro. Sara deixou cair minha mão e assinalou para meus pais. Logo desapareceu. Olhei demoradamente para um casal que estava do outro lado da água. Tratei de gritar-lhes algo, mas nenhuma palavra saiu da minha boca. Então, meu pai ergueu a cabeça e me viu. Levantou a mão e me saudou, rindo. Minha mãe levantou os olhos do livro e ela também riu e saudou com a cabeça.
Nesse momento vi o velho iate com sua vela vermelha. Deslizava suavemente movido pela leve brisa. Na proa estava, de pé, o tio Aron, cantando alguma canção sentimental e vi meus irmãos e irmãs e a minha tia Sara, que levantou nos braços o filhinho de Sigbritt. Gritei-lhes, mas não me ouviram.
Sonhei que estava junto à água e gritava para a baía, mas a brisa quente de verão levava meus gritos sem deixá-los chegar ao destino. No entanto, não estava afligido por isto; me senti, ao contrário, bastante contente”.

Contrastemos isso com o livro de memórias, no qual menciona sua inclinação infantil pela mentira: “Creio que fui (entre os irmãos) quem se deu melhor graças a que me converti num mentiroso. Criei um personagem que, exteriormente, tinha muito pouco a ver com o meu verdadeiro eu. Como não soube manter a separação entre a minha pessoa real e a minha criação, os males resultantes tiveram conseqüências na minha vida, até bem avançado na idade adulta, e na minha criatividade. Em certas ocasiões tive que me consolar, dizendo-me que aquele que viveu no engano ama a verdade”. Viver o engano, amar a verdade: novo modo de formular a cisão; vida como engano, vivência alienada, verdade na obra, fruto do amor.

“Criei um personagem que, exteriormente, tinha muito pouco a ver com meu verdadeiro eu”: mas, o eu mente por definição; o problema é instrumentar a cisão de modo que o eu creia, ilusoriamente, saltar o abismo para situar-se no outro lado, deixando um lugar vazio – que acreditamos ser o eu do sujeito – para que ali nos precipitemos. Isto se chama mentira, segundo Bergman, uma estratégia às costas de que o sujeito roube de si “as mais profundas vivências”.


O mentiroso

Bergman pagaria caro pela mentira, pois ele mesmo caiu na sua armadilha. Em 1976, o fisco descobriu que havia evadido o pagamento de impostos: mais ainda, que havia fraudado suas declarações. Num lamentável equívoco, prenderam-no. No tocante ao manejo econômico, ele assinava o que seus advogados colocavam em suas mãos. Mas a acusação havia tocado um ponto sensível: sem que estivesse consciente do que acontecia em sua intimidade, Bergman desmoronou. O Estado sueco havia descoberto seu segredo: era um mentiroso. A crise desencadeada colocou de relevo a eficácia inconsciente da acusação. Sem sabê-lo, os fiscais do Estado encarnaram a severa imago paterna e a técnica do desdobramento se voltou contra ele. Leiamos o que disse a respeito: “Na segunda-feira pela manhã produziu-se o colapso. Estou no salão do andar superior lendo um livro e escutando música. Ingrid foi ver o advogado. Não sinto nada, estou sereno ainda que algo apagado pelos soníferos, que nunca utilizo na vida normal.

A música cessa e a fita pára com um pequeno ruído. Calma total. Os telhados do outro lado da rua estão brancos e a neve cai lentamente. Deixo de ler, de todas as maneiras me é difícil entender o que estou lendo. A luz na sala não tem sombras e é intensa. Um relógio dá alguma hora. Talvez durma, talvez só tenha dado um curto passo da realidade reconhecida pelos sentidos à outra realidade. Não sei, agora me encontro profundamente submergido num vazio imóvel, sem dor e sem sensações. Fecho os olhos, creio que fecho os olhos, intuo que há alguém na casa, abro os olhos: na implacável luz, a pouco metros de mim, estou eu mesmo contemplando-me. A vivência é concreta e incontestável. Estou ali no tapete amarelo contemplando-me a mim que estou sentado na cadeira. Estou sentado na cadeira contemplando-me a mim que estou de pé no tapete amarelo. O eu que está sentado na cadeira é o que agora domina as reações. É o ponto final, não há regresso. Ouço lamentar-me em voz alta e queixosa”.

