Edição 232 | 20 Agosto 2007

Um eu poético retorcido

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IHU Online

“A subjetividade dramática, ‘retorcida’, do eu poético de Drummond é resultante de vários conflitos, que remontam à ordem familiar, às raízes provincianas, passam pela incorporação dos valores culturais da modernidade e pelos questionamentos metafísicos”, disse Alcides Villaça, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. E complementa: “São retorcimentos pessoais, mas nada exclusivos de Drummond: traduzem as graves incompatibilidades de todo indivíduo que aspira a ser sujeito pleno numa época em que a suposta exaltação do plano individual, liberal é, na verdade, mascaramento de uma grande massificação”.

Graduado em Letras e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, Villaça escreveu a dissertação Consciência lírica em Drummond. Cursou doutorado em Literatura Brasileira na USP com a tese Poesia de Ferreira Gullar. É livre-docente pela USP e leciona nessa instituição, no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Também é autor dos livros O tempo e outros remorsos (São Paulo: Ática, 1975); Viagem de trem (São Paulo: Duas Cidades, 1988); e Passos de Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2006).

IHU On-Line - O indivíduo em Drummond é reconhecido como “um eu todo retorcido”. O poeta também é visto como um dos poetas notoriamente públicos do século XX. Em que medida, com relação a isso, pode-se ver aquela “subjetividade tirânica” destacada por Antonio Candido ? Drummond seria um poeta, no fundo, individualista? Como isso se mostra a partir de seus poemas?
Alcides Villaça -
A subjetividade dramática, “retorcida”, do eu poético de Drummond, é resultante de vários conflitos, que remontam à ordem familiar, às raízes provincianas, passam pela incorporação dos valores culturais da modernidade e pelos questionamentos metafísicos. Tudo isso ocorre no interior de um sujeito tímido e lúcido, incapaz de renunciar ao empirismo da vida na mesma medida em que é incapaz de renunciar aos mais altos ideais. Esse descompasso resulta em drama, sentimento de insuficiência, sensação de deslocamento. Mas também fornece um ângulo muito proveitoso para a criação poética, que é o ângulo do gauche: perspectiva libérrima, sem compromisso com a coerência fácil, e aberta para viver os disparates e as verdades da cabeça e do coração. Ou seja: a insuficiência de ação, nascida da timidez, sublima-se na bela expressão dos desejos mais fundos; o ideal inatingível é, a só um tempo, exaltado e temperado pela ironia; a confissão é tão verdadeira quanto a piada que pretende disfarçá-la. São retorcimentos pessoais, mas nada exclusivos de Drummond: traduzem as graves incompatibilidades de todo indivíduo que aspira a ser sujeito pleno numa época em que a suposta exaltação do plano individual, liberal é, na verdade, mascaramento de uma grande massificação.

IHU On-Line - Quais são as mudanças efetuadas por Drummond em relação aos modernistas precursores, como Oswald  e Mário de Andrade  e Manuel Bandeira ?
Alcides Villaça -
Drummond esteve, no início, muito atento às novas técnicas literárias e às novas perspectivas culturais adotadas pelos modernistas, mas não fez delas um programa, pelo contrário: submeteu-as ao controle de seu “retorcimento” pessoal. Paradoxalmente, soube potenciá-las no território dos limites de sua personalidade, Nunca deixou de ouvir as lições de Mário de Andrade, seu amigo, mas desde logo reconheceu-se como um “Carlos”, e não pôde nem quis abrir mão de sua personalidade, da qual era, aliás, o crítico mais exigente.  Além disso, há sempre a ação dessa coisa misteriosa que é o talento artístico, inexplicável como fonte, mas verificável como resultado. De onde vêm os ritmos e as imagens de Drummond, tão soberbamente controlados pela consciência implacável e, ao mesmo tempo, potenciados pela sensibilidade do poeta?

IHU On-Line - Alguns críticos observam que há uma divisão, na obra de Drummond, entre uma poesia formalista e uma poesia social? Poderia falar um pouco sobre essa separação que costuma ser feita e se concorda com ela? A obra de Drummond atravessou fases? Quais seriam elas?
Alcides Villaça -
Há, de fato, vários Drummonds nesses sessenta anos de produção poética. A personalidade dramática é dinâmica: atravessa humores, avaliações, situações e linguagens diversas. Prefiro o termo “movimentos” a “fases”. A diversidade desses movimentos nasce de sucessivas alterações de espírito e de posicionamento diante do mundo, que pode ser visto como emergência histórica, configuração política, abertura de expectativas, palco dramático, falsa totalização, ordem absurda etc. Não vejo tão-somente oposições internas, mas descontinuidades que resultam da alteração das convicções do poeta. Não é difícil, eu sei, opor A rosa do povo a Claro enigma, mas com isso se perde o que há de subjetivismo inquietante no primeiro e o que persiste, ainda que no pano de fundo, como consciência histórica (desenganada) no segundo. “Social”, no sentido forte da palavra, toda a poesia de Drummond é: não há poema dele que não possa incluir uma multidão de sujeitos.

