Edição 231 | 13 Agosto 2007

Gramsci, 70 anos depois. 'A esquerda precisa resolver, de uma vez por todas, sua questão com a democracia'

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De acordo com o cientista político, Marco Aurélio Nogueira, o Estado é a expressão “de uma correlação de forças”, que costuma ser usado pelos “sujeitos em seus movimentos para avançar rumo à supremacia”. Ele enfatiza que os partidos que continuarem a imaginar a sociedade atual como a “mesma sociedade de classes claramente definidas e posicionadas umas contra as outras, como na época de Gramsci, não terão condições de exercer funções positivas de direção política e cultural”.

Marco Aurélio Nogueira é graduado em Ciências Políticas e Sociais, pela Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo, doutor em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-doutor pela Universidade de Roma, Itália. Atualmente,  é professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Puc-SP, Unicamp).

Nogueira concedeu entrevista à IHU On-Line, 17 de outubro de 2005, na edição nº 160, intitulada Os desafios da justiça e as políticas para uma cultura de paz. A entrevista intitulada A despolitização nasce o tempo todo da vida atual pode ser conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

IHU On-Line - O que Gramsci diria da sociedade atual, engolida pelo capitalismo, pela globalização, e extremamente resistente ao socialismo democrático? O que Gramsci ainda teria para nos ensinar?
Marco Aurélio Nogueira -
Ele veria com horror e preocupação o panorama atual, tão frio e calculista, tão injusto e desumano, tão desigual. Gramsci era um comunista: não poderia
ter outra atitude diante da sociedade que está aí. Mas ele era um comunista com duas características fortes, que se sobressaíam: era democrata e pensava dialeticamente. Com certeza, reconheceria como positivos os avanços democráticos conseguidos na segunda metade do século XX, especialmente os que estão associados à democratização dos relacionamentos e ao enfraquecimento das distâncias e das hierarquias entre as pessoas. Se fosse possível imaginar sua reação (coisa que certamente não é, ou somente o é em termos especulativos), acho que o veríamos aplaudir o que se conseguiu neste sentido. Como também era dialético, não se fixaria somente nos aspectos “trágicos” da situação atual e procuraria ver suas contradições em processo, ou seja, os elementos de negação e superação que brotam o tempo todo desta mesma situação. Seria este seu maior ensinamento, o convite permanentemente feito por ele à esquerda.

IHU On-Line - De acordo com os pensamentos de Gramsci, o Estado contribui, de alguma maneira, para a construção da hegemonia?
Marco Aurélio Nogueira -
O Estado não contribui para a construção da hegemonia, até mesmo porque o Estado, na visão gramsciana, não é um ator nem um sujeito. Ele é a expressão de uma correlação de forças, um espaço institucional e ético-político que costuma ser conquistado e “usado” pelos sujeitos em seus movimentos para avançar rumo à supremacia, à dominação política. Deste ponto de vista, o Estado é uma referência fundamental. Sem ele, teríamos somente “lutas de interesses”, estado de natureza e guerra de todos contra todos, como diria Hobbes . Fazer política sem levar em conta este valor do Estado é algo que se
afasta radicalmente das concepções de Gramsci. A própria sociedade civil, que Gramsci elevou a conceito essencial da teoria política, só faz sentido se for pensada desta perspectiva, ou seja, como um elemento articulado com o Estado.

IHU On-Line -  Ao contrário do príncipe de Nicolau Maquiavel, o “Moderno Príncipe” de
Gramsci era um ente coletivo, personificado num partido. Poderia analisar como essa idéia continua fazendo parte da proposta de esquerda contemporânea?  Há alguma ligação entre essa idéia e um engessamento nas decisões?
Marco Aurélio Nogueira -
O partido gramsciano era um partido estruturado por formas de centralismo democrático e no qual as bases deveriam estar o tempo todo em ação, pressionando seus dirigentes e impedindo-os de se cristalizarem como burocratas. Os partidos - todos eles - enfrentam sempre o risco da burocratização, do engessamento das decisões, e somente seu funcionamento democrático e transparente pode atenuar tal risco. O modelo gramsciano de partido punha-se precisamente nesta linha, buscando bloquear ou dificultar engessamentos e cristalizações burocráticas. Era um partido democrático para “dentro” e inteiramente dedicado a dialogar e a interagir democraticamente com o que estava “fora” dele.

