Edição 232 | 20 Agosto 2007

A obra poética de Drummond foi feita de viradas e experimentação de novas formas

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De acordo com Iumna Maria Simon, professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP), “a modernidade de Drummond não escamoteou os lados atrasados da sociedade brasileira, soube tratá-los com imaginação e se relacionar criticamente com eles”. A afirmação faz parte da entrevista concedida por Simon, por e-mail, à IHU On-Line.

Iumna é graduada em Letras e especialista em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É doutora em Literatura Brasileira pela UNESP com a tese A rosa do povo: uma poética do risco e cursou pós-doutorado na Universidade de Yale, nos EUA. É autora de Drummond: uma poética do risco (São Paulo: Ática, 1978); Poesia concreta (São Paulo: Abril Cultural, 1982), com Vinícius Dantas; Território da tradução (Campinas: IEL/FUNCAMP, 1984) e organizou a edição crítica das Poesias completas de Alvares de Azevedo (Campinas e São Paulo: Unicamp e Imprensa Oficial do Estado, 2002).

IHU On-Line - Drummond, em razão, sobretudo, de A rosa do povo, foi um poeta político e participante, com suas “líricas de guerra”, visando a uma “comunicação afetiva” e uma “anti-poesia”. Isso, conseqüentemente, o afastaria de uma “poesia pura” (na linha adotada por um Valéry)?
Iumna Maria Simon –
No curso da Segunda Guerra, em que aflora à consciência artística a necessidade de participação nos acontecimentos, Drummond não toma o partido fácil de escolher entre os dois pólos. Pelo contrário: faz do seu engajamento uma tensão permanente entre puro e impuro, poético e antipoético, entre centramento lírico e abertura do poema ao mundo. São tensões que alimentam A rosa do povo, colocando sob suspeita a viabilidade de uma ou outra forma de expressão. Dessa maneira, o poeta experimenta as possibilidades da linguagem poética até o limite de suas forças expressivas. “Consideração do poema”  e “Procura da poesia” , os dois primeiros poemas, armam os termos da contradição que movimenta a energia criadora do livro: do compromisso com a matéria do presente ao compromisso com as palavras; do registro objetivo dos fatos ao recolhimento subjetivo; da ampliação discursiva do verso à máxima voltagem lírica, num jogo extraordinário entre a expansão e a condensação do discurso poético, entre a prosa e a poesia, mas um jogo de contaminação mútua que impregna a formalização interna dos poemas. Quer dizer, os pólos do poético e do antipoético são categorias dinâmicas que se inter-relacionam de modo tal que um passa a ser condição de existência e validade do outro. Penso que as experiências mais ricas da poesia moderna brasileira advêm dessa disposição desassombrada para pensar o poético a partir da instigação viva do antipoético. Portanto, falar em “poesia pura” para A rosa do povo é voltar a um padrão anterior, que justamente havia sido criticado.

IHU On-Line - Quais são as mudanças que se efetuam do primeiro modernismo (de Mário e Oswald de Andrade e Manuel Bandeira) para o segundo (de Murilo Mendes e, sobretudo, Drummond)? Drummond representa quais ganhos nessa passagem?
Iumna Maria Simon –
Alguma poesia (1930), primeiro conjunto de poemas publicado por Drummond, tem sido abordado como um livro de estréia marcado pelas propostas modernistas dos anos de 1920, graças não só ao apego ao pitoresco local, ao humor, ao poema-piada, como pela prática de um lirismo objetivo, à maneira de Oswald de Andrade. Estes são os procedimentos específicos do primeiro tempo do modernismo brasileiro, os quais mais tarde o nosso poeta chamaria de “nativismo neo-realista”, numa crítica evidente às principais armas de choque daquele momento. No famoso “No meio do caminho” , que fez tanto alarde na época, ele revoluciona a piada injetando nela o foco existencial e o subjetivo, que especula sobre a vida e o poema, sem perder o ânimo da provocação. Afinal, essa é a dialética artística que move as renovações genuínas, ou melhor, foi a experiência acumulada no curso dessa vanguarda que possibilitou o aproveitamento e a superação crítica das concepções estéticas iniciais para o passo adiante dos grandes poetas brasileiros da década de 1930. A correspondência de Drummond com Mário de Andrade ilustra esse aprendizado, tanto que a edição das cartas de Mário de Andrade, organizada e anotada pelo próprio Drummond, recebeu o título A lição do amigo. O primeiro modernismo foi a sua deseducação salvadora.

