Edição 228 | 16 Julho 2007

Perfil Popular - Bernadeti Martins

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Nascida em Guaíba e criada em Sombrio, Santa Catarina, Bernadeti Martins tem em sua família o maior incentivo para viver e lutar. Depois de uma vida de muitas mudanças de endereço e cinco gravidezes, Bernadeti e o marido Cláudio continuam buscando uma condição financeira mais estável. No momento, Bernadeti está ligada ao projeto da Economia Solidária, coordenado pelo programa Tecnologias Sociais do Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Na entrevista a seguir, ela conta sobre sua trajetória pessoal, sobre as dificuldades no trabalho e sobre seus sonhos. Uma das coisas que deixou bem clara é que ajudar o próximo é a sua vocação, e nesse aspecto se realizou na Economia Solidária. Confira a seguir:

Origens
Sou de origem espanhola misturada com índios guaranis, algo que me dá muito orgulho. Tenho 50 anos, nasci em Guaíba, mas passei a infância em Sombrio, Santa Catarina. É a terra que eu amo de paixão: aquela cidade é tudo para mim. Sinto muita saudade de lá, do Morro do Cipó. Sonho até hoje com aquele lugar, tem um significado especial para mim.
Morei com meus pais até os 23 anos. Desde os 16, eu trabalhava fora, em fábricas de calçado, e em Sombrio comecei minha carreira profissional, que é a de costureira de calçados. Eu “pulava” de fábrica em fábrica. Naquele tempo dava para fazer isso; hoje não dá mais. Nas férias, eu aproveitava para ir à praia, arranjava uns namoradinhos. Não dava certo, e eu voltava outra vez. Trabalhava um tempo e pedia demissão do emprego. Dali a 30 dias, eu voltava a trabalhar na mesma empresa de antes. A empresa aceitava porque eu era uma boa funcionária, e eu era readmitida.

Casamento e família
Conheci o Cláudio Rogério, meu marido, num Carnaval, no bolão, no Rio dos Sinos. Eu estava fantasiada de havaiana, e ele estava sem fantasia. Por isso, até hoje, ele me chama de “havaiana de meia tigela”. Depois de andar por tantos lugares, fui conhecer meu marido assim. Ele morava na mesma rua que eu; nos conhecíamos desde pequenos. Começamos a namorar, noivamos e casamos. Isso sempre sob o controle do pai e da mãe, “dando em cima” do nosso namoro. Eu já tinha 22 anos e ele era um pouco mais novo do que eu. Continuamos o namoro. Papai e mamãe “deixaram”. Depois de quatro anos de noivado, casamos. Um ano e pouco depois do casamento já quisemos ter filhos. Cinco anos depois, veio o segundo filho, e logo em seguida o terceiro. Eu estava amamentando um bebê e esperando outro. Depois tivemos mais outro filho. Tivemos 5 filhos. Eles são uma alegria, mas a situação financeira ficou difícil.

Recém-casados
Quando casamos, fomos morar com meus pais. Nosso noivado foi muito demorado, e meus pais achavam que estávamos juntos há tempo demais, e tinham medo que eu engravidasse. Naquele tempo, isso seria muito complicado. Antes de eu noivar, lembro do pai dizendo: “Essa guria não arranja namorado. O que será que está acontecendo?”. Eu tinha 23 anos, tinha vontade de sair, me divertir. Foi aí que escutei o pai falar que me levariam para um colégio de freiras. Uma semana depois eu arranjei um namorado, meu atual marido. A gente já se paquerava antes, porque eu já o conhecia, como disse, desde menina. Mas nunca imaginei que seria ele o meu marido. Temos o mesmo sobrenome: Martins.

Mudança para São Leopoldo
Viemos para São Leopoldo. Não há mais tantos empregos hoje como antes. Meu marido tinha dificuldades de arranjar trabalho, um pouco em função da idade. Vamos tocando a vida, com dificuldade, sempre procurando emprego. Às vezes, conseguíamos trabalho longe. Cheguei a trabalhar em Dois Irmãos por dois anos. Depois, trabalhei em Santa Maria do Herval, sempre em fábrica de calçados. É complicado ter que deixar a família para trabalhar. Depois desse tempo todo, perdi o emprego outra vez. A família ficou dividida. Dois filhos foram para Santa Maria do Herval comigo, e os outros ficaram. Na época em que trabalhei em Dois Irmãos, também foi difícil, porque tinha que acordar cedo e chegar tarde em casa. Mas fiz isso por dois anos. Essa foi a minha trajetória. Até que um dia os empregos nas fábricas de calçados acabaram totalmente. E, agora, fazer o quê? Então, comecei a fazer cursinhos de artesanato para ter outra renda. Foi assim que chegamos à economia solidária. Meu marido continuou trabalhando na recepção de um motel em São Leopoldo, onde está até hoje. Foi o único emprego que ele conseguiu. Isso já faz cinco anos, e o trabalho é à noite com folga de um dia por semana. Só sobram algumas horas para nos vermos, porque meu trabalho é de dia. Quando estou em casa, ele está dormindo, e quando ele levanta sobra pouco tempo para conversarmos. Eu também levanto cedo. Não é fácil para a gente, que é casado há 25 anos. Ficamos meio distantes um do outro em função dos horários. Nos dias de folga é que podemos comentar algo sobre os filhos, que já estão grandes. Alguns estão trabalhando, outros não conseguiram arranjar trabalho ainda.

