Edição 231 | 13 Agosto 2007

“A educação é elemento necessário, mas não suficiente, na disputa pelo poder”

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IHU Online

“As condições objetivas e subjetivas que dispomos no momento brasileiro atual não são favoráveis à reestruturação da escola e nem à transformação social.” A opinião é do filósofo Marcos Francisco Martins, expressada na entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail. Ele ressalta que, para estruturar a escola gramsciana, é necessário transformar a sociedade e acrescenta que “ainda há muito o que se fazer na escola nacional para transformá-la efetivamente em um instrumento que possibilite às classes subalternas deixar as condições de subalternidade a que estão submetidas”.

Marcos Francisco Martins é graduado em Filosofia, mestre e doutor em Filosofia e História da Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp, com a tese O conhecimento em Marx e Gramsci: ruptura ou continuidade? Reflexões sobre o valor pedagógico e ético-político do conhecimento. Martins é Coordenador do Programa de Mestrado em Educação do Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo).

IHU On-Line - Em que consiste a reelaboração da teoria marxista do Estado, proposta por Gramsci? Como suas reflexões ajudaram a elaborar um novo conceito de socialismo?
Marcos Francisco Martins -
A teoria de Estado gramsciana consiste em uma atualização da teoria marxista, e não sua negação ou seu desvirtuamento idealista. Na verdade, ela consiste numa adequação à nova realidade vivida no final do século XIX e início do século XX nas “sociedades ocidentais” - as do capitalismo mais desenvolvido -, mas sem abandonar os princípios elementares do paradigma teórico-metodológico marxista: o materialismo, a dialética e o historicismo. Dizer isso significa considerar que Gramsci entende as relações materiais de produção como determinantes em última instância das relações sociais. Contudo, essa determinação não é direta, como chega a aparecer em A ideologia alemã , por exemplo, mas dialética, na exata medida expressa em uma das missivas que Engels  endereça a Konrad Schmidt, em 1890. Nela, Engels evidencia que o processo que se estabelece entre os fatos econômicos, de um lado, e as noções ideológicas, as idéias políticas e jurídicas, as concepções religiosas e as ações desencadeadas a partir delas, de outro, caracteriza-se pela inter-atuação que determina o curso da história. De outra forma, é possível dizer que a relação existente entre a base material e a superestrutura jurídico-política e ideológica não é a de um simples reflexo do elemento econômico sobre o social, moral, político, religioso, psicológico, cultural, estético e ético, mas a de uma síntese com múltiplas determinações. É com essa concepção de mundo que Gramsci constrói seu conceito de “Estado ampliado”, seguindo a trilha deixada por Marx no âmbito da teoria social.

Transformações econômico-sociais

Ao analisar as formações econômico-sociais de tipo ocidental, surgidas a partir da segunda metade do século XX, Gramsci observou que elas ganharam outros contornos, muito mais complexos que os das “orientais” (aqui Gramsci tinha em mente principalmente a Rússia Czarista). Eles são resultantes do dinâmico entrelaçamento de duas esferas societárias de poder, a sociedade civil e a sociedade política. Pela nova acepção que conferiu ao termo “sociedade civil” - diferente dos contratualistas, de Hegel e de Marx -, esta era, para Gramsci, o conjunto de aparelhos, estruturas sociais, que buscam dar direção intelectual e moral à sociedade, o que determina a hegemonia cultural e política de uma das classes sobre o conjunto da sociedade; e a sociedade política como uma extensão da sedimentação ideológica promovida pela sociedade civil, que se expressa através dos aparelhos e atividades coercitivas do Estado, visando a adequar as massas à ideologia e à economia dominantes.

