Edição 232 | 20 Agosto 2007

O poeta das sete faces

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IHU Online

“O Drummond de Alguma poesia não é um poeta iniciante. Podemos acrescentar que o primeiro poema de seu primeiro livro, o ‘Poema das sete faces’, prenuncia o poeta das sete faces que ele será. Sua inquietação interna o levará a tematizar outras faces distintas da primeira; elas serão preferidas ou preteridas por outros tipos de leitor. Se assim será difícil encontrar um crítico que aprove todo Drummond, sempre se encontrará um leitor que mais agrade certa face sua, em detrimento dos poetas da ‘face’ correspondente. Isso o fará o poeta brasileiro do século XX de maior grau de penetração”, afirmou Luiz Costa Lima em entrevista exclusiva, por e-mail à IHU On-Line.

Costa Lima é graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese Estruturalismo e teoria literária. Docente na PUC-Rio, é autor de inúmeros livros, como Estruturalismo e teoria da literatura (Petrópolis: Vozes, 1973); A aguarrás do tempo (Rio de Janeiro: Rocco, 1989); Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995); Terra ignota (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997); Mímesis – desafio ao pensamento (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000); Mímesis e modernidade: formas das sombras (2. ed. São Paulo: Graal, 2003); Redemunho do horror (Rio de Janeiro: Planeta, 2003); e História. Ficção. Literatura (São Paulo: Companhia das Letras, 2006). Costa Lima participou da edição 221 da revista IHU On-Line, sobre os 40 anos de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, com o texto García Márquez: muito além de Cem anos de solidão.

IHU On-Line - Drummond foi influência para muitos poetas, sobretudo João Cabral de Melo Neto . Como se deu a relação de sua obra com a de outros poetas brasileiros, principalmente em relação aos primeiros modernistas (Oswald e Mário de Andrade e Manuel Bandeira)? Se ele acrescentou ou modificou caminhos, quais seriam eles?
Luiz Costa Lima -
Não vou me deter na questão das relações de Drummond com os primeiros modernistas porque, sendo restrito o tempo para responder às questões, não poderia reler a correspondência dos poetas nem tampouco suas obras. Parto então de uma afirmação apenas sensata: como Bandeira já tinha uma preparação poética e uma produção pré-modernista, sua adesão ao verso livre foi decisiva para os poetas mais jovens. Drummond, contudo, se distinguiria mesmo do primeiro Bandeira modernista pelo tom ácido, irônico, sem concessões melódicas; digamos por sua poética de ponta afiada, despojada e sem concessões “literárias". Por isso, o Drummond de Alguma poesia não é um poeta iniciante. Podemos acrescentar que o primeiro poema de seu primeiro livro, o “Poema das sete faces” , prenuncia o poeta das sete faces que ele será. Sua inquietação interna o levará a tematizar outras faces distintas da primeira; elas serão preferidas ou preteridas por outros tipos de leitor. Se assim será difícil encontrar um crítico que aprove todo Drummond, sempre se encontrará um leitor que mais agrade certa face sua, em detrimento dos poetas da “face” correspondente. Isso o fará o poeta brasileiro do século XX de maior grau de penetração.
  
IHU On-Line - O senhor escreve, em Lira & antilira, que, em Drummond, “a viagem pela família, com a memória, é viagem pelo tempo, com a corrosão. A figura da morte que, por diversas maneiras se prolonga até os românticos, é substituída pela figura menos ostensiva da traça que rói o universo”. O senhor poderia explicar melhor esse conceito de “corrosão” na poesia de Drummond? Este elemento persiste na análise que o senhor faria hoje da poética de Drummond?
Luiz Costa Lima -
Euclides , n’Os sertões, falava do sertão como “natureza torturada” e “sol escuro”. Drummond nunca teve como objeto senão sua intimidade e não certa região ou paisagem. No entanto, as expressões de Euclides podem nos servir de caminho para entender-se o que chamava “princípio corrosão” da poesia drummondiana. A “natureza torturada” nele se convertia em expressão de a vida como processo de desgaste; desgaste que afeta não só os seres como os próprios retratos (de família). Sim, se eu fosse de novo escrever sobre o poeta mineiro manteria esse conceito. Mas não a deriva que dele fazia, entre corrosão-opacidade e corrosão-transparência. Como já escrevi no prefácio à segunda edição do Lira e antilira (São Paulo: Topbooks, 1995), aquela distinção era demasiado ideológica, condizente apenas com o crítico iniciante que eu era ao escrever o Lira e antilira.
 
IHU On-Line - O senhor, em A aguarrás do tempo, afirma que há uma passagem de Drummond para o sublime em Claro enigma, em contraposição ao que acontece, por exemplo, em A rosa do povo. Poderia falar dessa questão do sublime na obra drummondiana, tema incluído, aliás, em seus estudos sobre a mímesis?
Luiz Costa Lima -
A relação não é possível porque, em A aguarrás, empregava ‘sublime’ no sentido usual do termo – temática e linguagem elevadas –, ao passo que, em minha teorização sobre a mímesis trato do sublime no sentido kantiano – a experiência que põe em xeque a capacidade sintetizadora da imaginação, isto é, que se põe diante de situações perante as quais não se pode encontrar um sentido. O sublime presente no Claro enigma corresponde ao entendimento usual do termo e não à situação-limite do sublime (Erhabene) kantiano. Talvez essa opção drummondiana resulte de que, entre suas “sete faces”, uma correspondia a uma visão mais clássica do humano, não tendo lugar para a visão mais torturada, mais próxima da vida como absurdo, presente no sublime, digamos, de Kafka  ou de Paul Celan .

IHU On-Line - O crítico Sérgio Buarque de Holanda  afirmava que um dos elementos característicos da poesia de Drummond é que ela acabava com os limites entre poesia e prosa. É possível concordar com ele? Por quê?
Luiz Costa Lima -
Antes de ser o historiador reconhecido que é, Sérgio Buarque foi dos melhores críticos que tivemos. O Drummond que rompe com aqueles limites é o primeiro, aquele que se mantém nos dois livros seus seguintes. Progressivamente, Drummond se aproxima da figura do poeta-poeta, que se configura plenamente em Claro enigma. Devo, contudo, acrescentar: haver progressivamente passado à figura do poeta-poeta não o torna menor. O Lição de coisas já está longe daquela fusão com a prosa e é um de seus grandes livros. Talvez menos inovador, sim, mas, dentro de seu padrão, de imensa qualidade.

IHU On-Line - Poderia falar sobre a separação que costuma ser feita em Drummond, aquela que se refere à sua poesia social (A rosa do povo, Sentimento do mundo etc.) e à sua poesia mais hermética (Fazendeiro do ar, Lição de coisas, Claro enigma?). Você pensa que este é um caminho produtivo para se analisar a obra drummondiana?
Luiz Costa Lima -
Em um nível superficial, a distinção é inevitável. Em um nível propriamente analítico, não. Em Drummond, o poeta engajado, em geral, é bem menos produtivo que o que se declara hermético. Sei que a resposta teria de ser muito mais elaborada. Em sua impossibilidade, apenas digo que a distinção que eu fazia inicialmente sobre as formas de corrosão deve ser absolutamente deixada de lado. Um poeta não há de ser julgado por seus temas, mas pelo grau de elaboração de sua linguagem.
 
IHU On-Line - Qual é o choque que se dá da cidade de Itabira, onde viveu sua juventude, para a cidade de Rio de Janeiro, onde Drummond trabalhou a vida toda como funcionário público?
Luiz Costa Lima -
O poeta retraído e tímido que vem de Itabira permanecerá assim na grande cidade. O Rio poderá ter contribuído para sua visão mais complexa da sociedade dos homens. Mas me parece que também teve um papel negativo: suponho que por necessidade financeira, Drummond foi por muitos anos cronista de jornal. Seu êxito, creio, prejudicou o grau de exigência de sua poesia. Seus últimos livros, com a exceção notabílissima de As impurezas do branco (1973), se põem no nível mais leve do leitor de crônicas. Sei que é quase um tabu não se criticar nada de Drummond. O tabu é absurdo quanto a seus livros de memórias. São memórias próprias ao cronista, não ao grande poeta, que ele foi quase sempre.
 
IHU On-Line - Afastado de discussões públicas sobre poesia, Drummond foi advertido, certa vez, por Mário Faustino  por não se interessar no desenvolvimento da poesia no Brasil. Décio Pignatari , por sua vez, disse que ele era um intelectual apenas mediano, nunca tendo mostrado interesse maior pela discussão, por exemplo, de outras artes. Isso é cabível?
Luiz Costa Lima -
Sim e não. Sim, no sentido de que Drummond, ao contrário de Cabral e de Haroldo de Campos , nunca desenvolveu uma dimensão crítica. Mas essa dimensão é rara entre os poetas ou entre os artistas, em geral. Valéry, Mallarmé e Eliot, por exemplo, a tinham, mas não um Rilke, sem que isso prejudique sua qualidade poética. Paul Klee  a tinha em grau extremo, mas não um Picasso . Havemos de entender que o poeta/o artista pode ter dimensões intelectuais diferentes. O decisivo, entretanto, não é a extensão dessa dimensão, mas a intensidade de sua produção específica. Sem essa distinção primária, haveríamos de declarar que Hegel  era um filósofo da arte medíocre, pois os poemas que dele se conhecem são péssimos. Ou que Friedrich Schlegel  não foi o primeiro grande crítico moderno porque escreveu romances sofríveis e seus poemas não fazem falta.
 
IHU On-Line - Qual é a diferença que o senhor efetua entre os objetivos da poesia de Drummond e os de Mallarmé? O poeta teria ficado, ao longo do tempo, menos hermético e mais interessado pelos fatos do cotidiano, a julgar, por exemplo, pelo que dizia Antonio Candido, de que Boitempo (constituído por três livros) era uma espécie de autobiografia em verso?
Luiz Costa Lima -
Não sou um adepto incondicional de Mallarmé, embora reconheça o quanto a poesia contemporânea de qualidade deve a ele – por sua produção e suas intuições teóricas. Não creio que o problema com os últimos livros de Drummond esteja em que ele tenha se tornado mais interessado nos fatos do cotidiano, mas sim na maneira como os apresenta. Como já disse, adequada ao gosto menos exigente do leitor de crônicas. Acrescento: parece-me haver, hoje em dia, nos círculos mais requintados, uma supervalorização do hermético. Algo de qualidade não necessita ser hermético, nem hermetismo é sinônimo de qualidade. Talvez essa supervalorização seja uma reação à tendência mais comum de fazer com que a obra (poética, crítica ou teórica) atenda ao gosto do mercado. Se estiver certo, o último Drummond cede a essa tentação. Mas, em resumo, isso pouco importa, dada a qualidade de suas seis outras faces.        

 

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