IHU On-Line – Como a família e o amor se mostram na obra drummondiana? Tais elementos são sempre vistos por um olhar melancólico, benjaminiano, ou há alegria nas lembranças que ela evoca?
Iumna Maria Simon -
A pergunta que podemos fazer ao conjunto da obra é como um dos maiores escritores modernos do século XX, que acompanhou e registrou os acontecimentos nacionais e internacionais mais marcantes de seu tempo, soube preservar suas relações familiares tradicionais e reverenciar, mesmo quando o critica, o mundo tradicional do patriarcalismo brasileiro. É o passado que ainda vive subjetivamente no presente, invadindo ou embaçando o olhar que se dirige ao mundo, o que tem uma força de revelação inegável para melhor compreendermos o movimento modernista no Brasil. Ou, revirando a pergunta, como um poeta tão ligado ao seu passado patriarcal pôde assumir posições socialistas lúcidas e sempre atentas às disparidades da sociedade brasileira? É o que já notou Antonio Candido, quando disse: “é sem dúvida curioso que o maior poeta social da nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o grande cantor da família como grupo e tradição”. Noutras palavras, a modernidade de Drummond não escamoteou os lados atrasados da sociedade brasileira, soube tratá-los com imaginação e se relacionar criticamente com eles.

Não saberia dizer se Drummond escreveu realmente algum poema de amor. Talvez tenha usado os temas amorosos antes para revelar a condição humana em sua finitude e efemeridade. No início, nos anos 1920, o amor é humor e clichê, os poemas que falam dele fazem graça e piada para rir de seu lado convencional e burguês. A partir de Claro enigma, salvo engano, as passagens amorosas se adensam e sofrem uma solene expansão meditativa, surpreendendo a existência de amor em situações menos prováveis: na velhice, na derrota, na fraqueza, na desilusão. Curiosamente, quase toda vez em que o amor aparece acentua-se o jogo supremo com as formas. “E já não sei se é jogo, ou se poesia” - como ele acaba a sua “Elegia” de Fazendeiro do ar . Amor é pretexto para a variação de formas, fixas ou não, paráfrases de tópicas clássicas, revisitação do passado sob a forma de um balanço existencial ao mesmo tempo amargo e gracioso. O tema amoroso presta-se como licença para retomar gêneros antiquados ou maneiras esquecidas do Simbolismo  para trás. Acho seus poemas eróticos muito fracos. Drummond jamais chegou ao erotismo de Manuel Bandeira  e mesmo ao de João Cabral, que escreveu um dos poemas mais eróticos da literatura brasileira, “Estudos para uma bailadora andaluza”.

IHU On-Line - Quais são os livros que Drummond melhor emprega sua poética? Ele teria, com o tempo, se transformado no que alguns críticos falam: num “poeta cronista”?
Iumna Maria Simon –
É o que dizem, sobretudo a respeito dos três Boitempo e de Versiprosa, cujo subtítulo é “Crônica da vida cotidiana e de algumas miragens”.  Numa notinha introdutória a este último, o autor explica que nele reuniu crônicas publicadas em vários jornais, crônicas que “transferem para o verso comentários e divagações da prosa”. Como não se animava a chamá-las de poesia, e prosa deixaram de ser, batizou-as de “versiprosa”. Basta este exemplo para ilustrar como uma forma de expressão age sobre a outra, multiplificando os recursos de composição, intensificando a mescla estilística, o cultivo da prosa no interior do verso e, no caso de Boitempo, também abrindo a forma poética ao relato e à narrativa. A crítica a que você se refere vê aí uma perda da tensão formal e do ângulo trágico-problemático da poesia anterior, uma recaída no prosaico e no jocoso. Que o tom, a dicção e a energia poética mudaram não há dúvida, mas toda a obra poética de Drummond não foi feita de viradas e experimentação de novas formas? É bom lembrar que literatura e jornalismo sempre foram atividades complementares na vida de Drummond e formas de expressão indissociáveis na mescla estilística de sua obra, em verso e prosa.