Então, segundo Gramsci, para se reproduzir como sistema de vida hegemônico, o capitalismo procura conformar um “bloco histórico”, que garante a hegemonia da classe dominante economicamente e dirigente sob o ponto de vista ético-político e ideológico. E faz isso utilizando tanto dos recursos e dos aparelhos de “convencimento” da sociedade civil quanto dos de coerção da sociedade política, isto é, do Estado, segundo a ampliada noção que lhe tem Gramsci: “Estado = sociedade civil + sociedade política”. Ou seja, na determinação dos rumos da história de uma determinação formação econômica e social de tipo ocidental, estão presentes tanto as forças materiais – estrutura - quanto as “ideologias” – superestrutura -, rejeitando-se qualquer visão mecanicista da relação entre esses elementos.

O Estado não perde seu caráter classista; pelo contrário, age para sedimentar a sociedade de classe. Mas a manutenção dessa situação se dá de uma forma mais complexa do que pela simples coerção. Assim entendido, o Estado torna-se apto a colocar em funcionamento uma série de iniciativas - institucionalizadas ou não -, capazes de reproduzir as relações sociais capitalistas, moldando as classes subalternas como uma massa de indivíduos identificados economicamente e também pela submissão ético-política, ideológica e cultural que vivenciam. Obviamente que essa compreensão do processo de produção e reprodução da vida social nas “sociedades ocidentais” só poderia resultar em uma noção de transformação radical da vida societária diferente daquela que orientou os processos de luta política durante o século XIX. Se a “guerra de movimento”, ou o assalto direto ao poder centralizado no Estado, era o mote dos revolucionários socialistas, neste período vivenciado por Marx, a “guerra de posição” deve ser a estratégia de ação daqueles que pretendem superar a vida capitalista que se desenvolveu a partir do século XX. Entenda-se por “guerra de posição” a ocupação de todos os espaços sociais - institucionalizados ou não - para disputar a hegemonia com a classe dominante economicamente e dirigente ética e politicamente. Tal atitude visa, segundo Gramsci, a fazer de cada um desses espaços uma trincheira das classes subalternas na luta contra-hegemônica, com o objetivo de alterar a correlação de forças e, assim, estrategicamente ir construindo outra ordem socioeconômica e ético-política. Em outras palavras, para Gramsci é necessário empreender iniciativas que contestem e superem as estruturas e superestruturas que consolidam o status quo típico das sociedades - de classe - capitalista. Somente dessa forma é que, para Gramsci, se consegue promover uma verdadeira “reforma moral e intelectual”, já que o poder não se encontra mais centralizado em uma instituição como, por exemplo, o Estado e seus aparelhos coercitivos, mas disperso em vários ambientes e processos sociais. E foi o próprio fracasso da revolução na Itália um dos elementos que ensinou isso a Gramsci.


Reforma moral e intelectual

A propósito, não se deve confundir a “reforma moral e intelectual” com qualquer estratégia idealista de intervenção social, como a dos socialistas utópicos no passado e como hoje fazem muitos dos que equivocadamente se identificam como pertencentes ao “Terceiro Setor”, algo para além do Estado e do mercado. Isso porque, para o revolucionário italiano, a “reforma moral e intelectual” se manifesta concretamente como um reforma econômica, ou seja, como alteração da estrutura de classes de tipo capitalista, que exige não somente convencimento, mas também os conflitos próprios dos embates coercitivos, que, se hoje não são mais os únicos determinantes nas relações de poder, ainda desempenham papel relevante na determinação dos rumos da história.

Eis o que compreendo como sendo o caminho que o comunista da Sardenha aponta aos socialistas nas sociedades atuais, diferente da trajetória seguida pelos bolcheviques na Rússia. De sorte que o socialismo, nessa perspectiva gramsciana, não se confunde com um estágio quimérico a ser alcançado ou como uma necessária realidade que naturalmente há por vir, mas se identifica com o processo de construção de alternativas societárias cada menos desiguais e injustas, e mais humanas e humanizantes, porque superadora da sociedade de classes tipicamente capitalista. Penso que esses conceitos de Estado e de socialismo fizeram Gramsci contemporâneo do século XX. E eles ainda guardam muita atualidade teórico-científica, ético-política e ideológica, ainda não esgotada neste início do século XXI.