Creio que a esquerda contemporânea continua a ganhar com esta idéia de partido, por mais que os fatos duros da vida tenham complicado o funcionamento e a própria existência dos partidos políticos. Hoje, justamente por estes dados da vida, os partidos de esquerda precisam inventar novas formas de estruturação e de ação, mas continuam sendo necessários como “a sociedade que se organiza”, como poderia dizer Gramsci. Partidos que se concebam como estruturas pesadas, que se distanciem da vida real, que imaginem que a sociedade atual ainda é a mesma sociedade de classes claramente definidas e posicionadas umas contra as outras, como na época de Gramsci, não terão condições de exercer funções positivas de direção política e cultural.

IHU On-Line - É possível conciliar socialismo com o capitalismo globalizado? Por que e como?
Marco Aurélio Nogueira -
Conciliar no sentido de que um possa colaborar para a afirmação do outro, certamente não. São sistemas distintos, propostas de vida diferentes, incompatíveis entre si. Mas o capitalismo globalizado é um fato da vida, e o socialismo é uma proposta, um desenho de sociedade ideal. Neste sentido, é perfeitamente possível imaginar que, nas sociedades concretas, em função das lutas políticas e dos embates culturais que nelas se manifestem, certas reformas de tipo socialista possam ser efetivadas. Mudanças expressivas na distribuição de renda e na redução das desigualdades, melhores mecanismos de formulação e implementação de políticas de promoção social e emancipação, formas de defesa e ampliação dos direitos de cidadania, modalidades democráticas e populares de gestão e de tomada de decisões, são passos importantes nesta direção. Tem sido assim deste que o capitalismo passou a se confrontar com o socialismo; quanto mais o socialismo se traduziu em ação, quanto mais conseguiu falar com as massas e traduzir adequadamente suas expectativas, mais este movimento de progressiva “socialização” do capitalismo ocorreu. Boa parte do que temos, hoje, de vida civilizada, justiça social e avanço democrático, deveu-se a isto.

IHU On-Line -  Quais são as principais contribuições de Gramsci para as transformações políticas na América Latina?
Marco Aurélio Nogueira -
Numa frase: fazer valer a força da democracia e da mobilização política contra todas as formas de desigualdade e injustiça, sem deixar de reconhecer que a vida é sempre uma síntese de claro e escuro, ou seja, que não há nenhuma situação que contenha somente elementos negativos, deletérios. A crítica categórica (o pessimismo da razão) não pode minimizar as possibilidades de ação (o otimismo da vontade).

IHU On-Line - Lula foi um líder político formado dentro do PT, que sempre apoiou o
movimento do MST, por exemplo. O senhor acha que, enquanto presidente, ele se esqueceu das lutas e ideais do seu partido?
Marco Aurélio Nogueira -
Não acho não. Mas quem vai ao governo não pode continuar a agir como se estivesse na oposição. Governar sempre implicará fazer concessões, em maior
ou menor grau, sempre conterá algum elemento de contraste com as reivindicações sociais, sempre exigirá atitudes de recusa por parte do governante. Governar também é dizer não, tanto para os poderosos e os adversários quanto para os companheiros. Quem deseja fazer política apenas pelo ângulo da oposição e da contestação - atitude que certamente horrorizaria Gramsci - jamais deveria se esforçar para chegar ao governo.

Lula hoje é Presidente da República. Não governa só para os pobres e oprimidos, mas para todos os brasileiros. E governar é agir mais “positivamente” que “negativamente”, ainda que não devamos absolutizar isso nem menosprezar o fato de que um governo reformador existe para se contrapor ao que há de errado e injusto na vida.

IHU On-Line - Os partidos de esquerda acabaram se transformando na nova elite brasileira?
Marco Aurélio Nogueira -
Os partidos de esquerda que se tornaram governo certamente passaram a integrar a elite política da sociedade. Quem governa sempre se converte em elite. Mas ser elite política não significa se tornar elite econômica. Significa somente desempenhar um papel de direção, assumir uma condição de responsabilidade pela condução da sociedade. Pode até mesmo existir uma elite com pouco poder, ou com menos poder real do que o que emana das elites econômicas, como me parece acontecer hoje, no Brasil. Nossa “classe política” - incluindo aí os que estão no governo - pode pouco perante os mercados e os poderosos da economia. Pode pouco, mas sempre pode alguma coisa, e precisa saber aproveitar isso da melhor maneira possível. Afinal, este “poder alguma coisa” é muito maior do que o poder de qualquer parte isolada da sociedade, e dispõe de recursos imponentes de ação, persuasão e execução.

