Edição 230 | 06 Agosto 2007

“A mudança nos paradigmas da família reflete-se nos vínculos de parentalidade”

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IHU Online

“Na família contemporânea, ter pai e mãe não deixou de ser importante. O que mudou é a consciência de que esta não é a única maneira de constituir uma família. O que importa é que, nas mais diversas configurações familiares, possa existir alguém que assegure a existência de um vínculo afetivo que dê conta das necessidades básicas para um desenvolvimento saudável da criança. Na psicologia, chamamos isso de função paterna e função materna, as quais, necessariamente, não precisam ser exercidas por um homem e uma mulher, unidos legalmente pelo matrimônio, como antigamente se acreditava.”

Essas declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida pela psicóloga Cláudia Valle Sigaran à IHU On-Line, por e-mail. Sigaran é psicóloga e mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua, além disso, como terapeuta de casal e família e é coordenadora de ensino da Clínica de Psicoterapia Instituto de Mediação (CLIP), em Porto Alegre.

IHU On-Line - Como o pai tem sido reconstruído pela psicologia no século XXI?
Cláudia Sigaran -
Até alguns anos atrás, cerca de sete, oito anos, as pesquisas em psicologia ainda priorizavam o estudo e maior conhecimento da influência da função e do papel materno no desenvolvimento da criança. Hoje em dia, a participação paterna na vida afetiva e educacional dos filhos é cada vez maior, fato influenciado pela mudança dos papéis da mulher na sociedade (no trabalho, na família, na política etc.) e pelo advento do divórcio. Ocupando funções que antes eram ditas “masculinas”, a mulher abre espaço para a participação do homem na vida familiar, espaço antes considerado “feminino”. Desta forma, o pai está tendo mais oportunidades para aproximar-se do filho sem o “filtro” feminino e mais espaço para trazer para casa não somente o sustento financeiro, mas também o sustento afetivo e educativo. Cada vez mais, o pai não só auxilia, mas divide as tarefas domésticas e participa do cuidado da prole. Esse crescente envolvimento tem levado o homem a reivindicar uma atuação mais efetiva na vida do filho. Isso mesmo quando os pais deixam de viver sob o mesmo teto. Se observarmos as reuniões de pais nas escolas, veremos um número quase que similar de pais e mães presentes, ambos interessados em participar da vida do filho. Sendo assim, a psicologia passou a ampliar seu olhar sobre a família e sobre o desenvolvimento da criança, trazendo o pai para seu campo de estudo.

IHU On-Line - De que maneira a psicologia tem contribuído para esclarecer as mudanças do conceito de pai no mundo moderno?
Cláudia Sigaran -
À medida em que busca compreender as mudanças ocorridas na vida familiar  nos últimos tempos, a psicologia tem iluminado, entre outras coisas, a necessidade da presença parental na vida das crianças, como alguém que deve trazer o limite, representar a norma, que necessita exercer seu dever e seu direito de cuidar e oferecer como modelo para o filho. 
Com o surgimento das novas configurações familiares, como as famílias recasadas, monoparentais, famílias com união homoafetivas, famílias com filhos através da inseminação artificial, ou com filhos conseguidos através da adoção, cada vez mais tem estado em pauta a discussão sobre a diferença entre ser o progenitor biológico e ou aquele que exerce a “função parental”.

Diante dessa amplitude de possibilidades, já não é mais possível explicar a figura do pai como sendo aquele que “cedeu o espertamozóide”, ou seja, é importante ir além do campo genético. Uma vez ampliado o foco, percebe-se que é o vínculo afetivo que une, realmente, duas pessoas, que faz alguém sentir-se filho e outro alguém sentir-se pai. O envolvimento emocional é maior do que um envolvimento genético. É o elemento emocional, o sentimento de amor que gera, genuinamente, uma responsabilidade e comprometimento mútuo entre pai e filho. No entanto, apesar de todas estas transformações, muitos homens ainda se comportam como meros “fornecedores de esperma”.

IHU On-Line - Idade, sexo e gênero são algumas variáveis que constroem a “gramática” do parentesco como regra para a inserção na sociedade. A mudança dos termos paternidade ou maternidade para parentalidade demonstra que essas variáveis deixaram de ser o ponto fundamental para a ligação de parentesco?
Cláudia Sigaran -
Antes do termo “parentalidade”, utilizava-se o termo “paternidade” para referir-se ao vínculo entre pais/mães e filhos. Era ainda um termo baseado em uma sociedade tradicional e machista. Hoje, o termo parentalidade traz consigo a idéia do vínculo afetivo entre duas pessoas. A mudança nos paradigmas da família reflete-se nos vínculos de parentalidade, levando à crença de que a filiação é identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial.

IHU On-Line - A parentalidade não necessariamente exige um vínculo sangüíneo entre as pessoas. Isso quer dizer que a função paterna não precisa, exclusivamente, estar ligada à genitalidade? Existe a necessidade de alguém desempenhar uma “função paterna”?
Cláudia Sigaran -
Sim, a presença de alguém, na vida da criança, que exerça a função paterna, é fundamental para o desenvolvimento do senso de limites e normas na vida da criança. As adequadas frustrações impostas pela função paterna, pela colocação de limites e pelo reconhecimento das limitações e pela aceitação das diferenças promovem a necessária, embora dolorosa, passagem do princípio do “prazer-desprazer” para o da “realidade”. Da mesma forma, as frustrações promovem um estímulo às funções do ego da criança, especialmente a formação da capacidade para pensar. Um dos grandes problemas dos jovens da atualidade é justamente a falta de alguém que exerça essa função parental de forma mais efetiva em suas vidas. Por isso, observamos uma juventude com muita dificuldade de respeitar normas, regras, limites, de postergar seu prazer em detrimento do outro...

IHU On-Line - Com o conceito de parentalidade, ter pai e mãe deixou de ser fundamental para a construção da família moderna?
Cláudia Sigaran -
Na família contemporânea, ter pai e mãe não deixou de ser importante. O que mudou é a consciência de que esta não é a única maneira de constituir uma família. O que importa é que, nas mais diversas configurações familiares, possa existir alguém que assegure a existência de um vínculo afetivo que dê conta das necessidades básicas para um desenvolvimento saudável da criança. Na psicologia, chamamos isso de função paterna e materna, funções estas que, necessariamente, não precisam ser exercidas por um homem e uma mulher, unidos legalmente pelo matrimônio, como antigamente se acreditava. É fundamental para o desenvolvimento da criança que ela seja acolhida por pessoas que lhe assegurem proteção, garantam sua sobrevivência, educação, transmitam afeto, que se comprometam com ela.

IHU On-Line - As novas gerações não sentem falta de ter uma identificação biológica? Os indivíduos têm deixado de se definir socialmente em termos de parentesco?
Cláudia Sigaran -
A paternidade hoje não é caracterizada pelo simples fator biológico ou por força do judiciário, do legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes a partir de uma convivência afetiva. Mas isso não quer dizer que conhecer a herança biológica tenha deixado de ser importante. No entanto, já não é mais vista como o fator prioritário. A identificação do afeto passou a tem maior relevância. Sentir-se capaz de se fazer amar e ser amado através do olhar do cuidador, ser reconhecido por alguém – tudo isso ganhou maior importância. E em todos os âmbitos: familiar, judiciário, social.

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