IHU On-Line - Qual é a influência do pensamento gramsciano para a renovação do marxismo ocidental durante o pós-guerra?
Marcos Francisco Martins -
Depende do que se entende por “marxismo ocidental”. Digo isso porque esse termo, “marxismo ocidental”, pode ser interpretado como sendo uma corrente do marxismo que na explicação da história desconsiderou a determinação dos elementos estruturais e sobrevalorizou os superestruturais, vistos como uma entidade autônoma em relação à base material. Muito embora essa seja uma interpretação corrente sobre o legado teórico-metodológico gramsciano, sobretudo corroborada por Bobbio em O conceito de sociedade civil, definitivamente entendo não ser esse o marxismo de Gramsci.

O conceito de “bloco histórico” corrobora essa minha leitura e de muitos estudiosos do pensamento e da práxis de Gramsci. Com ele, o revolucionário italiano procurou deixar claro que não entende que a superestrutura tenha completa autonomia em relação à estrutura, mas que há entre elas uma relação dialética. Isto é, Gramsci não criou uma teoria que concebe a história como determinada pelos aspectos subjetivos, intersubjetivos, culturais etc., mas como resultante da inter-atuação das forças materiais e ideológicas.

Tal compreensão fez de Gramsci um autor que realmente renovou o marxismo de tipo dogmático e mecanicista, como era o da II Internacional. E o fez seguindo ortodoxamente o mais elementar do método marxiano, que é a “análise concreta da situação concreta”, que no caso de Gramsci era a das formações econômicas e sociais ocidentais. Isso tornou seu marxismo deveras diferente do de Bukhárin - para ficar com um exemplo -, mas sem abandonar os princípios marxianos, que foram lidos mecânica e dogmaticamente por inúmeros representantes do “marxismo oficial”.

Além disso, a distinção “ocidental” e “oriental” nas reflexões de Gramsci indicam caminhos diferentes seguidos pelos comunistas e socialistas nas sociedades liberais-democráticas, do tipo americano e europeu à época de Gramsci, e nas formações econômicas e sociais similares àquela que se tinha na Rússia pré-revolução. Neste sentido, sim, podemos dizer que Gramsci funda um marxismo de tipo ocidental, pois ele desenvolveu o marxismo com um guia da ação revolucionária a ser desenvolvida em sociedades de tipo ocidental.

A propósito, ainda sobre a questão do marxismo ocidental, não posso deixar de dizer que recentemente li uma entrevista de Domenico Losurdo  tratando desse tema. Nela, esse importante intérprete do legado gramsciano fazia uma dura crítica à distinção entre marxismo ocidental e marxismo oriental atribuindo isso, em certa medida, à mentalidade ocidental que se entende como superiora à oriental.

IHU On-Line - Qual era a concepção pedagógica de Gramsci? Em que ela consiste? No Brasil, podemos destacar algum educador que tinha como base as idéias gramsciana?
Marcos Francisco Martins -
É difícil responder a essa pergunta rapidamente, em poucas palavras. Antes de destacar o princípio educativo gramsciano, que é o trabalho, há que se considerar que em Gramsci a educação é política. Isso é de diferentes formas reiterado por Gramsci, porque ele a concebe como um processo integrado às relações dialéticas que se estabelecem entre estrutura e superestrutura. Vista em um sentido amplo pelo revolucionário italiano, a educação se torna elemento importantíssimo na disputa pelo poder, sobretudo em se tratando das formações econômicas e sociais “ocidentais”. Isso porque nelas o Estado, para produzir e reproduzir as relações societárias com os aparelhos da sociedade civil e da sociedade política, procura construir um consenso em relação à filosofia – visão de mundo – do grupo dominante sob o ponto de vista econômico e dirigente ético-política e ideologicamente.

Obviamente que, nesse jogo de disputa pelo poder, a hegemonia de um grupo social sobre os demais, no caso das “sociedades ocidentais”, da burguesia, exige que se desenvolva todo um processo educativo, para que a visão de mundo da totalidade social seja compatível com os interesses e necessidades do grupo dominante e das forças produtivas aí desenvolvidas. O grupo hegemônico necessita tornar senso comum a sua visão de mundo para que o modo de vida seja reproduzido de acordo com a sua ideologia. Ou seja, a educação é também elemento necessário, mas não suficiente, na disputa pelo poder, mormente nas sociedades mais complexas da democracia-liberal.

