Edição 230 | 06 Agosto 2007

Teologia hoje: limites e possibilidades

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

O teólogo Rudolf von Sinner, de origem suíça, é pró-reitor de pós-graduação e Pesquisa e professor de Teologia Sistemática, Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso nas Faculdades EST em São Leopoldo, bem como pastor da IECLB. Após um semestre sabático de pequisa no Centro de Investigação Teológica (CTI) em Princeton (EUA), está completando um livro sobre as igrejas e a democracia no Brasil, explorando suas contribuições para a cidadania na visão de uma teologia pública.

Von Sinner é autor do Cadernos Teologia Pública nº 9, intitulado Diálogo inter-religioso: dos “cristãos anônimos” às teologias das religiões. A publicação pode ser baixada para download no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu.

IHU On-Line - Tomando por horizonte seus recentes estudos sobre Teologia da Libertação e Teologia Pública, quais são as transformações que hoje marcam o contexto sociocultural, eclesial e acadêmico de fazer teológico? Que desafios estas transformações apresentam à Teologia?
Rudolf von Sinner -
Temos a situação de uma competição acirrada tanto no mercado econômico quanto no mercado religioso, nacional e internacional. Isto gera um pluralismo religioso cada vez maior, o que em si não seria problemático. A princípio, é um sinal positivo da liberdade religiosa e do fim de uma hegemonia quase que absoluta de uma igreja específica. Contudo, há muito preconceito, difamação e até violência física nesta diversidade cada vez maior de igrejas. Isto é um triste testemunho de desobediência à vontade de Cristo que seu corpo seja unido, ainda que com diversos membros. Além disto, aumenta o clima já generalizado de desconfiança entre as pessoas e de desprestígio das igrejas como parceiras na construção da cidadania. As igrejas históricas (a católica romana e as protestantes) tendem, por um lado, para a introspecção e a volta ao tradicionalismo e confessionalismo, e, por outro lado, sentem-se tentadas a seguirem o caminho das igrejas que mais têm sucesso no mercado religioso, considerando que pela adaptação poderiam aumentar sua fatia do bolo. A consciência da responsabilidade dos cristãos pelas preocupações da sociedade como um todo, como o combate à pobreza, a diminuição da imensa disparidade em renda e patrimônio, o acesso efetivo de todas e todos aos direitos da cidadania e a consciência de seus deveres na co-responsabilidade com o poder público têm pouca prioridade no discurso ou na prática da maior parte das igrejas – a despeito de uma continuidade impressionante de posicionamentos da CNBB e algumas outras igrejas nesta linha da defesa da cidadania. A Teologia precisa refletir esta nova situação e desenvolver elementos que possam fomentar uma participação mais significativa das igrejas no espaço público que não seja de interesse próprio delas, mas vise ao bem comum. No âmbito acadêmico, a Teologia ainda está conquistando seu lugar, encontrando tanto acolhida e interesse quanto resistência por parte de outras áreas de conhecimento. A herança laica deixou marcas de suspeita em relação à religião, especialmente à teologia que não apenas a estuda, mas toma posição. Por outro lado, o estudo acadêmico da Teologia vem possibilitando um discurso mais neutral e participativo sobre si mesma e os assuntos mencionados. Nos cursos de integralização do bacharelado em Teologia, por exemplo, temos a participação inédita de padres, religiosas, pastores e pastoras, que são assim forçados/as a dialogarem e conviverem, o que pode abrir as mentes para uma reflexão mais criativa e uma maior cooperação.