IHU On-Line - Como se apresenta a relação que Drummond estabelece com a cidade grande, visto que ele se mudou de Itabira (no interior de Minas Gerais) para o Rio de Janeiro? Quais são os poemas que melhor mostram tal relação?
Alcides Villaça -
Ele foi de Itabira para Belo Horizonte, e da capital mineira para a então capital do País. O percurso é clássico: um intelectual busca seus pares, desgarra-se da província e estaciona num grande centro cultural. Drummond incorporou a vida carioca em suas crônicas, mas sua poesia ateve-se aos dramas essenciais de um mineiro provinciano que ingressou na modernidade histórica e ainda se reservou o direito a um sentimento cósmico do mundo. Para aferir alguns lados desse drama, leia-se, por exemplo, “Cidadezinha qualquer” , “A um hotel em demolição”  e “A ilusão do migrante” .

IHU On-Line - Há um grande atrativo pelo Drummond público, capaz de ter contatos com políticos e mesmo de incorrer numa linha mais sociológica, durante a época de A rosa do povo. Como o senhor vê a influência de dados históricos nos poemas de Drummond? Eles são claros?
Alcides Villaça -
Sobretudo em A rosa do povo, os fatos históricos surgem em plano aberto, deixando claro o posicionamento político (socialista) do poeta. “Com o russo em Berlim”  e “Carta a Stalingrado” , por exemplo, dizem tudo, já pelo título. Pessoalmente, em A rosa do povo, tenho preferência pelos poemas em que a participação se oferece de modo mais conflituoso, como em “A flor e a náusea”  ou em “O elefante” . Quem quiser acompanhar os sofridos processos íntimos desse poeta “individualista” buscando a dimensão do político, leia o livro O observador no escritório , em que Drummond publicou parte de um seu diário íntimo.

IHU On-Line - Como o senhor enxerga o poeta que diz “Minha matéria é o nada” (no poema “Nudez” ), é bastante melancólico e parece se fazer tão presente em relação aos problemas reais do cotidiano brasileiro? Isso seria um paradoxo em sua obra?
Alcides Villaça -
Confesso que não vejo “problemas reais do cotidiano brasileiro” em “Nudez”, um poema que desenvolve soberbamente o sentimento de desengano, de niilismo e de morte. O verso “Minha matéria é o nada”, paradoxal em si mesmo, corresponde a uma dolorosa renúncia à qualquer manifestação de vida: é o poeta entrando na essência negativa do mundo, na absoluta falta de sentido de tudo, do que resulta essa aspiração à nudez definitiva, identificada no despojamento que só a morte propicia. É um dos picos da poesia regida pela negatividade drummondiana.

IHU On-Line - Por que Drummond, para o senhor, é tão enigmático, e em quais temas ou poemas tal característica fica mais evidenciada? Vem desse elemento o tamanho da fortuna crítica que hoje possui o poeta?
Alcides Villaça -
Como eu também acho que a razão de ser do mundo e de nossas vidas é um grande enigma, tendo a ver com naturalidade esse poeta “enigmático”. Mas, para a poesia, a questão não está nos enigmas em si mesmos, e sim na intensidade dos símbolos que os traduzem e os revelam numa forma possível, às vezes sublime. Quem gosta de poesia, toma-a como uma verdade profunda deste nosso mundo inexplicado. Nosso consolo (Drummond nos ensinou): pode iluminar nossas perguntas com imagens, embalar nossas interrogações no envolvimento dos ritmos, e a beleza assim conquistada se acrescenta aos outros enigmas. Vejam-se poemas como “Um boi vê os homens” , “Relógio do Rosário” , “O enigma”  e “A máquina do mundo” , por exemplo, para se reconhecer a variação de perspectivas que o poeta adotou para tratar das perguntas sem respostas. Certamente, boa parte da fortuna crítica de Drummond deve-se ao interesse das questões mais vivas, formuladas com tanta intensidade, que o poeta disseminou em seus discursos poéticos.

IHU On-Line - Antonio Candido dizia que em Drummond a “idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura do poema”; Luiz Costa Lima  falou sobre a “corrosão” na obra do poeta; João Alexandre Barbosa  comentava sobre o seu “conhecimento”; Haroldo de Campos  destacou a concretude de alguns poemas do poeta mineiro; Affonso Romano de Sant’Anna  falava no “gauche”. Em Passos de Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2006), seu livro, há algum mote que sintetizaria a obra analisada?
Alcides Villaça -
Permita-me, então, citar uma pequena passagem do meu livrinho, na qual busco alguma síntese: “O antagonismo entre a necessidade afetiva de constituição e expressão de um sujeito e a desconfiança crítica de que tal tarefa é mais que problemática traduz muitos dos paradoxos do nosso tempo. O mais ferrenho individualismo, explorado nos limites agudos da autoconsciência, é também a consciência possível do mundo torto. O discurso lírico drummondiano nos faz viver a experiência condutora de uma inteligência pujante, mas irônica, como os desvãos de uma paixão desconsolada, mas irresistível. A sensação de nos surpreendermos atravessados simultaneamente por essa inteligência e por essa paixão, num mesmo golpe, expressivo, é o selo da contundência dessa poesia”.

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