Edição 228 | 16 Julho 2007

Diálogos possíveis com Clarice Lispector

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Teresa Montero é doutora em Letras pela PUC-Rio e professora de Literatura Brasileira e dramaturgia na Universidade Estácio de Sá (UNESA). É autora de Eu sou uma pergunta. Uma biografia de Clarice Lispector (Rio de Janeiro: Rocco, 1999). Sua tese de doutorado é intitulada Yes, nós temos Clarice. A obra de Clarice Lispector teve sua primeira parte publicada com o título Closer to the wild heart. Essays on Clarice Lispector (Oxford: Legenda, 2002). É também organizadora das obras mais recentes de Clarice Lispector publicadas pela editora Rocco: Correspondências (2002), Outros escritos (2005) e Aprendendo a viver. Imagens (2005).

A pesquisadora aceitou o convite da IHU On-Line para produzir uma “entrevista virtual” com a escritora. As respostas de Clarice Lispector para esse texto-montagem foram extraídas das seguintes entrevistas e crônicas: Revista Crisis (nº 39 - Julho 1976); Clarice Lispector (O Papo, 8/4/1972 - Sergio Fonta); Clarice Lispector e a Maçã no escuro (Diário de Notícias, 30/7/61 – Rosa Cass); “Livro de cabeceira da mulher” (1967); Uma mulher chamada Clarice Lispector (Criaturas de papel. Edilberto Coutinho); “Adeus, vou-me embora!” (A descoberta do mundo. Crônicas); e “Humildade e técnica” (A legião estrangeira).

Como é o processo de começar um livro?
Clarice –
Eu sempre começo tudo como se fosse pelo meio. Deus me livre de começar a escrever um livro da primeira linha. Eu vou juntando notas. E depois vejo que umas têm conexão com as outras, e aí descubro que o livro já está pelo meio.

Você segue algum ritual para escrever? Quais as condições ideais para se escrever?
Clarice –
Se com isso de condições ideais você quer dizer paz de espírito, tranqüilidade material, sossego, devo dizer que para mim tudo isso é uma grande mentira. Não há condições ideais para escrever. No meu caso particular, começo um relato qualquer e termino completamente tomada por ele. Aí começa o processo, que para mim é muito penoso. Há um detalhe: esse processo se desenvolve ali, naquele sofá, onde sento com a máquina de escrever sobre os joelhos. Quando meus filhos eram pequenos, escrevia enquanto cuidava deles, ou seja, com os dois pulando à minha volta. Sempre quis evitar que eles tivessem de mim a imagem de “mãe escritora”. Escrevi, então, perto deles, tratando de não me isolar. É fácil imaginar o que isso significava: interrupções a cada instante, um que vinha pedir uma estória, outro que vinha com perguntas loucas, típicas dos garotos. Assim eu trabalho. As condições ideais estão dentro de cada um.   

Certa vez, referindo-se ao seu processo de escrever, você disse que ele é uma procura humilde. O que é a ‘técnica da humildade’?
Clarice –
Essa capacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? Procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse “estilo” (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em “humildade”, refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. O processo de escrever é feito de erros – a maioria essenciais – de coragem e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada, não conduz a nada, e de repente aquilo que se pensou que era “nada”, era o próprio assustador contato com a tessitura de viver.
 
O sucesso lhe incomoda?
Clarice -
Sinto-me só. É como se as pessoas ao se aproximarem de mim dessa maneira me negassem uma comunicação, impedindo-me de retribuir. Por acaso eu escrevo, e a coisa vem através da literatura. Mas se eu fosse bonita, ou se tivesse dinheiro, por exemplo, também não gostaria que as pessoas me procurassem por essa razão. O bom é ser aceita como um todo, começando até nos defeitos, nas coisas pequenas, para depois então chegar às de maior importância.

Há quem ache sua obra pessimista. O que você pensa sobre isto?
Clarice –
Prefiro acreditar que o impacto emocional do que escrevo corre por conta da reinvenção pessoal do leitor. Meus livros são espécies de trilhas, de onde cada um parte para as próprias descobertas.
 
Se tivesse que escolher entre a maternidade ou a literatura, qual você escolheria?
Clarice –
A resposta é simples: eu desistiria da literatura. Não tenho dúvida de que como mãe sou mais importante do que como escritora.
 