Economia solidária
Participo dessa caminhada com um grupo de pessoas há dois anos, desde que perdi meu emprego. Para não ficar depressiva em casa, fazia crochê, muito mesmo. Foi quando surgiu a oportunidade de participar do projeto da Economia Solidária. Trabalhamos artesanato, alimentação, fazemos feiras, expomos em praças. Dentro dessa caminhada, sinto-me uma militante da economia solidária. Vesti a camiseta para ajudar a reunir o pessoal e para ter trabalho. Procuro espaço para as pessoas colocarem seu trabalho. Estou fazendo curso de desenvolvimento para a economia solidária. Pena que descobri isso tão tarde. Era algo que já “morava” em mim há mais de 30 anos.

Mudanças constantes
Como meu pai era militar, mudávamos muito de cidade. Quando ele era transferido, a família toda ia junto. Chegou o ponto de eu ter uma “sacolinha” arrumada para, quando o pai voltasse, estar pronta para mais uma mudança. Acredito que isso explica esse meu jeito meio “cigana”. Essas mudanças constantes na infância atrapalharam meus estudos. Não tive boas oportunidades nem alguém que me ajudasse nas tarefas. Minha mãe era analfabeta. Meu pai, com a vida militar, nunca estava em casa. Aprendi a ler sozinha. A vontade era tanta que dei um jeito. Eu não tinha bem seis anos. Um dia descobri que eu já conseguia entender alguma coisa. Fiquei tão feliz! Não cheguei a terminar o Ensino Fundamental. Meu sonho era ser psicóloga, ajudar as pessoas. Aliás, sempre quis ajudar os outros. Não ter completado os estudos é uma mágoa que tenho. Ainda hoje tenho vontade de estudar, mas é tudo muito diferente da minha época, e também é caro.

Infância
Lembro de ir na casa dos meus avós, em Santa Catarina. A minha paixão era ajudar eles a colher fumo, amarrar as folhas, ir para o bananal colher bananas, lavar batatas no açude. Gostava de atiçar as galinhas, queria ver o que tinha embaixo delas quando estavam chocando seus ovos. Adorava subir em árvore e um dia me escondi dentro de um depósito de bananas, na casa da vó. Foram me encontrar muito tempo depois, “barriguda” de tanto comer as frutas. Outra coisa que eu gostava muito era de levar o balaio com o café para os meus tios, que estavam no meio da roça, colhendo e cantando. Hoje, quando vejo um agricultor trabalhando, sinto muita saudade da minha infância. Nessa época, eu era filha única. Depois, vieram dois irmãos.

Aliás, sobre meus irmãos, tem algo estranho que eu fiz quando era pequena. Quando o Celito tinha apenas um ano, eu tentei afogá-lo numa valeta. Eu tinha uns 5 anos. Minha mãe pediu para cuidar do mano, e ela foi tomar banho. Ele estava com uma roupinha branca, e atirei-o dentro de uma vala. Fui na mãe correndo dizer que ele tinha caído numa vala. A mãe foi correndo acudir, enrolada numa toalha. Numa outra vez, a mãe pediu para preparar a mamadeira do mano, e eu coloquei sal no leite. Ele começou a vomitar. A mãe me perguntou até que eu contei o que tinha feito. Então, ela pegou pimenta e esfregou no meu rosto, na boca. Dali para frente, todas vezes que eu aprontava ela passava pimenta em mim. Hoje, quando meu irmão e eu conversamos sobre isso, damos muitas risadas. Era coisa de criança...

Significado da família
Se eu fosse uma árvore, a família seria a minha raiz. Se eu não tiver ela por perto, vou secar, morrer. Essas pessoas são a coisa mais importante que existem; penso nelas o tempo todo. São a minha segurança.

Alegrias e tristezas da vida
Alegrias da vida? O nascimento de cada bebê. Para mim, ficar grávida era um prazer; eu me sentia linda. Se um pudesse, teria ainda mais filhos. Mas agora não posso mais. Na última gravidez, perdi o bebê. Ele estava pronto para nascer. Tinha nove meses e seria nosso quinto filho. Pensei em adotar um bebê quando isso aconteceu. Eu tinha muito leite, e havia uma menina que foi abandonada no hospital quando aconteceu aquilo tudo comigo. Até hoje é algo que me faz sofrer, e, quando estou sozinha, essas coisas voltam na minha cabeça.
Outro fato muito triste foi a perda de um netinho. Minha filha mais velha engravidou, e perdeu o bebê de sete meses. O bebê não tinha a uretra. Foi feito um aborto com ordem judicial, já que o problema era gravíssimo.

Religião
Sou batizada na Igreja Católica, mas, depois de uma certa idade, escolhi ser evangélica. Mas posso dizer que sou mística. Acredito em tudo. Tenho curiosidade em conhecer as diferentes religiões. Mas penso que Deus é um só. Quando preciso dele, Ele é tão poderoso que está sempre por perto para me socorrer.

Política
Nunca dei bola para política, não me interessa. Mas agora, ao entrar na Economia Solidária, é que estou conhecendo mais sobre política e entendendo melhor tudo isso.

Planos para o futuro
Fazer uma cooperativa, na qual várias pessoas trabalhem juntas e se apóiem. Esse é um trabalho para mim e para o próximo. Penso, ainda, em ter uma creche junto dessa cooperativa, para que as crianças tenham algum lugar para ficar enquanto as mães trabalham. Sou muito preocupada com os jovens, com o futuro que terão. É triste ver um jovem se drogar e andar por aí, sem destino.

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