Contudo, o processo de superação dessas relações de poder, em busca de se constituir outras relações sociais, também exige uma educação que eleve a consciência das classes subalternas a um patamar em que ela possa inicialmente se reconhecer como classe e, depois, lutar pelos seus próprios interesses, dois momentos em que se faz necessária a presença de “intelectuais” que lhe sejam organicamente vinculados. Esse processo de luta em favor da transformação social, que cobra ações contra-hegemônicas, é também educativo, pois que exige o aprendizado de uma nova forma de ver, de entender a realidade e de agir nela.

Por que a Educação é política?  

De modo que para Gramsci não só a educação é política, pois ela se faz presente na disputa que se dá entre os dominantes e dominados, mas também a política nas “sociedades ocidentais” é eminentemente educativa. Isso porque no jogo de forças entre o grupo hegemônico e os que lhe são subalternos, os primeiros tentam impor sua filosofia como um senso comum aos demais, e esses, se quiserem e tiverem as condições para tanto, deverão também forjar a sua própria filosofia e tentar disseminá-la no meio social para se libertarem da condição de subserviência e exploração a que são submetidos. Melhor dizendo, Gramsci não entende a educação senão como um espaço da disputa política definidora dos rumos históricos: se ela é elemento de cimentação da ideologia dominante, deve ser também utilizada pelos subalternos como um instrumento estratégico que pode auxiliar na tarefa de superação do capitalismo.

Essa visão politizada da educação – ao mesmo tempo educativa da política – funda-se em um princípio educativo: o trabalho, conforme bem observou Manacorda  em seu clássico O princípio educativo em Gramsci.

Toda essa concepção educativa traduzida em uma proposta pedagógica resulta na “escola unitária” gramsciana. Tal proposta parte do pressuposto que todos os homens – e não somente alguns – devem ter a possibilidade de se desenvolver unilateralmente, integralmente. E se a sociedade tem no trabalho o seu elemento determinante mais central, todos devem estar aptos a participar dele e dos demais processos sociais dele resultantes, o que deve ser feito desenvolvendo os conhecimentos e as habilidades relacionadas ao saber e ao fazer, como dissemos em um texto de 2000 – “Ensino técnico e globalização: cidadania ou submissão?” .

Obviamente que uma proposta pedagógica como essa aplicada à sociedade de classes, marcadas pela divisão social do trabalho, tem um alto potencial questionador da dualidade escolar que lhe é característica, da escola como aparelho ideológico de Estado e, portanto, reprodutora das relações de poder. De fato, a “escola unitária” gramsciana pretende “desinteressadamente” desenvolver os homens de forma a que possam ser sujeitos de seu próprio destino histórico como indivíduo e como coletividade.

Em se tratando da realidade brasileira, uma das mais destacadas figuras que expressa essa noção educativa de Gramsci é Dermeval Saviani . Além de ter sido um dos que introduziram Gramsci no Brasil, ele elaborou uma proposta pedagógica marcadamente gramsciana, qual seja a “pedagogia histórico-crítica”.

IHU On-Line - Por que Gramsci dizia que era necessário educar as classes instrumentais e subordinadas como conjunto, ao invés de como indivíduos singulares?
Marcos Francisco Martins -
Essa sua pergunta faz referência a uma das passagens, a meu ver, mais ricas dos Cadernos do cárcere, aquela em que Gramsci apresenta o conceito de “cartasis”. Digo-lhe isso porque nela Gramsci conseguiu sintetizar sua concepção de mundo num conceito comprometido ético-politica e ideologicamente com as classes subalternas.

