Edição 231 | 13 Agosto 2007

O conceito de hegemonia. Gramsci e a esquerda brasileira

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De acordo com Gildo Marçal Brandão, filósofo e coordenador científico do núcleo de apoio à pesquisa sobre democratização e desenvolvimento da USP, a partir dos anos 1980 e 1990 Gramsci passou a ser um autor importante no Brasil, propagado por autores ligados ao velho Partido Comunista Brasileiro. O pesquisador ressalta que Gramsci foi importante na construção da esquerda em nosso país porque justificava, delineava e trazia elementos de reflexão para uma esquerda que tentava fazer uma política de frente democrática contra o regime militar. Entretanto, Brandão ressalta que a análise das classes como motor das mudanças sociais, critério chave do marxismo e do próprio Gramsci, “é ultrapassado”. A entrevista foi realizada por telefone.

Brandão é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e doutor em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP). É pós-doutor pela University of Pittsburgh e, atualmente, é coordenador científico do núcleo de apoio à pesquisa sobre democratização e desenvolvimento da USP. De sua vasta obra bibliográfica, destacamos A esquerda no Brasil (São Paulo: Duetto Editorial, 2006) e A esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista, 1920-1964 (São Paulo: HUCITEC, 1997). Confira a entrevista a seguir:

IHU On-Line - Qual é a importância de Gramsci na construção da esquerda brasileira?
Gildo Marçal Brandão –
Gramsci foi influente no Brasil a partir dos anos 1970. O Brasil foi um dos primeiros países que traduziu sua obra. Num determinado momento, ele passou em “brancas nuvens”. Depois, a partir dos anos 1980 e 1990, se tornou um autor importante, propagado no Brasil, em geral, por autores ligados ao velho Partido Comunista Brasileiro : Carlos Nelson Coutinho , Leandro Konder , Luiz Werneck Vianna , Marco Aurélio Nogueira  e Luiz Sérgio Henriques . Alguns liberais, e pessoas de extrema esquerda também interpretaram as obras de Gramsci, de maneira diferente.

Gramsci foi importante na construção da esquerda porque justificava, delineava e trazia elementos de reflexão para uma esquerda que tentava fazer uma política de frente democrática contra o regime militar. Várias categorias do Gramsci e do euro-comunismo foram usadas no Brasil por uma parte da esquerda que estava se reconciliando com a democracia, e que achava que não se devia lutar pela derrubada da ditadura, mas sim pela derrota da ditadura. A idéia era fazer uma política de frente para isolar o regime militar. Então, categorias de Gramsci, como a Guerra de Produção e a idéia de que o País já era ocidentalizado e não oriental, comportavam a luta política institucional, luta de massa, reivindicação da democracia. Esse foi o Gramsci importante para a reconstrução da esquerda brasileira. Isso influenciou no começo o velho comunismo e depois se propagou pelo petismo, que tinha muitos elementos em contradição com a velha esquerda comunista. Mas Gramsci foi particularmente influente nos dois casos, porque, em ambos, a atenção da luta democrática, institucional e eleitoral, era importante.

IHU On-Line - Hoje, que reflexos de sua obra sobrevivem nos partidos de esquerda do Brasil?
Gildo Marçal Brandão –
Eu não conheço bem os partidos de esquerda que sobrevivem no Brasil. Mas eu tenho impressão que a obra de Gramsci deixou algum resquício intelectual. Por exemplo, existe um site chamado Gramsci e o Brasil , que reúne intelectuais que ainda são ligados a uma posição de esquerda democrática, de esquerda gramsciana, no Brasil. Mas o Gramsci como elemento de direção política, de definidor de estratégias, não existe mais. A influência dele na esquerda brasileira é muito pequena. É claro que ficou a marca de um certo setor da esquerda democrática, da esquerda que considera a democracia um valor universal. É aí onde Gramsci sobrevive como influência intelectual.

IHU On-Line – Por que os ensinamentos de Gramsci se perderam nos partidos de hoje?
Gildo Marçal Brandão –
Primeiro porque o marxismo saiu do cenário, ou seja, ele foi fortemente abandonado e superado. O desprestígio das idéias marxistas afetou muito os teóricos latinos. Gramsci, deles todos, talvez seja um dos que melhor resista, justamente porque tem o marxismo muito voltado para a análise de situações e processos políticos. Nesse ponto, o Gramsci tem muito o que dizer. Boa parte do pensamento marxista, hoje, não é nem muito considerado. Por exemplo, um critério-chave do marxismo e do próprio Gramsci é a análise das classes como motor das mudanças sociais. Ora, se observarmos a sociologia moderna, dos últimos 20 anos, se percebe que há um abandono quase generalizado da teoria das classes para explicar as mudanças sociais. Muitos sociólogos tomavam a teoria das classes como o principal vetor que explicava a mudança social. Hoje, não se tem mais nenhuma teoria nesse estilo. Não se tem mais, nas ciências sociais, teorias que explicam o conjunto. Existem, sim, teorias que explicam partes, de alcance médio, mas não globais. Há um desprestígio que afetou o marxismo, o funcionalismo, o estruturalismo. Toda essa influência recente do pós-modernismo jogou teóricos como Gramsci em segundo plano. Isso não quer dizer que não sobrevivam ou existam intelectuais marxistas de primeira categoria, com posições divergentes.

IHU On-Line - Carlos Rosselli referiu-se a Gramsci como um gênio. Quais são suas principais contribuições à ciência política atual?
Gildo Marçal Brandão –
Gramsci sempre se recusou de separar a política da sociologia, da economia, da cultura. Ele sempre pensou globalmente. Hoje, as ciências sociais são muito fragmentadas e segmentadas. Então, batia de frente com isso. Apesar de ser um marxista, e ser contra de qualquer tipo de elitismo, ele sempre achou que as ciências sociais tinham que estudar e abarcar um conjunto de atividades, pelos quais as classes dirigentes não só mantêm como justificam seu domínio e tentam obter o consentimento passivo dos governados. Para ele, o problema político central era superar a divisão entre governantes e governados, isto é, transformar os governados, que constituem a classe subalterna, em capazes de serem governantes. Por isso, ele acreditava que não bastava vencer; era necessário convencer. Era possível que um grupo político, mesmo sem estar no poder, podia se transformar numa classe dirigente da sociedade, desde que soubesse transformar os seus interesses em interesses universais desta sociedade. Por esse caminho, Gramsci cunhou a razão da hegemonia, que é fundamental para as ciências políticas. Essa idéia de hegemonia, ao meu ver, é a principal contribuição que ele deu às ciências sociais.

IHU On-Line - Como Gramsci pode contribuir para fortalecer a democracia brasileira?
Gildo Marçal Brandão –
Do jeito que entendo, Gramsci nos ajuda a pensar em como construir democraticamente a democracia, e construir o socialismo, no qual ele acreditava. O Gramsci aposta nesse caminho democrático e tende a ver essas duas coisas como um mesmo processo. Nesse sentido, ele é bastante coerente e reforça a capacidade que se tem de refletir e atuar num sentido de construir uma direção política que não apenas vença o adversário, mas o convença.

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