HU On-Line - Que aspectos do ideário político de Gramsci podem ajudar a esquerda
brasileira a realizar uma autocrítica?
O que o PT poderia aprender com esse autor?
Marco Aurélio Nogueira - Creio que a esquerda contemporânea, e a brasileira em particular, tem muito a ganhar com Gramsci. Não somente com Gramsci, mas com todos os pensadores e
teóricos que fizeram da vida real algo mais importante do que princípios e doutrinas. Princípios são evidentemente importantes, mas eles existem para fornecer parâmetros de pensamento e de opção, não para definir agendas ou pautas de atuação, e muito menos para justificar conservadorismo, recusa ou medo de mudar de posição. O doutrinarismo principista converte a esquerda em caricatura de si mesma. Os fatos duros da vida, o capitalismo globalizado dos dias atuais, as novas dinâmicas da modernização reflexiva, estão a exigir novas idéias e a adoção de novas linguagens políticas.

A esquerda precisa, por exemplo, saber o que fazer com os indivíduos, que se projetaram de modo inquestionável, nas últimas décadas, como sujeitos políticos, como protagonistas que não seguem passivamente ordens de quem quer que seja. Não são mais as classes que modelam os indivíduos, por mais que as classes continuem importantes como fatos estruturais. E os indivíduos, que hoje estão “soltos” das classes e das instituições, não são todos necessariamente “individualistas”, predadores e egoístas. Podem ser socialmente solidários e democraticamente ativos, sobretudo porque são reflexivos, agem e reagem mediante plataformas ampliadas de informação e conhecimento. E também porque sabem (ou podem vir a saber) que a “boa vida” depende de uma organização superior da vida coletiva.

A esquerda precisa também resolver, de uma vez por todas, sua questão com a democracia. Não pode deixar dúvidas quanto a seu compromisso democrático, até mesmo porque a vida real se democratizou a tal ponto que serão dela expelidos todos os que se posicionarem de outro modo. A esquerda tem diante de si uma sociedade complexa, muito fragmentada, mas também muito articulada, repleta de nichos sociais, grupos de interesse e famílias culturais. Esta não é uma sociedade que se unifique com facilidade, nem muito menos que possa ser administrada como se fosse um monólito, ou um conjunto de monólitos antagônicos. Ela não pode ser governada a partir de posições ou atitudes que busquem dividi-la ainda mais, jogar uma metade contra a outra, os pobres contra os ricos ou os “incluídos” contra os “excluídos”, por exemplo, como se vê em alguns momentos. Com base em contraposições deste tipo, anda-se para trás.

Acho que isto vale para os partidos (portanto, para o PT) e para todos nós. Temos de ser mais democráticos e mais dialógicos. Só assim, aliás, poderemos ser mais radicais e combativos no quadro atual. Daria até para inverter uma famosa idéia de Che Guevara: temos de ser “ternos” para podermos ser “duros”. Fazer valer a força da democracia e da mobilização política contra todas as formas de desigualdade e injustiça é uma perspectiva que exige não só o pleno reconhecimento das múltiplas identidades com que lidamos hoje, como também depende da compreensão de que não há nenhuma situação que contenha somente elementos negativos, deletérios, depressivos.

IHU On-Line - Para Gramsci, a formação dos sujeitos políticos depende das instituições e das histórias nacionais.  A partir do contexto brasileiro e tomando em consideração essa idéia grasmciana, como o senhor definiria o sujeito político brasileiro?
Marco Aurélio Nogueira -
São as massas, as multidões, os indivíduos, com suas capacidades institucionais, suas idéias e sua maior ou menor disposição de agir de modo combinado e compartilhado. Não consigo visualizar nenhum sujeito político - e especialmente um sujeito político dedicado à transformação social - que não nasça disso. Não há nenhum “povo unido” pronto para agir.

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