Para o revolucionário da Sardenha, o processo de elevação das classes subalternas à classe hegemônica não se dá através de uma revolução passiva, segundo a qual o povo não participa de sua formulação, e sim é dirigido durante todo o processo revolucionário e excluído dos benefícios da vitória. Foi isso, aliás, o que aconteceu com os camponeses italianos do sul no Risorgimento  e em outros momentos históricos em que a burguesia ou ascendeu ao poder ou consolidou-se nele através de uma renovação sem grandes rupturas, feita pelo “alto” e “excluindo” os de baixo, isto é, modificando alguns aspectos das relações sociais, mas não o seu fundamento de classe. Ao contrário, a libertação dos subalternos na acepção gramsciana exige uma reforma moral e intelectual que seja capaz de efetivamente promover nas classes subalternas uma “catarsis”, isto é, possibilitar-lhes a passagem do momento puramente egoísta ao momento ético-político. Isso porque elas só conseguirão constituírem-se como um bloco social no momento em que unificarem os grupos subordinados na luta contra-hegemônica, o que só é possível abandonando as suas posições corporativas e adquirindo cada vez mais consciência de classe, bem como desenvolvendo ações guiadas por essa consciência renovada e elevada. Somente assim as classes subalternas e seus intelectuais orgânicos conseguirão ter mais e melhores condições de obter sucesso nas disputas em favor de seus interesses de classe e, desta forma, alterar a correlação de forças em seu favor, ou melhor, em prol da transformação das relações sociais capitalistas.

É neste momento de elevação de consciência e de luta ético-política contra a hegemonia vigente que as classes subalternas superam a sua condição de “classe em si” para tornarem-se “classe para si”, educadas como conjunto, que lutam em favor de si orientadas por uma visão de mundo que elas mesmas e seus intelectuais orgânicos forjaram. Desse modo, as classes instrumentais e subordinadas estarão caminhando para ter um papel de direção na sociedade, como conjunto e não como indivíduos singulares.


IHU On-Line - Por que, no pensamento gramsciano, o sujeito e o objeto do conhecimento são pensados como uma coisa só?
Marcos Francisco Martins -
Esse é um debate do qual, apesar de longo, gosto muito. Aliás, tratei especificamente dele em meu doutoramento . Muito embora alguns renomados intérpretes de Gramsci não concordem - como é o caso de Carlos Nelson Coutinho em seu livro denominado de Gramsci -, defendo a tese de que das formulações do revolucionário sardenho é possível inferir que ele não é um idealista sob o ponto vista ontológico e epistemológico. Desse modo, Gramsci pode ser considerado, como ele próprio se afirma, como um marxista ortodoxo.

O que pode suscitar dúvidas em relação à essa caracterização que tenho da ontologia e da epistemologia de Gramsci é que para ele o conceito de matéria não faz sentido se apresentado em si mesmo, isolado do contexto histórico-social. Em si mesma a matéria não tem significado algum, porque quem lhe confere essa qualidade é o homem. De modo que se a realidade e seu conceito podem ser distinguidos logicamente, historicamente eles se nos apresentam como realidade inseparável, uma realidade que ganha sentido objetivo sendo social e historicamente objetiva.

Logo, o conceito de matéria só passa a ter sentido epistemológico e axiológico se articulado ao homem e à sua história, que é produção “socialmente organizada”, e não algo preexistente, abstrato, divino. Isso faz com que Gramsci admita a existência da realidade exterior, mas somente como uma realidade que ganha sentido objetivo sendo social e historicamente objetiva, porque inserida no âmbito da práxis humana.

Obviamente que a partir dessa noção ontológica só se pode epistemologicamente inferir que sujeito e objeto sejam elementos integrantes de uma mesma realidade, faces de uma mesma moeda. Se podem ser formalmente distinguidos, concretamente compõem uma única realidade, que é produção histórica humana.

Tal noção tem profundas implicações científicas e político-educativas. Cientificamente, é possível inferir desses pressupostos que a totalidade torna-se um conceito chave na epistemologia gramsciana, porque indica essa unidade entre sujeito e objeto do conhecimento. Sob o ponto de vista educativo-político, pode-se dizer que essa visão orgânica de sujeito e objeto resulta em uma proposta pedagógico-política profundamente democrática, pois concebe o processo educativo-político entre educador-educando e governante-governado, numa perspectiva horizontal, não autoritária.