Por que você se nega a assumir a posição da ‘mulher escritora’?
Clarice –
Sempre rejeitei e evitei os chamados “meios intelectuais”. Tenho amigos escritores que, em primeiro lugar, são amigos, e depois, escritores. Nunca me aproximei de ninguém pelo fato de que, como eu, escrevesse. Sinto repulsa pelo mundo superficial dos literatos, não me misturo com eles. Sou uma pessoa, amiga de outras pessoas. E há outra coisa que eu quero dizer: escrever, para mim, é uma coisa natural, embora extremamente angustiante e difícil. Sou uma mulher que escreve, porque para mim escrever é como respirar, necessário para sobreviver. Talvez por causa disso não goste de falar sobre meus livros. O que eu tinha de dizer está neles, e foi tão difícil escrevê-los...

Clarice, você leu o que o Henfil escreveu no Pasquim ao referir-se à sua literatura como “alienada”?   Clarice - Vi. No começo fiquei muito zangada, porque ele não me conhece o bastante para saber o que eu penso. Fiquei meio aborrecida, mas depois passou. Se eu me encontrar com ele a única coisa que eu direi é: olha, quando você escrever sobre mim, Clarice, não é com dois esses, é com c, viu? Só isso que eu diria a ele. Mais nada.
 
Como você se sente ao ser premiada pela Fundação Cultural do Distrito Federal pelo conjunto de sua obra?
Clarice –
Desde que recebi a notícia não consigo pensar senão nisto: crianças morrem de fome, crianças mortas de fome. Se eu doasse o prêmio para as crianças carentes os adultos ficariam com o dinheiro.
 
O que você acha de ser considerada um monstro sagrado?
Clarice –
Eu não sei como é que se criaram esses mitos. Não sei, não. Pessoas já me confessaram que até me conhecer eu era um monstro sagrado. Um jornalista veio me entrevistar e disse que estava muito surpreendido de ver que eu falo com calma. Ele imaginava que eu dizia coisas muito depressa e muito exóticas, que minha conversa era feita disso. Ele ficou espantado de eu ter uma conversa razoável, de uma pessoa com outra. Saiu até um artigo, não me lembro quem escreveu, chamado “Quem tem medo de Clarice Lispector”, parafraseando aquela outra: Quem tem medo de Virginia Woolf. Ninguém precisa ter medo, não.
 
Como é a experiência de ter uma coluna semanal no Jornal do Brasil? Ela propicia uma maior exposição da sua intimidade? Um dia você revelou o desejo de largá-la. Por quê?  
Clarice –
Por enquanto, não estou largando a coluna: mas aprendendo um jeito de defender minha intimidade. Quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, não digo nas colunas, mas nos romances. Estes não são autobiográficos nem de longe, mas fico sabendo por quem os lê que eu me delatei. No entanto, paradoxalmente, e lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo intenso de me confessar em público, e não a um padre. O desejo de enfim dizer o que nós todos sabemos e, no entanto, mantemos em segredo como se fosse proibido dizer às crianças que Papai Noel não existe, embora sabendo que elas já sabem que não existe. Mas quem sabe um dia saberei escrever um romance ou um conto no qual a intimidade mais recôndita de uma pessoa seja revelada sem que isso a deixe exposta, nua e sem pudor. Se bem que não haja perigo: a intimidade humana vai tão longe que seus últimos passos já se confundem com os primeiros passos do que chamamos de Deus.
 
Você recebe muitas cartas dos leitores. Quais as que mais lhe comoveram?
Clarice –
As desta última safra são de gente muito pura e cheia de confiança em mim. Não sei selecionar as que mais me comoveram. Todas esquentaram o meu coração, todas quiseram me dar a mão para me ajudar a subir mais e ver de algum modo a grande paisagem do mundo, todas me fizeram muito bem. Sou uma colunista feliz. Escrevi nove livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe. Mas ser cronista tem um mistério que não entendo: é que os cronistas, pelo menos os do Rio, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos sábados tem me trazido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de quem me lê. O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória. Se me fosse tirada a palavra pela qual tanto luto, eu teria que dançar ou pintar. Alguma forma de comunicação com o mundo eu daria um jeito de ser. E escrever é um divinizador do ser humano.
 
Por que você escreveu: “livrai-me do orgulho de ser judia”?
Clarice –
Eu sou judia, você sabe. Mas não acredito nessa besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma. Os alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram. Que grande eleição foi essa, para os judeus? Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto.
 
Clarice, o entrevistado tem a obrigação de falar a verdade?
Clarice –
Não. Ele não é obrigado a dizer aquilo que é contra a sua vontade. Mas também não deve falar do assunto de um outro ângulo, para que não haja ambigüidade e muitas interpretações diferentes. Sempre quis ouvir de um entrevistado o fato como se passou, para não contar a história com interpretação própria. Certas interpretações contam o oposto do que foi dito.

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