O desdobramento espanta, apesar de presentificar a mesma cisão que havia aparecido antes; o protagonista e o observador dispõem a cena mas, atravessando seu limite, ambos caem desta vez dentro dela. Ocorre o sinistro, no meio de um absoluto silêncio e luz intensíssima. A duplicação sem espelho tem a força, e com ela o espanto, do real. Mudou o registro: do plano imaginário, onde a imagem pressupõe o espelho, passou ao concreto de uma presença não mediatizada. O espelho desaparece, mas o outro continua ali.

A luz que cega tem um lugar preponderante junto ao silêncio, produzindo a virada para uma claridade que, de tão acentuada, também extravia. Retomarei agora a citação de quando Bergman se encontrou diante do corpo jacente da mãe, pois ali aparece algo similar. Depois de se ocupar minuciosamente com a posição e as roupas, vacilando só no claro-escuro de seu cabelo, acrescenta: “Subitamente, uma intensa luz de primavera encheu a casa. O pequeno despertador fazia tic-tac apressadamente na mesa-de-cabeceira”. O impacto estético da frase está no jogo de contrastes, onde se estende aquela vacilação entre o cabelo escuro-cano da mãe; agora é a luz intensa – mesa-de-cabeceira [aqui o autor joga com as palavras, pois mesa-de-cabeceira, em espanhol é mesilla de noche], interrupção do tempo e tic-tac apressado, a morte, a primavera. Em definitiva: a luz intensa (vida)-escuridão fechada (morte), elementos que vimos reaparecer no momento da queda: música que pára, calma total, brancura dos telhados, luz intensa e sem sombras, vazio imóvel, apaziguamento que anuncia o acontecimento, desencadeado no meio de uma luz implacável. Tão implacável quanto a acusação do fisco? Tanto quanto o pai? De tão intensa, cega, os olhos se fecham, se abrem e chega o ponto final, sem volta. Como o da mãe ao morrer? Perguntas que deixarei em suspenso para captar a certeza do instante fatal. A cena imaginária se fecha, se apaga, e emerge, ofuscante, a luz sobrenatural.

Internaram-no em um sanatório psiquiátrico e pouco a pouco foi se restabelecendo, ainda que a duplicação se mantivesse: “Um dia de final de fevereiro me encontro numa casa cômoda e silenciosa do hospital de Sophia. A janela dá ao jardim. Posso ver a casa reitoral amarela, a casa da minha infância, ali no alto da colina. Cada manhã passeio uma hora pelo parque. Ao meu lado vai a sombra de um menino de oito anos; é ao mesmo tempo estimulante e arrepiante”.

O contraste se acentua: numa luz intensíssima se vê a si mesmo e alucina, numa sombra o acompanha a visão de um menino, e oscila entre a fascinação e o horror. Permanece o amarelo, e agora constatamos sua procedência: o amarelo da casa da infância se havia transformado, naquele terrível momento, na cor do tapete, testemunho mudo situado no meio dos dois Bergman. Antes, aludindo ao cabelo da mãe morta, havia vacilado entre o preto e o branco. Luz e sombras, vida e morte, razão e loucura. Pouco depois conseguirá organizar-se graças à cisão, desta vez dividindo o tempo, o que lhe tornará possível entretecer vida e cena: “Me lanço ao ataque contra os demônios com um método que funcionou bem em crise anteriores: divido o dia e a noite em unidades de tempo determinadas e encho cada uma delas com uma atividade ou um momento de descanso estabelecidos de antemão. Só cumprindo implacavelmente meu programa, dia e noite, posso defender meu cérebro de dores tão violentas que chegam a ser interessantes. Em poucas palavras, recobro o costume de planificar minuciosamente minha vida e colocá-la em cena”. Esta divisão tem por objeto combater os demônios, os deuses caídos da mão de Deus. Lembra a fórmula de Borges: “A eternidade, cuja despedaçada cópia é o tempo”, devedora de outra, de Platão, para quem o tempo é “a imagem móvel da eternidade”. A cena é um recorte do imutável.

Tudo isto realça, de modo tão dramático quanto eloqüente, o desdobramento entre o olhar carregado de luz, que põe à luz a miséria humana, e o protagonista da cena onde transcorre a trama. Importa o método pelo qual essa clarividência se torna lugar ocupado pelo diretor da cena, cindindo o autor. Tenhamos em conta que lemos o relato entregue pelo diretor, que não vimos a sua loucura mas a sua obra, que, por mais autobiográfica que possa parecer, é um livro escrito pelo autor Ingmar Bergman.

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