IHU On-Line -  Como você avalia a situação atual da Teologia da Libertação latino-americana?
Rudolf von Sinner -
A Teologia da Libertação foi e continua sendo um marco histórico, não apenas no continente, mas mundialmente. É absurdo dizer que ela teria morrido. A esta vertente pertencem os mais criativos e conceituados teólogos da contemporaneidade. Em termos de método e conteúdo, não há como voltar atrás da insistência na conexão entre práxis e Teologia (como segundo momento), nem da opção preferencial pelos pobres. Evidentemente, a situação mudou de tal forma que não há claros centros de opressão hoje. Portanto, não faz sentido continuar fazendo a mesma teologia de resistência dos anos 1970 e 80, uma vez que o dualismo entre opressores e oprimidos não existe mais daquela forma. Diferente do período do regime militar, a cidadania é, a princípio, garantida pela lei e pelo processo político democrático, e temos uma sociedade civil atuante e diversificada. As razões da pobreza são múltiplas e difusas, e as formas de opressão mais diversas. A Teologia já se deu conta de vítimas de opressão inicialmente esquecidas: mulheres, negros, indígenas, homossexuais, entre outras. Estes vêm se organizando e se afirmando como sujeitos de uma teologia na qual tenham lugar. Vem havendo uma grande riqueza de reflexão teológica na linha da libertação, não por último nos dois Fóruns Mundiais de Teologia e Libertação promovidos em 2005 e 2007. Penso, contudo, que ainda carecemos de conceitos agregadores que possam mostrar novos caminhos.

IHU On-Line – Atualmente, você está se dedicando a debates e estudos de Teologia Pública. Como você compreende a proposta de uma teologia pública?
Rudolf von Sinner -
É precisamente esta teologia que me parece oferecer um conceito agregador. Uma Teologia da Libertação precisa constantemente explicar de que e para que pretende libertar. A Teologia Pública remete à contribuição da teologia para assuntos de interesse público, e procura dar esta contribuição de forma compreensível para o público mais amplo, além das igrejas. Procura ser parceira no espaço público, em conjunto com outras organizações da sociedade civil e em parceria crítica e construtiva com o Estado. Portanto, entendo a Teologia Pública como um conceito mais amplo, abrangente, podendo reagir com maior facilidade a uma variedade de desafios. Neste momento, penso que no Brasil ela deveria ser especificada mais como uma teologia da cidadania, sendo este o desafio principal atual. Mas poderiam ser identificados outros, agora e futuramente. A busca da reformulação da Teologia no contexto da democracia, do pluralismo e da globalização, é algo que preocupa a Teologia no mundo inteiro, não por último na África do Sul, que tem uma história recente com muitas semelhanças ao Brasil. A Rede Internacional de Teologia Pública, criada em maio deste ano num encontro em Princeton (EUA), pretende articular tais reformulações num âmbito internacional. Estamos investindo especialmente no diálogo Sul-Sul, no caso entre Brasil e Argentina e a África do Sul. Convém dizer ainda que a Teologia Pública se entende não como nova área ou disciplina da Teologia, mas como dimensão e foco temático da teologia que engloba todas as áreas.

IHU On-Line - A realidade do sofrimento, das injustiças e situações de vulnerabilidade humana e da vida em geral sempre foi questão importante para o fazer teológico. Que lugar esta problemática encontra na Teologia atual?
Rudolf von Sinner -
Apesar da situação ter melhorado em muitos aspectos ao longo das últimas décadas, continua, de forma espantosa, a miséria de milhões de pessoas neste país e mundo afora. Não é possível desconsiderar este fato. Mas a tendência geral hoje é de tratar isto como, no máximo, um assunto entre outros, ficando na periferia do afazer teológico. Ainda que a Teologia da Libertação, que sempre insistiu na centralidade do fato da pobreza e da exclusão social para a Teologia, continue tendo uma considerável publicidade, nos seminários e faculdades, ela fica minoritária entre questões de tradição, carismatismo, estratégias de evangelização e gestão de igrejas. Uma Teologia Pública pode resgatar esta centralidade, inclusive a partir de uma variedade de pressupostos teológicos, podendo agregar forças.