IHU On-Line - Para Gramsci, qual era o conceito de cidadania? Qual o cidadão ideal para sociedade?
Marcos Francisco Martins -
Interessante eu responder essa pergunta, porque foi justamente ela um dos objetivos perseguidos em meu mestrado. Nele, fiz uma digressão sobre o conceito de cidadania, já que eles são muitos, variados e até contraditórios entre si. Fui a Aristóteles identificar o conceito de cidadania grego, passei pelos contratualistas para chegar na formulação gramsciana, que considera o cidadão como inicialmente um sujeito que participa da realidade da sociedade de classe em que vive, primeiro pressuposto do conceito de cidadania que formulei inspirado nas formulações gamscianas.

Contudo, a participação do cidadão não se dá deslocada da situação real, das condições objetivas e subjetivas de uma determinada formação econômica e social. Desse modo, qualquer participação cidadã na sociedade de classe deve, sob o ponto de vista gramsciano, almejar a construção da igualdade entre os homens, segundo pressuposto que se constitui em um duro ataque à noção de desigualdade natural cultivada pelos liberais.

Todavia, a igualdade almejada só se consolida efetivamente se e somente se os cidadãos tiverem posse dos bens que lhe garante a vida com dignidade, bens materiais, simbólicos e sociais. E eles são garantidos mediante a conquista de direitos, que são fruto da luta, da ação cidadã, bastante obstaculizada na sociedade capitalista.

A partir desses pressupostos, formulei um conceito de cidadania a partir do referencial gramsciano que pode assim ser exposto: cidadania é a participação dos indivíduos em determinada comunidade, em busca da igualdade em todos os campos da realidade humana, mediante a luta pela conquista dos bens materiais, simbólicos e sociais, garantidos pela posse e ampliação de direitos, ação que se contrapõe à hegemonia das classes proprietárias. Então, na sociedade atual, o cidadão é aquele que se dispõe a abandonar a sua posição de indivíduos para se projetar na luta política com vistas a transformar as estruturas e superestruturas que produzem e reproduzem a sociedade de classes.

IHU On-Line - Como Gramsci avaliaria o sistema de educacional do Brasil?
Marcos Francisco Martins -
A primeira consideração é que a escola brasileira, como bem caracteriza Saviani, carece ainda de um sistema de ensino. O que temos como produto histórico ainda não se pode ser chamado de sistema, principalmente após as duas últimas décadas de reforma, que contribuíram sobremaneira para o desmantelamento do sistema público e sua privatização, seguindo os cânones do neoliberalismo se fez e se faz presente.

Política e juridicamente, há que se considerar alguns esforços do Governo Lula em retomar, mas não superar, o estado de coisas na educação destruído pelo governo tucano. Para ficar em dois exemplos, destaquemos: primeiro a supressão do Decreto 2008/97, que separou o ensino técnico do Ensino Médio e escancarou a dualidade escolar, em segundo lugar o PAC da Educação, que, embora limitado, promete injetar mais recursos no ensino fundamental e médio, além de ampliar as vagas no ensino superior público. Contudo, essas iniciativas são muito tímidas se comparadas com a exigência do momento histórico. Seria preciso menos discurso, mais recurso e audácia, e não se deixar limitar pelas “razões de governo”, que, sistematicamentem, tem comprometido a lisura da prática administrativa e do avanço no âmbito da educação.

Socioculturalmente, é preciso dizer que há ainda muito o que se fazer na escola nacional para transformá-la efetivamente em um instrumento que possibilite às classes subalternas deixar as condições de subalternidade a que estão submetidas. Mas desprivatizar a educação, investir na formação docente, gerenciar melhor os recursos já destinados à educação e ampliá-los seria um bom começo. Frente ao pessimismo da razão, prefiro atuar com o otimismo da vontade.

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