IHU On-Line – Em seu estudo Drummond: uma poética de risco, a senhora lembra, baseada em Mukarovsky , que o “estudo científico da literatura exige a consideração do meio social onde a obra teve origem em relação ao qual ela funciona”. No estudo, ainda lembra-se de considerações de, entre outros, Adorno . Como a relação entre o histórico e o social se mostraria na obra poética de Drummond?
Iumna Maria Simon –
É fácil tratar da relação entre o histórico e o social nos poemas de alto índice participante de A rosa do povo. Mas como este não é um livro de mão única, o que me interessou no passado foi verificar a referida relação nos demais poemas do conjunto, sobretudo naqueles centrados na tônica da expressão individual, da memória, da condensação lírica, da metapoesia. Ao dar esse passo analítico, ainda tateante na época, constatei que esses outros poemas (que, aliás, são a maioria do conjunto) só podem ser compreendidos se confrontados com o contexto histórico-político em que se inscrevem e, por conseguinte, no  diálogo tenso e contraditório que mantêm com os poemas de conteúdo participante. Mesmo “Procura da Poesia”, em geral considerado como um manifesto estético estranho ou até oposto ao empenho de participação, ao debater a inutilidade dos temas e assuntos e firmar o compromisso do poeta com as palavras, quer testemunhar a passagem da palavra poética pela história.

IHU On-Line - Como se poderia relacionar a multidão enfocada por Walter Benjamin  na obra de Baudelaire  na poesia de Drummond, também lembrada em seu estudo? É certo, neste sentido, aquele verso de Drummond “É preciso ler Baudelaire”? O poeta brasileiro tem um diálogo com o francês, na descrição dos movimentos urbanos, novas formações de massas?
Iumna Maria Simon –
Não acredito na aplicação direta da análise de Benjamin à poesia moderna do século XX, porque os problemas já são outros, o capitalismo avançou muito e o consumo se instalou em larga escala, mesmo que as metrópoles novamente tenham se tornado numa arena de violência e pobreza. O diálogo com Baudelaire interessou ao nosso poeta menos pelo lado dos assuntos ou da referência intertextual do que pelo tratamento estético da modernidade, por ser a fonte de que deriva a intervenção da consciência crítica na poesia moderna. É inegável que Drummond encontrou aí o senso agudo do presente como força constitutiva da experiência artística na modernidade. A escolha de um tema é devida à sua existência na realidade presente ou, como diz Baudelaire, a atração de um escritor por seu tema é a atração por uma ação, por um significado autônomo que existe fora do reino da linguagem, ou seja, uma atração pelo que não é arte. Claro que a abordagem que Benjamin faz do crescimento urbano-industrial e da multidão, da experiência do choque, da transformação da percepção e dos sentimentos são importantes, porém decisivas são a perda da aura poética, a consciência da queda, a incorporação do baixo, do grotesco, do monstruoso, dos fatos e circunstâncias históricos à linguagem elevada da poesia. E mais importante que tudo: o ódio à impotência de classe, a tortura da auto-análise e o reconhecimento da violência disseminada. São princípios ausentes no ideário político da esquerda da época que a inteligência drummondiana precisou buscar num escritor esteticista do século XIX. Penso que nesses aspectos resida a chave da interlocução, considerando-se o quanto Drummond atualizou Baudelaire e avançou soluções poéticas capazes de apreender a contingência histórica da experiência brasileira noutro momento da modernização, como vemos, por exemplo, em “Nosso tempo” .

IHU On-Line - João Alexandre Barbosa  falava no conhecimento poético de Drummond, que incluía todas as esferas (cultural, social, política). Mas Drummond também ficou conhecido, sobretudo pela famosa declaração de Mário Faustino , por não se interessar em discutir poesia. Isso seria verdade? Sua própria obra já não seria, inclusive, crítica de outras artes?
Iumna Maria Simon –
Drummond nunca foi programático, no sentido desejado por Mário Faustino que, como sabemos, agia como um Ezra Pound  mirim. Drummond praticou a crítica literária e artística e o ensaísmo à sua maneira. Esses textos podem até hoje ser lidos com vivo interesse. Além do que, como você notou, sua obra poética é uma indagação permanente sobre a poesia, o poema e a linguagem, sempre inserida no quadro histórico em que o poeta viveu e a escreveu. Quer melhor e mais avançada discussão desses temas do que a travada entre “Consideração do poema”  e “Procura da poesia” , ou nos poemas dedicados a poetas, artistas, fotógrafos etc.? Suas crônicas fervilham de análises, comentários críticos, juízos artísticos e, particularmente em Confissões de Minas  e Passeios na ilha ,são verdadeiros ensaios sobre poetas brasileiros e estrangeiros, prosadores, questões de técnica e composição literária, sobre os impasses de sua própria poesia. Sem contar as cartas e as melhores entrevistas, em que ele expressa seus pontos de vista sobre literatura e sobre os rumos da produção poética contemporânea. Portanto, o simplismo juvenil de Faustino não faz sentido.

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