IHU On-Line -  Considerando o pluralismo religioso, cultural e de valores vigentes no atual contexto histórico, quais são as principais contribuições da Teologia e das igrejas para uma boa convivência humana em sociedade?
Rudolf von Sinner -
As igrejas têm acesso à população que nenhuma outra instituição neste país tem. Em muitos outros países, especialmente da América Latina e da África, não é diferente. O ensino e a vivência de valores básicos da convivência é uma importantíssima contribuição à sociedade e as igrejas, junto com as escolas, são lugares primários para tal. Contribuem também, embora nem sempre conscientemente, de forma prática para a formação de consciência cidadã e da liderança, capacitando pessoas e dando-lhes o amparo de uma comunidade e fortalecendo sua fé. Se este enorme potencial estivesse sendo usado não somente para dentro de uma comunidade eclesial específica, mas tendo em vista o bem-estar de todas e todos, poderia fazer uma contribuição muito mais relevante. Uma teologia que se entende como pública pode contribuir para fortalecer a noção de que o próprio Cristo atuava desta forma e louvou tudo aquilo que “fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mateus 25.40). A CNBB e seus órgãos, a liderança e órgãos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), entidades ecumênicas como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), entre outras, procuram dar uma contribuição relevante neste linha.

IHU On-Line -  Em meio a múltiplas questões que se colocam nos âmbitos científico, político, econômico, ecológico e religioso, impõe-se o desafio de se buscar, na ética, orientações e parâmetros que auxiliem na construção de uma sociedade mais justa e comprometida como o cuidado da vida em seu todo.  Que contribuições a Teologia pode dar para isto?
Rudolf von Sinner -
Em faculdades e programas de pós-graduação em Teologia, existem, hoje, muitas pesquisas nesta área da cidadania e convivência, inclusive em instituições ligadas a igrejas onde estes temas não são comuns. A Teologia, especialmente quando se entende como pública – ainda que não se denomine assim -, serve como reflexão de ponte entre a fé na sua vivência e os desafios da sociedade. Entendo que a Teologia é sempre contextual, desenvolvida em interação com um contexto científico, social, econômico, político, religioso, ecológico específico, e também católica, no sentido de haurir suas referências do testemunho da Bíblia e da tradição de sua interpretação ao longo dos séculos e em todos os continentes. A justiça social é um tema central na Bíblia, desde a condenação do primeiro assassinato de Caim contra Abel (protegendo, inclusive, o infrator!) nos primeiros capítulos até a visão da Nova Jerusalém nos últimos capítulos. O cuidado com as pessoas e o meio ambiente é posto como mandato logo no início: “Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis 2:15). Este cuidado precisa ser ensaiado dentro e fora das igrejas, e ensinado nos cursos de Teologia. De fato, há, hoje, uma nova ênfase na questão do cuidado, especialmente nas áreas de aconselhamento pastoral, na diaconia e no ensino da ética. Em debate interdisciplinar, a teologia acadêmica pode dar uma contribuição mais qualificada para questões éticas em pauta, de justiça social, bioética, convivência inter-religiosa, cidadania, entre outras.

IHU On-Line - O que mais você gostaria de dizer sobre estes temas?
Rudolf von Sinner -
A proposta de uma Teologia Pública data dos anos 1970, quando foi cunhado o termo nos Estados Unidos. Desde os anos 1990, está tendo um reavivamento diante das mudanças drásticas no mundo globalizado e, ao mesmo tempo, fragmentado de hoje, bem como da perda de reconhecimento da relevância da teologia no espaço público. Países como a África do Sul e a Austrália estão descobrindo e explorando este conceito. Na América Latina, ainda há pouca reflexão sobre ele. O Instituto Humanitas da Unisinos – IHU - é a única instituição no Brasil, segundo meu conhecimento, que o utiliza de forma explícita. Mas, tendo o país e o continente grande experiência no desenvolvimento de conceitos teológicos relevantes para assuntos públicos, penso que a exploração deste conceito, em interação com outros países, poderia ser frutífera e oportuna.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição